21 de dezembro de 2024

Ler é sagrado!

Professores ou Pais Espirituais?

Por Ezequiel Netto

A edição 57 da Revista Impac­to (Quando desobedecer é melhor…) divulgou um trecho de uma entrevista que passou quase desapercebido por muitos leitores, mas que eu gostaria de trazer à nossa memória:

No final da década de 80 e início de 90, tivemos experiências difíceis em Porto Alegre em relação a alguns abusos da parte dos discipuladores. Mas isso acabou se transformando em bênção para a igreja, porque nos levou a buscar a Deus para que ele corrigisse nosso percurso. […] Levou- nos a voltar aos princípios, a buscar mais revelação. E descobrimos uma espécie de norma áurea em 2 Coríntios 10.8 e 13.10, segundo a qual a autori­dade não é para destruição, mas para edificação.

Outra coisa que nos ajudou foi uma ampliação da visão do discipulado, com a entrada da visão de paternidade espi­ritual. Foi uma chave para nós. A ênfase não é na autoridade, nem na exigência de submissão, mas na paternidade. […] (Veja esse princípio exemplificado no relacionamento de Paulo com Timóteo e Tito, como filhos na fé, em 1 Tessalonicenses 2 e outros textos.)

Quando os discipuladores enten­deram e creram nisso, os problemas praticamente deixaram de existir. E quantos problemas nós tínhamos! Hoje podemos dizer que desde então tem ocorrido uma revolução de amor entre nós. Os discipuladores servem efetivamente os irmãos – não estão em posição superior. Assim como o pai não é status, mas serviço, obtive­ram reconhecimento da autoridade a partir dessa doação.

Hoje, usamos mais as expressões “quem cuida”, “quem te serve”, “quem te guarda” do que algum termo que dê ênfase na autoridade. Temos atualmen­te (novembro de 2004) em Porto Alegre mais de 500 pais espirituais. São dois mil irmãos com vida. Jovens, adolescentes e velhos em alegria. Passamos pela crise e Deus gerou esse amor.

Jan Gottfridsson (Igreja em Porto Alegre)

Confesso que, na época, não dei muita importância a esse trecho da matéria, o que poderia ter evitado algumas “crises eclesiásticas” que expe­rimentei em seguida. Ao ler 1 Corín­tios 4.15 (“Porque, ainda que tivésseis dez mil aios em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; porque eu, pelo evangelho, vos gerei em Jesus Cris­to”), pude perceber quão importante é essa questão de paternidade espiri­tual. Paulo estava querendo dizer que a igreja em Corinto tinha muitos aios (professores, mestres, pessoas respon­sáveis por transmitir ensinamentos), mas faltava-lhe um pai espiritual.

Minha crise pessoal estava justa­mente relacionada com isso. Passei quase toda a minha vida cristã envol­vido com o ministério de ensino, com livros, apostilas, estudos, e parece que o apóstolo Paulo falava diretamente para mim: “O que você está precisan­do é de paternidade espiritual!”

Depois o verso 18 (“mas alguns andam inchados, soberbos…”) vinha com mais uma punhalada em minha religiosidade. Os membros da igreja em Corinto ouviam os tutores, parti­cipavam dos estudos – e tornaram-se arrogantes, soberbos em seu conheci­mento do evangelho. Orgulhavam-se do muito que conheciam, mas eram imaturos, pois não consideravam a figura do pai para dar-lhes identidade, treinamento e cuidado apropriado. Mas será que isso também não estava acontecendo comigo?

Amadurecendo a Visão de Discipulado para Paternidade Espiritual

Durante muitos anos, pratiquei uma metodologia de ensino cris­tão conhecido como “discipulado” e adotado por diversas comunidades evangélicas. Esse método normal­mente consiste em duas pessoas se encontrarem para passar por um pro­cesso estruturado de ensino no estilo “preceito após preceito”, no qual um cristão novo é ajudado a conhecer, praticar e ensinar as verdades básicas do evangelho. É um tipo de relaciona­mento que é necessário e maravilhoso para o treinamento dos crentes, mas a idéia de paternidade espiritual vai mais além, como explicou o irmão Jan Gottfridsson em seu depoimento.

Como pai espiritual, as intenções do apóstolo Paulo para a igreja em Corinto eram muito superiores ao sistema de ensinamento que estavam recebendo. Os irmãos que estivessem experimentando essa paternidade sobre suas vidas não se tornariam soberbos e inchados de tanto conhe­cimento; pelo contrário, deixariam de ser bebês espirituais (1 Cor. 3.1) e amadureceriam em Cristo, adquirindo condições de assumir a paternidade sobre outras pessoas.

Atualmente, Deus está despertando pessoas em muitos lugares, mostrando que sem paternidade espiritual não tere­mos homens e mulheres maduros na igre­ja – podemos ter muita informação, como a igreja em Corinto, mas seremos eternas crian­ças espirituais com nos­sos joguinhos televisi­vos de meninos contra meninas, batistas contra presbiterianos, adora­dores extravagantes contra os defensores de corais e hinos tradicionais. Quem você acha que ganhará o troféu abacaxi?

Precisamos Estar Ancorados

O livro O Clamor por Pais e Mães Espirituais (Larry Kreider, Ministé­rio Igreja em Células) cita o seguinte: “Toda a humanidade está claman­do por relacionamentos autênticos, tanto na igreja como no mundo. Uma empresa americana, Brain Reserve, de Nova Iorque, especializada em pes­quisar tendências de mercado e fazer previsões, está constatando o sen­timento e desejo do homem de ser ancorado pela sociedade (em um sen­tido figurado, que significa proteção, amparo, arrimo, abrigo, algo que nos dê segurança, esperança). As pessoas estão com medo – violência, avan­ços tecnológicos, falta de privacidade, pornografia a um clique do mouse, crimes sem sentido. Tudo isso torna a sociedade faminta e desesperada por orientação e autoridade moral. As pes­soas estão em busca de direção, estão procurando por respostas espirituais como nunca antes. Elas querem rela­cionamentos verdadeiros em que pos­sam se sentir conectadas e seguras”.

O autor também nos alerta: “Com freqüência, na igreja de hoje, o crente é encorajado a participar de cultos, estu­dos bíblicos, organizações paraeclesiásticas ou ministérios evangelísticos para fortalecer a sua fé e crescer no Senhor. A teoria diz que quanto mais ensino da palavra de Deus e interação entre os crentes tanto mais espiritual­mente madura a pessoa vai se tornar. Embora o envolvimento seja impor­tante, essa pressuposição enganosa leva a pessoa a inalar mensagem após mensagem, livro após livro, fita após fita, seminário após semi­nário para preencher o vazio que só pode ser preenchido pelo verdadeiro relacio­namento. Um crente se torna um obeso espiritual e fracassa em interpretar o que está aprendendo e o que pode passar adiante para outros. Ele não sabe como transmitir sua vida de maneira significativa e sacrificial para outros porque nunca foi acompanha­do adequadamente por um pai espiritual. Sem um modelo, ele permanece um filhinho espiritual, precisando ser alimentado com colheradas pelo seu pastor ou por outro obreiro cristão.”

Órfãos Espirituais

Assim como pessoas podem ser órfãs de pais físicos, a igreja está reple­ta de órfãos espirituais. São pessoas sem qualquer tipo de herança espiritual ou emocional. Aceitaram a Jesus, mas não foram alimentadas em sua fé. Não foram encorajadas nem exorta­das com princípios bíblicos saudáveis por alguém mais maduro, que poderia ajudá-las a crescer no Senhor. Esses cristãos, pelo fato de não estarem ancorados a ninguém e não convive­rem em um ambiente de paternidade saudável, param de crescer emocional e espiritualmente, independente do tempo de conversão que possam ter. Pelo fato de estarem lutando sozinhas, é comum ver essas pessoas centraliza­das em si mesmas, desenvolvendo um sentimento de autopiedade e recla­mando quando as coisas não aconte­cem do jeito que queriam.

Assim como acontece em uma famí­lia natural, o pai espiritual proporciona segurança e um lugar de descanso para seus filhos. Confiando nessa proteção, os filhos não se sentem perdidos em uma infinidade de diretrizes espirituais lança­das aos seus ouvidos, ficando sem saber por qual caminho seguir (basta entrar em uma , livraria evangélica e percorrer a grande quantidade de livros, completamente diferentes entre si, mas todos com objetivo de trazer uma direção atual de Deus para nossas vidas e para a igreja em geral).

Por outro lado, essa lacuna de con­fiança e segurança tem sido causada pela má atuação de muitos pais, que abusam da autoridade (para melhor compreensão desse fenômeno, reco­mendo a leitura do livro A Pedagogia dos Oprimidos, o mais conhecido de Paulo Freire), gerando uma idéia detur­pada do que é paternidade, causando até mesmo uma aversão ao processo. A compreensão inadequada do que é paternidade também é fortalecida pela figura dos pais ausentes, abordada em outros artigos desta revista.

Mas paralelo a esses modelos não saudáveis no mundo, o povo de Deus, a igreja de Jesus Cristo, deve servir como exemplo em relação ao plano de Deus para a família. A igreja, compreen­dendo sua missão influenciadora para a sociedade, pode levar a cura e livrar a humanidade das maldições (Ml. 4.6). Como igreja podemos proporcionar uma reeducação em relação à paternidade, através de um relacionamento cuja iniciativa parta de alguém espiritualmente maduro que realmente se importe com as pessoas e lhes sirva de exemplo. Deus quer levantar homens e mulheres com coração de pais e mães espirituais para mentorear jovens, transmitindo amor, cuidado e sabedoria. Famílias fortes vão se importar com famílias desestruturadas, levando força e combatendo o sentimento assombroso de “solidão”.

Contudo, só participaremos desse revolucionário processo transformador e curador para a sociedade quando deixamos de olhar para nós mesmos segundo uma ótica religiosa e egoísta, que nos leva a crer que precisamos ser mais abençoados, ter mais saúde, mais dinheiro, mais proteção, mais, mais, e que somos tão pobrezinhos espiritualmente que ainda não temos nada para contribuir. Quem sabe daqui a alguns anos…

Um Desafio

Cada cristão, individualmente, pre­cisa ter ousadia e coragem para abrir as portas de sua casa para os solitários (Sl. 68.6). A paternidade espiritual se desenvolve em um ambiente de encon­tro familiar e não de reunião ou culto semanal. Não podemos abrir mão da bênção dos relacionamentos hones­tos e transparentes em função de uma reunião solene e (aparentemente) mais bonita. O que você acha que acontece­ria se mais cristãos se colocassem à dis­posição para fazer parte de um relacio­namento de paternidade e maternidade espirituais?

Para que os jovens cresçam espiri­tualmente e não abandonem o barco, temos que fazer mais do que passar tempo com eles e simplesmente estu­dar a Bíblia. O pai espiritual ajuda o seu filho espiritual a alcançar seu potencial dado por Deus. Tem a ver também com “como posso ajudá-lo?” em vez de “o que devo ensinar-lhe?”. Os pais dão aos filhos um sentimen­to de importância. Uma pessoa que se sente um Zé Nin­guém vai contribuir  pouco para a vida.

Aí vem a pergunta: se eu não tive um pai espiritual, como poderia ser pai de uma outra pessoa? A igreja está sendo restaurada. Muitas coisas estão fora do lugar. Seja como um Gideão – não fique olhando para sua covardia e fraquezas e dependa do Senhor. Doe-se como pai espiritual de alguém: invista seu tempo, dinhei­ro, suas emoções, como deve ser feito com filhos naturais. E Deus, que é fiel, também levantará alguém sobre sua vida. Não seria maravilhoso se alguém olhasse para você, visse o seu potencial em Cristo e decidisse investir em sua vida?

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