21 de novembro de 2024

Ler é sagrado!

A Fé que as Obras das Mãos Revelam

Por Maurício Bronzatto

Assim brilhe a vossa luz diante dos homens

É relativamente grande, ao longo das Escrituras, o número de interações de Deus com o homem, estando este às voltas com as peculiaridades do mundo do emprego. Não raro observa-se um chamado, uma confrontação, um ensinamento, uma analogia carregada de verdade espiritual, que se deflagram a partir das práticas do trabalho cotidiano em que o homem bíblico está inserido, prova iniludível de que Deus não está interessado em dicotomizar a vida em sagrada e secular, hierarquizando momentos mais ou menos propícios para a manifestação de sua glória.

É dessa forma que assistimos à continuidade do plano de Deus passando pelas experientes mãos das parteiras Sifrá e Puá, cuja opção pelo testemunho de Deus aconteceu mesmo a despeito de se envolverem em encrencas (Êx 1.15-21). É dessa forma que os artífices Bezalel e Aoliabe demonstram-nos a necessidade que temos de receber sabedoria singular para podermos captar a visão de nossos chefes e executarmos o serviço como se nós mesmos tivéssemos tido a idéia ou a visão do novo empreendimento (Êx 35.30-35). Sobre os ombros dos artífices do tabernáculo pesa ainda o encargo de ensinarem a outrem (a transferência profético-profissional da vocação – v.34). É dessa forma que Gideão é observado pelo anjo enquanto malha o trigo para salvá-lo dos midianitas. Sua eleição se dá no trabalho e deixa-nos entrever que a displicência profissional pode-nos alijar da convocação divina (Jz 6).

É dessa forma que Boaz, o “empresário”, amigo de seus empregados, apercebido de suas dificuldades e amado por eles, reproduz, na lavoura, o cuidado que o noivo tem com a noiva (Rt 2.8-16). E por falar em cuidado, abrimos espaço aqui para um certo centurião, verdadeiro mestre para os que ocupam qualquer instância de poder no trabalho. Seguro e equilibrado no exercício da autoridade que empregava com seus subordinados, encontrava-se inteirado da sujeição desta à autoridade das autoridades, o verdadeiro nascedouro de onde emanam todas as autoridades que estão distribuídas debaixo do sol (Lc 7.1-10). É dessa forma que o Salmo 127 nos adverte que tanto o pedreiro que edifica a casa, quanto a sentinela que vigia a cidade, embora não se furtem de fazer a parte deles, reconhecem claramente o limite de suas atuações (v.1). E mais: Deus não é a favor do exagero das horas extras, da obsessão e das overdoses dos “bicos” (v.2). Tampouco é a favor de que, como os tessalonicenses dos dias de Paulo, sejamos acometidos pela síndrome dos adventismos malucos (2 Ts 3.10-11). Enquanto estamos por aqui, mãos à obra! Nossos planos e metas profissionais podem e devem pretender ultrapassar a duração de nossa existência, sobretudo porque engajarão outros a abraçarem tão apaixonada causa.

É dessa forma que os trabalhadores da vinha são advertidos acerca do prazer que advém do fato de estarem com o seu superior, o de serem honrados por passarem mais tempo na presença dele, o de contribuírem para que ele tenha êxito em suas empreitadas, prazer que supera o desejo de auferir proventos (Mt 20.1-16). É dessa forma que um certo trabalhador samaritano comporta-se de maneira sensível para interromper o fluxo de suas atividades a favor de quem mais precisa dele. A febre da produção, do resultado cega-nos tantas vezes em relação a circunstâncias que, de propósito, cobram de nós, nos momentos mais impróprios, uma atitude solidária (Lc 10.25-37).

É dessa forma que o estilo de vida de um homem rico (Lc 12.13-21) nos ensina que não podemos correr o risco de esperar a aposentadoria e o acúmulo para começar a servir: a vida verdadeira está em pleno andamento e precisa se integralizar já. Ela não pode se dar ao luxo de esperar ocasião favorável para começar.

Somos convidados a brilhar a nossa luz diante dos homens para que vejam nossas boas obras e glorifiquem o Pai que está nos céus (Mt 5.16). Não é uma questão de nos sobressairmos. Trata-se de abrir caminhos para a glória de Deus, sobretudo se levarmos em consideração o fato de que o ambiente profissional está saturado de mediocridade, mesmice. Para colaborar, a parábola dos talentos ensina que a mediocridade é sempre punida (Mt 25.14-30). E eu acrescentaria: mormente a mediocridade dos cristãos.

Assim como a boca fala do que transborda o coração (Mt 12.34) e a formosura do rosto tem a ver com as inclinações interiores do sentir (Pv 15.13), nossas manifestações exteriores, explicitadas nas obras que nossas mãos realizam, dão testemunho da condição de fé que alcançamos no conhecimento de Cristo Jesus. Tiago já nos advertiu de que “a fé, se não tiver obras, por si só está morta” (Tg 2.17). Nosso problema é que sempre espiritualizamos demais os textos bíblicos. Essas obras de que nos fala Tiago não se restringem à esfera da religião. Elas falam de todo o nosso histórico, de nossas realizações que se prestam a revelar quem de fato somos. Assim como as palavras apresentam-se como um corpo aos nossos pensamentos, de igual forma as nossas realizações perpetuam objetivamente nossa identidade mais secreta, mais subjetiva, invariavelmente.

Naamã: a abnegação profissional transformada em devoção apaixonada

A história do comandante do exército do rei da Síria, Naamã, é bastante singular e lança muita luz ao que vimos falando até aqui. O texto de 2 Reis 5.1-19 nos mostra que ele “era grande homem diante de seu senhor e de muito conceito, porque por ele o Senhor dera vitória à Síria; era ele herói de guerra…” (v.1). Naamã era um militar exemplar, idôneo, respeitado, atilado no cumprimento de suas atribuições. Tudo isso não passou despercebido aos olhos de seu soberano. Sua fama era irrepreensível. Seu zelo e excelência no serviço que dedicava ao seu país e ao seu rei estavam muito acima da linha da mediocridade. Estamos diante de um homem sincero, abnegado, objeto, inclusive, da benevolência de seu senhor, pois, não obstante seu caráter irretocável, trazia no corpo as marcas de uma condenação: era leproso.

No entanto, outro par de olhos estavam postos sobre Naamã: os olhos de Deus. Assim como em Atos 10 ficamos sabendo que as esmolas de Cornélio subiram aos céus como oferta de lembrança (v.4), aqui em 2 Reis 5 verificamos como o exercício competente, íntegro, honrado das funções de Naamã chamaram a atenção de Deus. As obras do siro à frente do exército de seu país falavam de uma personalidade elevada, de uma disposição de espírito ilibada, quiçá em resposta à revelação geral de Deus derramada sobre a humanidade e que achou na consciência deste homem um acolhimento (ver Rm 1.20; 2,15). Naamã revelava, no desempenho de suas responsabilidades, uma sede, ainda que difusa, do verdadeiro Deus, necessidade que o deus pagão Rimom não poderia dar conta de satisfazer.

Desejoso de se encontrar com Naamã, Deus começa a movimentar a história. Numa das incursões dos siros à terra de Israel, uma menina é levada cativa e colocada ao serviço da esposa de Naamã. Tão logo a menina se ambienta ao novo lar, mostra para o que viera: sugere à sua senhora que a doença de seu marido pode ter solução se ele for levado diante do profeta de Samaria. O alarme está dado. Numa sucessão de providências, o soberano da Síria envia seu caro general ao território de Israel a fim de se avistar com o rei daquele lugar. Mas Naamã vai parar mesmo diante das portas do profeta Eliseu que, sem recebê-lo, envia-o ao Jordão para uma lavagem de purificação. Não é sem luta que Naamã decide atender o conselho de Eliseu. É Deus mesmo quem está convidando o general à humilhação, ao quebrantamento, à rendição profunda ao seu senhorio. O resultado que se segue é incrível: “e a sua carne se tornou como a carne de uma criança, e ficou limpo” (2 Rs 5.14). Eis o novo nascimento de um homem se concretizando.

Cessou então a desconfiança de Naamã. Não era mais apenas uma questão de se colocar ao favor de uma outra divindade, de um deus estranho, estrangeiro. Não estava diante de um resgate unicamente exterior, cosmético. Ele se encontrava com o Deus verdadeiro, o responsável pelo fôlego de vida que há no homem. O Deus capaz de transformar abnegação profissional em devoção apaixonada; zelo servil em caráter santificado; dedicação militar e patriótica em adoração radical.

E agora? Como vai ser o dia seguinte lá no trabalho?

Naamã quer presentear Eliseu, mas diante da recusa do profeta, carrega dois mulos de terra, pois segundo ele “nunca mais oferecerá este teu servo holocausto nem sacrifício a outros deuses, senão ao Senhor” (2 Rs 5.17). Resta ainda uma preocupação ao oficial siro: “Nisto perdoe o Senhor a teu servo; quando o meu senhor entra na casa de Rimom para ali adorar, e ele se encosta na minha mão, e eu também me tenha de encurvar na casa de Rimom, quando assim me prostrar na casa de Rimom, nisto perdoe o Senhor a teu servo” (v.18). Naamã não sabe como continuar sua vida profissional depois da conversão, sobretudo porque começou a se ver em um ambiente de trabalho hostil e sob um patrão implicado em práticas estranhas à fé com a qual se encontrara.

Colocada de outra maneira, a questão seria: como Naamã, então convertido, vai se comportar no trabalho, logo ele que desempenha funções agora estranhas à fé que abraçou? Que conselhos daríamos a ele? Que mudasse de emprego? Que pedisse um rebaixamento de função? Que despejasse em cima do chefe suas novas convicções e exigisse dele respeito à liberdade de culto? Não foi a essas escolhas que Eliseu recorreu. Ele simplesmente disse: “Vai em paz” (v.19). Pode parecer, numa leitura distraída, que Eliseu abandonou Naamã à própria sorte. Não! Eliseu pacificou o coração do gentio. Não era necessário desesperar-se. Ele deveria continuar fazendo o que sempre fizera, sem qualquer medo de incorrer em contaminação. Que continuasse servindo de “bengala” para o seu rei, que se prostrasse para poder dar sustentação ao idoso soberano, que se mantivesse idôneo, íntegro, irrepreensível no exercício de seu generalato. Fora ali que Deus o alcançara, quando encontrou prazer nas obras que Naamã realizava. Sua vida correta, zelosa, comprometida o distinguiu entre milhares de leprosos de seus dias, inclusive entre os de Israel, como atestou posteriormente Jesus (Lc 4.27). Deus vira tanta nobreza neste coração e não desejava que agora ele passasse a viver uma vida inferior, mediocrizada, regida pelos medos e preconceitos que a religião patrocina. Deus o queria ali, não tinha problema que dentro do templo de Rimom, mas ao lado de seu soberano, testemunhando uma excelência de caráter, agora influenciado pelo encontro com o verdadeiro Deus.

Fugir representaria deixar a religião perpetuar sua “higienização” inócua, que retira das pessoas o sal que dá sabor aos contextos em que estão plantadas, que seqüestra, em nome da manutenção do status quo religioso, as pessoas dos ambientes carentes de influência relevante. Se Eliseu enfiasse um monte de fantasmas na cabeça de Naamã, ele não passaria de um leproso curado vivendo em Israel, um ex-general galhardo, outrora cheio de bom senso e atitudes nobres, por ora leproso na alma, confinado, não muito diferente de muitos leprosos que foram incapazes de chamar a atenção do profeta Eliseu.

Naamã significa a esperança de não termos os conteúdos do evangelho represados, domesticados, experimentados entre quatro paredes. Eliseu estava seguro de que Aquele que possuíra o coração do siro era muito maior do que qualquer manifestação mesquinha que viesse a concorrer contra a sua nova fé. Eliseu sabia que o Deus que esteve durante muito tempo de olho no estrangeiro e movimentou os acontecimentos para se revelar a ele não o devolveria àquela terra para vê-lo sincretizando sua fé com as práticas pagãs. Deus estava muito vivo em Naamã. Por isso Eliseu simplesmente diz: “Vai em paz”.

Chega de paranóia em nossas vidas. Há muito que a religião vacinou as pessoas contra o evangelho. Digamos um basta a isso! Naamã e Eliseu nos convidam à vida integral, a uma expressão de fé sem reservas, sem xenofobismos nem apartheids religiosos, sem castração doutrinária, a uma vida bela que extravasa todo o conteúdo excelente que recebemos do Filho que, depois de nos impregnar com sua vida e empenhar sua intercessão para que sejamos livres do mal, nos devolve para o mundo, dizendo: “Vai trabalhar em paz”.

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