22 de dezembro de 2024

Ler é sagrado!

Série “Preparando a Família” – Parte 10 – A família e os Cinco Ministérios

Pedro Arruda

Origem da reunião litúrgica

No princípio, antes de a Igreja ser uma instituição, ela se abrigava exclusivamente dentro da família. Contudo, já em meados do segundo século, à medida que a igreja ia formalizando suas reuniões e produzindo um ritualismo coletivo próprio, começou a surgir uma distinção entre ela e a família que a hospedava.

De forma bem paulatina, uma mudança estava em curso. Inicialmente, as reuniões haviam sido o fruto da dinâmica relacional gerada entre irmãos que tinham Jesus como o centro de sua vida. Essa centralidade era a tônica da reunião, pois, ao partilhar a vida, cada um partilhava o próprio Jesus, e isso, naturalmente, desembocava em orações e edificação na Palavra.

Com o passar do tempo, a reunião mudou seu caráter de consequência para causa. Cada vez se enfatizava mais que Jesus era o centro das reuniões ao mesmo tempo em que se apontava cada vez menos para o fato de que deveria ser também o centro da vida das pessoas. Na proporção em que a importância se deslocava dos irmãos para a reunião, a adequação do local ia ganhando destaque. A tendência indicava que ter um local adequado para reunir-se era mais importante do que as pessoas. Talvez, naquele tempo, já se começasse a imaginar que as pessoas deveriam sentir-se bem com o local na tentativa de suprir a ausência do bem-estar proporcionado pela presença de Jesus.

Como resultado dessa transformação, algumas famílias que, de bom coração, hospedavam a igreja em seus lares começaram a se mudar de suas residências, a fim de destiná-las exclusivamente ao serviço religioso dessas comunidades. Assim o conceito de templo – um local adequado e confortável, destinado exclusivamente ao desenvolvimento dos serviços religiosos – já estava sendo implantado dentro dos cristãos. A construção de edifícios para essa finalidade foi apenas uma questão de tempo e arquitetura, o que foi amplamente assumido pela mãe do imperador Constantino.

A principal expressão da vida da igreja deslocou-se dos relacionamentos pessoais para as reuniões; das pessoas para os eventos. A consideração de Cristo como centro das reuniões com finalidade litúrgica, embora parecesse ser uma coisa boa, escondia, na verdade, outro deslocamento: Cristo deixara de ser o centro da vida das pessoas e passara a ser o centro das reuniões delas! Cristo era o centro das orações, da mensagem pregada, dos louvores e de toda a liturgia, mas, necessariamente, não era mais o centro da vida das pessoas, como fora no princípio. Esta foi a gênesis da situação atual, como se os cristãos tivessem confinado Cristo às reuniões e adquirissem a possibilidade de uma vida dupla: sacra nas reuniões e profana fora delas. Dentre as várias literaturas acerca dessa mutação, podemos citar o livro de Vincent Branick, A Igreja Doméstica nos Escritos de Paulo (Editora Paulus).

Tanto a maneira de pensar quanto as práticas na igreja tornaram-se reféns das reuniões litúrgicas formais, e todas as atividades passaram a gravitar em torno delas, incluindo o exercício dos ministérios. Até mesmo, os cinco mencionados na carta aos efésios (Ef 4.11) sofrem a ausência de uma reflexão a respeito e são considerados em geral como praticáveis somente no ambiente de reuniões. Contudo, eles precedem a fase institucional da igreja e eram praticados durante o período em que a igreja era apenas doméstica. Aliás, foi esse ambiente o verdadeiro nascedouro dos ministérios. Por isso, podemos tentar refletir sobre cada um deles:

Pastor

O ministério de pastor é dirigido a cada ovelha individualmente. Ele conhece cada uma delas pelo nome e cuida da que está fraca e ferida. A existência de rebanho ou coletividade é algo circunstancial a essa função, pois sempre que necessário ele deixa o grupo maior e parte em busca da perdida. Embora as ovelhas se constituam num rebanho, jamais se transformam em meros números estatísticos para o pastor. Não lhe importa se possui uma ovelha ou uma centena delas, pois cada uma tem seu próprio valor, e ele não faz cálculo, do ponto de vista financeiro, de custo e benefício da sua dedicação. É por cada uma que está disposto a dar a vida, enfrentando o lobo ou expondo-se a outros perigos. Por essas e outras qualidades é que Jesus se autodenominou Pastor (Jo 10. 2-14; Lc 15.4).

A figura do pastor tem total identificação com a do pai de família. Ele não somente conhece individualmente os de sua casa, mas também estabelece um relacionamento próprio e irrepetível com cada um de sua família. Casa e aprisco são situações semelhantes a abrigo e segurança.

Mestre

Nos dias de hoje, consideramos o ensino e a aprendizagem como funções intelectuais, cujas habilidades são adquiridas numa sala de aula pelo relacionamento profissional entre professor e alunos. Transferimos esse conceito ao ministério de mestre, colocando-o numa reunião, transmitindo conhecimentos bíblicos a outros, num paralelo exato com a função de professor. Notamos que, nessa condição, o ajuntamento de pessoas num grupo é essencial à aula, pois a formação de tal ambiente é um ingrediente indispensável à realização da mesma.

Entretanto, a relação de mestre na igreja primitiva não se dava com alunos, mas sim com discípulos. Isso dispensa, necessariamente, a formação da turma, pois discipular é uma atividade que requer individualidade. O ensino daquele mestre não tinha como foco a transmissão de conhecimentos ou habilidades intelectuais, mas considerava a formação do caráter como elemento principal. Os aspectos intelectuais vinham como acessórios (Jo 13.14).

Outra atividade comum do mestre era a de ser consultado sobre determinadas questões por interessados. Essa abordagem se dava de maneira corriqueira, sem que se precisasse de um momento formal, como vemos em inúmeras cenas com Jesus. A aquisição da sabedoria e o discernimento do coração precediam o conhecimento da mente (Lc 6.40).

Concluindo, o mestre exercia seu ministério sem depender de reunião. Poderemos ter um conceito mais exato do mestre bíblico se tomarmos como referência os relacionamentos entre Jesus e João e o de Gamaliel e Saulo (Jo 21.20; At 22.3).

Apóstolo

Numa linguagem atual, podemos dizer que uma das funções do apóstolo é implantar igrejas. Observamos que as atividades de Barnabé e de Paulo, como apóstolos enviados pelo Espírito Santo, descritas com detalhes na sua primeira viagem apostólica, alinham-se perfeitamente com as instruções que Jesus dera aos seus enviados (At 13 e 14; Mt 9.35-38; 10.1-15). Em particular, duas características semelhantes se destacam: Jesus recomendou que fossem primeiramente aos judeus e, também, que procurassem casas dignas. Da mesma forma, Barnabé e Paulo procuraram os judeus nas sinagogas das cidades que visitaram; já no retorno da viagem, passando pelas mesmas localidades, dirigiram-se às casas, constituindo presbíteros entre aqueles que receberam o Evangelho.

Podemos depreender que implantar igreja para os apóstolos significava, na verdade, evangelizar famílias. A escolha de líderes para essas igrejas recaía sobre os pais de família das casas dignas, conforme Paulo viria a recomendar a Timóteo. Portanto, o exercício da primeira e principal função de apóstolo – a implantação de igreja – não dependia de reunião, mas da família que acolhesse o Evangelho.

Evangelista

Não era necessária a organização de reuniões para que o evangelista desempenhasse seu ministério, pois o evangelismo acontecia de maneira cotidiana a partir do estilo de vida dos irmãos. Aqueles que mais se identificavam em comunicar o Evangelho aos ingressantes à igreja eram chamados de evangelistas. Temos de considerar que eles não dependiam de um evento para exercer o ministério.

A igreja expandiu-se muito devido à perseguição que sofreu em Jerusalém. Ao fugir, espalharam o Evangelho. Ora, fuga e organização de reunião para pregar o Evangelho são situações antagônicas, pois quem está preocupado em proteger-se não dá atenção à outra coisa. Portanto, o evangelismo, além de natural, era inevitável no estilo da igreja primitiva, em particular de alguns membros das famílias em fuga. Podemos tomar Felipe como um evangelista emblemático, mas suas atividades, descritas no capítulo 8 de Atos dos Apóstolos, não aconteceram no contexto de reunião.

Profeta

Embora se mencione que, em Corinto, houvesse manifestações proféticas, estas não eram a principal finalidade das reuniões. Os profetas, assim como os demais, podiam manifestar-se, desde que tomassem cuidado para não monopolizá-las. Já em Antioquia, de acordo com Atos 13.2, mestres e profetas ouviram o Espírito Santo enquanto serviam ao Senhor; podemos observar que o texto não afirma explicitamente que estavam reunidos e orando. Em decorrência do que ouviram, jejuaram e oraram com imposição de mãos para o envio de Barnabé e Saulo. Essa última situação indica a cena de uma reunião, mas não necessariamente de toda a igreja (At 13.3-4). Tanto em Antioquia quanto em Corinto, não se sugere que a reunião fosse o único ambiente em que os profetas podiam manifestar-se.

A atividade do ministério profético é apresentada também por Ágabo, que avisou os irmãos da fome que viria sobre a Judeia e também da prisão de Paulo em Jerusalém. Nenhuma dessas situações é descrita como um evento preparado para a ministração de Ágabo; pelo contrário, a profecia fluía nas circunstâncias em que se encontrava (At 11.18; 21.10-11).

O retorno necessário

Se houvesse uma determinação que proibisse as reuniões, isso não significaria o fim da igreja, pois ela tinha outros mecanismos para viabilizar as relações. Hoje, há muitas igrejas que jamais poderiam abrir mão das grandes reuniões sem comprometer a própria existência.

Será muito difícil seguirmos uma concepção de família para a igreja se não retornarmos a Cristo como centro da vida, não apenas das reuniões. Fora do contexto de família, a tentativa de colocar em atividade os cinco ministérios em função de eventos, como reuniões, é um convite para transformar esses dons de serviço em cargos numa estrutura hierárquica. Não se trata de extinguir as reuniões, mas de não permitir que elas, como acessórias, encubram as outras expressões da igreja, principalmente a da família. Os ministérios podem e devem ser exercidos também fora do contexto de reuniões, e essas devem ser a consequência, não causa do estilo de vida.

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