21 de dezembro de 2024

Ler é sagrado!

Tanto na Augusta como na Liberdade, e até aos confins da Metrópole

As comunidades que mudaram (quase) todos os clichês do que é ser cristão para alcançar “gente que não gosta de igreja”

Por André Eler

“A reunião hoje é normal?”, pergunta um rapaz que chega à sala do hotel Linson, no meio do Baixo Augusta, região mais movimentada do circuito alternativo da noite paulistana. “Normal nunca é”, responde Guilherme Menga, designer de 30 anos, uma das pessoas que resolveram responder de um jeito diferente ao chamado de Cristo para servir ao seu reino. Há cinco anos, a igreja de Guilherme não tem cara de igreja, instalações de igreja, não fala a mesma linguagem que se fala nas igrejas, nem ministério de crianças, de louvor, nem pastor em tempo integral, nem nome de igreja. É, no entanto, a única igreja da boêmia rua Augusta.

Quando a reunião começa, as boas-vindas não são o tradicional “Graça e paz do Senhor Jesus!”, mas um singelo “Bem-vindo à Capital”, para deixar ainda mais em casa quem já está tão habituado a São Paulo que sente que a capital é que o define. De fato, o que parece definir quem frequenta a Capital Augusta (seja uma moça com cabelo platinado, outra com tatuagem com a inscrição “Vamos nos permitir”, um rapaz de boné de aba reta, um barbudo com camiseta de rock e algumas tatuagens ou outra jovem com a camiseta da Color Run) é que fazem parte de uma juventude que respira a agitada vida cultural de uma metrópole.

Quem se assustar com tantas diferenças no formato talvez estranhe saber que elas param mais ou menos por aí. No momento de música, um violão, uma projeção no data show, uma canção de Adhemar de Campos, outra de Chris Tomlin. No sermão (ainda que o pregador da noite, Rod, certamente prefira um termo não tão pomposo para a palavra que ele compartilhou), uma exposição de como Paulo recomenda Epafrodito aos filipenses e de como é importante que, na Igreja, não haja só apóstolos aos gentios, mas também simples mensageiros que sustentem ministérios e deem a vida por Cristo.

O pregador da noite foi Rod, ou Rodrigo Soares, analista de telecomunicações de 29 anos. Rod deixa clara a missão da Capital: “Nunca tivemos a pretensão de ser a resposta para a igreja evangélica do Brasil. A única coisa que queremos é ser igreja”, diz. Ele exalta, por exemplo, o ministério de André. “A única coisa que André faz, na Bíblia, é levar o irmão dele para Cristo”, diz rindo, porque o irmão de André é ninguém menos que Pedro. Pode parecer pouco, mas foi esse “trabalho de coadjuvante” que conduziu Fernanda Stahelin, hoje com 36 anos, até o evangelho. Levada por uma amiga à Igreja Batista da Liberdade, ela sentiu vontade de se aproximar do cristianismo e achou a Capital na internet. O estilo agradou, e ela foi ficando, converteu-se e foi batizada. Hoje, lidera um grupo pequeno, sem deixar o visual de frequentadora da Augusta – rua onde ela chegou a morar por alguns anos.

Quem pastoreia a Capital é Júnior Souza, que já trabalhou com missões na Jocum por mais de dez anos. Ele viu muita semente ser lançada, mas entendeu que o caminho para viver mais de perto a igreja passava pela igreja local. Ele e a mulher resolveram plantar uma igreja em São Paulo. Em 2008, encontraram um grupo sem pastor, o Solomon, que se reunia na Livraria Cultura, composto por gente acostumada aos rolés na região da Augusta e da Paulista – designers, músicos e interessados em arte e diversão, mas igualmente interessados na mensagem de Jesus. Eles perceberam que um grupo de cristãos que se reúnem não pode ter outro nome senão igreja.

Essas comunidades missionais urbanas – que têm como meta ser igreja num contexto urbano – não podem negar ser, de certa forma, herdeiras do movimento chamado “Emergente” nos anos 1990, que propôs um novo formato de comunidade cristã baseado no livro de Atos e contrário ao modelo das megachurchs, que visava a resgatar o relacionamento entre pessoas à semelhança da igreja primitiva, especialmente conforme o relato narrado no livro de Atos. Evidentemente, também recebeu críticas pelo caráter rebelde e pela inclinação ao liberalismo teológico. A Igreja Emergente parece não ter vingado no Brasil, mas muitas de suas boas características enraizaram-se em pequenas comunidades missionais que enfatizam um relacionamento informal e se apropriam da cultura local para comunicar o evangelho. Essas comunidades nem de longe se propõem como o único modelo eclesiástico possível. Rod, da Capital Augusta, diz no meio da pregação sobre Epafrodito: “Nós entendemos, já há alguns anos, que nossa comunidade é uma igreja de passagem, que vai servir para recuperar algumas pessoas de suas feridas e, depois, essa pessoa vai seguir seu caminho. Se for servir em outra igreja, vai com Deus”.

Os cristãos brasileiros não podem ignorar a relevância desses grupos para atingir um rebanho que, de outra forma, não seria pastoreado. O número de crentes desigrejados já pôde ser percebido no último Censo. Já era apontado também por gente experiente como o pastor, cantor e compositor Nelson Bomílcar. Em seu livro Os Sem Igreja – Buscando caminhos de esperança na experiência comunitária (Mundo Cristão), Bomílcar elenca alguns grupos que deixaram de buscar uma vida cristã comunitária por causa de decepções com o modelo institucionalizado e inclemente de viver a fé cristã. Ainda que esse rebanho não possa ser atendido em todas as suas demandas, ele também não pode ser ignorado. “Creio que caibam numa metrópole vários modelos diferentes”, diz a missionária Bráulia Ribeiro, colunista da Ultimato e doutorando no Seminário Teológico Fuller. “Exatamente pela natureza plural superlativa das grandes cidades, quanto mais variados os modelos, mais gente eles alcançam. No Brasil, temos visto essa multiplicação de modelos”, diz.

A Capital Augusta funcionou por alguns anos na boate Outs – atraindo olhares de gente que, de outra forma, provavelmente não repararia em igreja alguma. O objetivo, garantem, não é chocar, mas estar num lugar estratégico para comunicar a Palavra de Deus. Tanto é assim que nenhuma estratégia de divulgação ou nenhum ministério ganha mais destaque do que a própria igreja: quando o site da Capital ficou grande demais, com milhares de seguidores que não tinham nenhuma relação com a comunidade local, Júnior e seus companheiros de caminhada resolveram acabar com ele – mantiveram apenas uma página para informar sobre as reuniões.

Outra igreja missional, mais antiga, nasceu de um casamento (à primeira vista improvável) entre uma denominação pentecostal e as culturas urbanas. Pastor da Igreja Quadrangular dedicado à formação de missionários, Sandro Baggio capitaneava um ministério com roqueiros no Ipiranga, o “Refúgio do Rock”, em meados dos anos 1990. Como os tatuados metaleiros frequentadores não se enquadravam no modelo de crente tradicional, ele teve a ideia de, ainda ligado à Quadrangular, plantar uma igreja onde as pessoas pudessem manter seu estilo, curtir seu som e fugir do “evangeliquês”.

O Projeto 242 surgiu em 1998, e seus membros já se reuniram em hotel, na região da Paulista, depois numa casa, na Vila Mariana, até ganhar um espaço na Vila Liberdade. No local, os participantes do P242 imprimiram sua cara: uma igreja jovem, com gente antenada em cultura. As cadeiras são dispostas em torno de mesas, com luminárias acima, como num pub. Nas paredes, muitos quadros – um deles, na entrada, chama bastante atenção: uma reprodução de “A Criação de Adão”, afresco de Michelangelo feito na Capela Sistina, que provavelmente faria um crente mais iconoclasta ranger os dentes, mas que encanta qualquer aficionado por arte, e ainda tem seu valor simbólico, como se dissesse que é por meio da igreja que o homem toca Deus.

Tanto Sandro quanto Junior entenderam, desde o início do 242 e da Capital, respectivamente, que não poderiam alimentar o discurso anti-eclesiástico de gente que se achegava desiludida e ferida de vivências comunitárias anteriores. O primeiro slogan do Projeto 242 foi emprestado da Willow Creek, “uma igreja para quem não gosta de igreja”. Mas, mesmo depois de se desligar da Quadrangular, a proposta jamais deixou de ser ligada à comunidade local. Por isso, mesmo tendo nascido num meio de roqueiros, o 242 nunca se entendeu como um ministério para roqueiros. Eles optaram simplesmente por ser uma igreja local que acolhesse gente que tivesse estilos não tão bem aceitos em outras igrejas locais.

Por isso mesmo, quase 15 anos depois, ali não congregam apenas pessoas da cultura rock (embora ela ainda domine os momentos musicais). Realmente, o 242 se diferencia no formato, mas o culto não chega a assustar um cristão ligado a alguma denominação mais tradicional. Fora alguns dreads, uns óculos de acetato, o mar de bermudas e a linguagem informal, a essência e a mensagem são a de uma igreja evangélica: dos assuntos teológicos centrais como dependência de Deus e salvação em Cristo até temas de comportamento como pureza sexual e serviço ao próximo. “Nosso objetivo é ser uma comunidade como em Atos 2.42”, diz Sandro, citando o texto do qual saiu seu nome.

Para quem está acostumado aos modelos mais convencionais, igrejas diferentes podem parecer uma ameaça à fé. Não precisam ser, desde que os irmãos reunidos tenham em mente que não há novo modelo que substitua o fato de a igreja ser necessária, conforme Hebreus 10.24,25: “E consideremo-nos uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras,não abandonando a nossa congregação, como é costume de alguns, antes admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais, quanto vedes que se vai aproximando aquele dia”.

Bráulia Ribeiro lembra que “a contextualização da mensagem não só é possível, mas necessária. A Reforma foi um rompimento com as formas culturais engessadas da Igreja Católica, como o latim que limitava a leitura da Bíblia ao clérigo. Isso não é algo novo”. Bomílcar, em seu livro Os Sem Igreja, diz: “Não entendo como existem líderes e pastores que ainda se assustam com as fortes mudanças e os caminhos novos na formatação das igrejas, principalmente quando, em muitas delas, o conteúdo tem sido preservado, a missão de fazer discípulos tem sido recomendada e os serviços e as ações de cunho social e comunitário, ampliados”. Como diz o teólogo alemão Gehrard Lohfink, que escreveu Deus precisa da Igreja? (Loyola), “a igreja não veio ao mundo como um produto acabado. Apesar de já estar completa desde a sua fundação, é necessário que ela cresça e se desenvolva”.

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