21 de dezembro de 2024

Ler é sagrado!

As Muitas Bíblias Te Fazem Delirar!

Por João A. de Souza Filho

Acho que seria esta a frase que Paulo, o apóstolo, diria aos contenciosos e aos que querem apenas discutir teologia. Nos últimos anos, a igreja brasileira foi enriquecida e empobrecida com a grande quantidade de Bíblias comentadas. Não me refiro aqui às versões bíblicas disponíveis, nem penso em discutir qual versão é melhor, até porque não conheço hebraico e grego fluentemente para definir essa questão. Os revisores não conseguem concordar em questões pequenas e divergem quanto à melhor versão a ser usada.

A igreja foi enriquecida, porque dispõe dos mais diversos comentários que agradam a todo tipo de crente, de A a Z. Empobrecida, porque a quantidade de Bíblias comentadas deixa atrás de si discípulos sectários que passam a defender o ponto de vista de seu comentarista, como se este fosse o agente final de Deus para uma nova revelação. Algumas Bíblias comentadas são devocionais e não demonstram tendência doutrinária, mas a maioria induz o leitor a observar algum tipo de linha doutrinária.

Pior do que isso, muitos cristãos confundem Bíblias comentadas com versões bíblicas. Sei disso, porque, nas aulas do seminário, uma das primeiras coisas que ensino, no primeiro ano, diz respeito à diversidade de versões bíblicas e à maneira como o aluno deve estudar um tema comparando os textos bíblicos. Alguns alunos, em sua simplicidade cristã, que sempre acreditaram que sua versão é a versão do céu, entram em parafuso!

Uma breve análise

As Bíblias comentadas mais famosas, como a Thompson, a Shedd, a Scofield e, atualmente, a Dake, possuem notas interessantes, mas não podem ser consideradas revelação divina. Assim, particularmente, analiso cada texto com as Bíblias que tenho, incluindo a Bíblia de Jerusalém e a edição Ave Maria, editadas pela Igreja Católica. Faço com todas o mesmo que faço quando como peixe: deixo as espinhas fora do prato!

Depois de anos de ministério, sempre que tenho de consultar algum texto bíblico, busco ferramentas confiáveis. Por exemplo, recorro à Bíblia comentada da Sociedade Bíblica do Brasil, porque suas anotações se limitam ao texto, dando ao leitor informações históricas, culturais e geográficas, e não induzem a interpretações teológicas. Quando necessários, os comentários da SBB, diferentemente da maioria das Bíblias comentadas, limitam-se a dar um parecer não dogmático. Os que possuem o software da Bíblia on Line da SBB podem consultar os comentários em inglês de vários autores, dentre eles John Gill, Matthew Henry, e Jamieson, Fausset e Brown, que se atêm apenas ao texto bíblico e não tentam influenciar o estudante a crer numa doutrina específica.

Costumo recorrer aos comentários da Companion Bible, uma Bíblia anotada que tenho em inglês, porque suas notas sobre os textos originais e seus 198 apêndices são de grande riqueza de informações. Aliás, vários mestres que conheço fazem da Companion Bible sua Bíblia comentada predileta, porque seus autores seguem o estilo massorético, [1] oferecendo informações de quantas vezes tal expressão ou palavra ocorre na Bíblia.

A Bíblia Dake também passa um pente fino em cada texto, e suas observações assemelham-se à linha massorética de fornecer detalhes de quantas vezes tal acontecimento ocorreu ou quantas vezes determinada palavra é mencionada no texto bíblico. A vantagem de Dake é que seus comentários em forma de esboço são um prato cheio àqueles que precisam de informações e argumentos para entregar um sermão. De todas as Bíblias comentadas atuais, sem dúvida, a Dake é a mais minuciosa.

Algumas Bíblias comentadas, como a Bíblia Scofield e a Bíblia Ryrie – para citar apenas duas – instigam o leitor a crer numa linha de interpretação e escatologia que é chamada dispensacionalismo, formulada por John N. Darby no século 19. Na verdade, a Bíblia Scofield foi um dos maiores veículos de divulgação dessa linha escatológica, influenciando gerações de seminaristas, pastores e professores bíblicos. A Bíblia Dake também acompanha essa linha de interpretação.

O dispensacionalismo ensina o arrebatamento da Igreja antes da grande tribulação dos últimos dias e é uma marca de muitos teólogos que vieram depois de Darby. Em contraste, quando você consulta os comentaristas antigos, dos séculos logo após a Reforma, eles falam genericamente da volta de Jesus e do arrebatamento da Igreja sem encaixar esses dois acontecimentos num plano especifico. Na língua inglesa, costumo consultar os cinco volumes dos comentários de Thomas Scott, editados em 1853, ou apelo aos 14 volumes organizados por Albert Barnes que contêm vários comentaristas do período aproximado de 1840-1880. Apesar de serem contemporâneos de Darby, não foram influenciados por sua linha de interpretação.

Pessoalmente, acredito que a geração atual de evangélicos que aceita sem discussão o dispensacionalismo de alguns comentaristas e Bíblias de estudo tem uma visão do Reino de Deus limitada e corrompida, porque alimenta a ideia de escapar no momento da tribulação.

Examine tudo, retenha o que é bom

A Bíblia Dake gerou uma grande celeuma no círculo de teólogos das Assembleias de Deus, o que chamou a atenção de muitos leitores e trouxe certa confusão e desconforto (já que tudo fica exposto na Internet). Uma das questões levantadas foi a conclusão que Dake tira do texto de Lucas 13.11 ao afirmar que as enfermidades “definitivamente são de origem satânica, não provêm de Deus”, algo do qual alguns teólogos discordam.

Ora, todo comentarista coloca no papel sua convicção, e sempre conflitará com os ensinamentos de alguma denominação. A Bíblia de Genebra, por exemplo, defende o posicionamento dos presbiterianos no que diz respeito a eleição e predestinação.

Portanto, ao usar Bíblias que induzem a uma linha dispensacionalista ou a crer numa posição teológica, o leitor deve agir como os bereanos que examinavam “as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim” (At 17.11). Se, por um lado, não devemos aceitar os comentários sem questionamento, por outro, não devemos rejeitar tudo por causa de alguns comentários dos quais discordamos.

O estudante da Bíblia deve usar as Bíblias comentadas com sabedoria, discernimento e prudência. Os comentários não são textos bíblicos em si, mas a opinião do comentarista. E os comentaristas divergem entre si. Por exemplo, Dake, ao comentar a parábola do fermento em Mateus 13.33, usa o fermento apenas negativamente, como se Jesus estivesse alertando quanto às impurezas que costumam penetrar no reino, enquanto Thomas Scott (1853) é mais prudente e apresenta os dois lados do fermento. O lado positivo, segundo Scott, é que o fermento representa, na parábola, a expansão da verdade e da graça de Deus.

Orientações importantes

1. Use as Bíblias comentadas como subsídio literário, não como fonte de inspiração divina.

2. Busque estudar os comentaristas antigos que não foram influenciados por ideias secularizantes, como pensamento positivo, fé positiva, prosperidade, etc. Os artigos e notas de James Hastings seguem um padrão fundamentalista. Os comentários de A. B. Bruce, F. F. Bruce, João Wesley, Calvino e Lutero – pelo menos estes – não sofreram influências do modernismo. Muitos outros comentaristas poderiam ser aqui citados favoravelmente.

3. Possua mais de uma versão da Bíblia para comparações. Existem versões mais antigas, como a Revista e Corrigida que eu usava antigamente, que têm um português arcaico, às vezes incompreensível. Outras versões mais atuais como a Revista e Atualizada, a NVI ou a NTLH podem ajudar a transmitir o sentido do texto. Porém, não existe uma versão perfeita, já que todas foram traduzidas por pessoas imperfeitas! Por isso, devemos ter várias e comparar uma com a outra.

4. Não confie demasiadamente num comentarista apenas, nem use os pontos de vista dele para suas mensagens. Compare passagens bíblicas paralelas ao texto em questão, confira o que dizem diferentes comentaristas sobre o mesmo texto e consulte o Espírito, que testifica no seu coração. Caso seu coração fique inquieto, não mencione nem pregue com base nos comentários, mas fique apenas com o texto limpo e cru da Palavra de Deus. Assim, a Palavra, tal como a parábola do fermento, não será contaminada pelo “fermento” dos comentaristas.

5. Consulte as Bíblias comentadas buscando conhecer aspectos históricos, culturais e geográficos da época, nunca como expressão infalível da revelação de Deus. Ainda assim, esses dados históricos, culturais e geográficos devem ser conferidos com documentos antigos e outras fontes. Tanto o conhecimento do contexto cultural quanto as percepções ou opiniões do comentarista podem ajudar a formar uma base (nada mais do que isso) para a revelação de Deus ao seu coração!
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[1] Os massoretas eram escribas e judeus que, a partir do cativeiro babilônico, encarregaram-se de preservar e cuidar dos diversos manuscritos e textos que fazem parte do Antigo Testamento. Procuraram unificar os textos, tirar as discrepâncias e mostrar como as palavras sem vogais poderiam ser pronunciadas. Faziam tudo isso por meio de anotações nas margens do texto sagrado, afirmando quantas vezes aparecia essa ou aquela palavra no texto, o sentido diferente das palavras, etc.

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