Por: Mateus Ferraz de Campos
Uma das expressões mais utilizadas pelos cristãos da atualidade para se autodefinirem enquanto povo de Deus é a expressão cunhada pelo apóstolo Paulo em sua carta aos Romanos: “Somos mais que vencedores” (Rm 8.37). Essa expressão, quando compreendida à luz de toda a carta aos Romanos, constitui uma das mais belas declarações da fé cristã; entretanto tem sido mal interpretada e mal utilizada como uma espécie de bordão de marketing que, na boca de alguns, acaba transmitindo um tom de presunção e superioridade.
Dizer que são mais que vencedores, para esses, é assumir uma postura arrogante, olhando do alto das plataformas para os reles pecadores como seres inferiores. Agem como seres supra-humanos, que se encontram em uma situação existencial superior ao resto da humanidade. São os que bradam discursos de auto-ajuda, apelam persuasivamente dizendo: “Pare de sofrer!” e fomentam no povo um desejo pelos bens desta terra destinados aos “filhos de Deus”.
Essa retórica pseudocristã levou-me a uma reflexão. Existe um perigo muito sutil cerceando cada cristão: o perigo de deixar de ser mais que vencedor para ser vencedor demais. E, pelo que tenho percebido, a linha entre um e outro é mais fina do que parece.
Modelos Gregos
Os gregos criaram duas propostas que têm servido de paradigma para o pós-cristianismo: o heroísmo e o estoicismo.
O herói, na cultura grega, era um ser que se situava existencialmente entre os deuses e os homens. Era, em geral, filho de um relacionamento entre um deus e uma mortal, ou vice-versa, e, portanto, tinha uma natureza semidivina. Não era um deus, pois estava abaixo deles, mas também não era homem, pois estava acima destes. Conseqüentemente, ele conseguia transitar pela esfera da existência humana sem necessariamente se afetar pelas mazelas características da humanidade.
Esse padrão se vê também nos heróis modernos como o super-homem. Alguém que circula pela existência humana, ora disfarçado de um reles mortal, ora voando com sua capa vermelha, mas sempre isento das dores que fazem parte da existência na Terra. O que faz do herói um ser supra-humano são suas virtudes especiais, que lhe possibilitam não somente voar acima da miséria como também salvar alguns dos miseráveis.
O estóico, por sua vez, não é por natureza supra-humano. O estoicismo, uma escola de filosofia grega fundada por Zenão de Cítio no século III a.C, pregava um afastamento da vida. O ideal estóico era a insensibilidade, a capacidade de se revelar imperturbável diante das tensões da vida, fossem elas quais fossem. Por meio da racionalização, os estóicos procuravam domesticar suas emoções para que nada na vida lhes parecesse surpreendente. O estóico ideal era aquele que não se alegrava em exagero e também não sofria em demasia. Diz-se que por meio dessa filosofia alguns conseguiam até mesmo minimizar a sensação da dor física. Não choravam em funerais, não celebravam nas festas e assim mantinham uma distância de segurança em relação à vida, distância essa que lhes assegurava a felicidade.
O que é comum em ambas as propostas é que tanto o herói quanto o estóico se distanciam da humanidade. Seja pela convicção de suas virtudes superiores, seja pela busca da felicidade, ambos acabam assumindo uma condição paralela à humanidade.
O cristianismo dos vencedores demais segue essa tendência. O cristão herói, consciente das suas virtudes superiores (concedidas pela graça de Deus, é claro!), vive como super-homem. Constrói seus supertemplos onde faz suas supercampanhas e oferece suas superorações aos aflitos e miseráveis. Sobrevoa a humanidade, vendo o sofrimento lá de cima, e intervém heroicamente quando vê uma criança prestes a ser atropelada por um ônibus. Nunca se afeta pela dor, pois está em uma condição existencial superior. Ele tem um mundo a salvar, um arquiinimigo a derrotar e uma imagem a zelar. Mas nunca derrama uma lágrima.
De alguma forma, os valores da fraqueza e da vulnerabilidade se perderam nesse cristianismo. Fala-se da cruz, mas de maneira bem rápida, com ligeira vergonha, pois a verdadeira vitória foi a ressurreição. Se alguém pede ajuda, o supercristão estende a mão e ora poderosamente. Interrompe os pedidos de socorro no meio e oferece logo a solução para que possa partir rapidamente. Está sempre com pressa, sempre voando.
O cristão estóico, por sua vez, é racional. Mantendo uma segura distância da vida, ele a contempla como se estivesse eternamente anestesiado. Diante do choro da viúva, racionaliza: “Seu marido está melhor com o Senhor”; diante da tragédia, saca suas verdades teológicas: “Foi da vontade de Deus”; recusa-se a vivenciar a dor do outro, pois isso o afundaria na tão desprezível humanidade.
O estóico, por vezes, se justifica pelas amarguras do passado, explica que seus calos são na verdade proteções adquiridas ao longo dos anos a fim de sobreviver. Não se maravilha com milagres, não se alegra com testemunhos, não se espanta com os mistérios e não reage ao sofrimento. Vive além ou aquém da vida e nunca derrama uma lágrima.
O Modelo de Jesus
Quando olhamos para Jesus, vemos como essas propostas pós-cristãs se afastam do verdadeiro cristianismo. Jesus, sendo soberano, poderia ter assumido justificadamente qualquer uma dessas posturas. Afinal ele, sim, tinha superpoderes. Andava sobre as águas, multiplicava pães e peixes, realizava sinais e maravilhas e até ressuscitava mortos.
Contudo, longe de ser um herói, vivendo existencialmente entre Deus e os homens, ele fincou os dois pés na humanidade sem deixar de ser Deus. Era por isso que podia não só curar o leproso com o olhar ou com uma palavra mágica, mas tocá-lo para curar, além do corpo, a sua alma. Era isso também que lhe permitia pisar no chão batido do pecado para dividir o pão com pecadores ou ser tocado por prostitutas.
Jesus não foi heróico nem estóico, pois verteu lágrimas. Diante da morte de Lázaro, mesmo sabendo de sua iminente ressurreição, ao perceber a dor de Maria, agita-se no espírito e chora, autenticando sua humanidade. Se fosse herói, faria cessar o choro com um sorriso superior. Se fosse estóico, sacaria uma resposta teológica fazendo os enlutados se envergonharem de sua incredulidade. Ao invés de um e de outro, escolhe chorar.
Nada melhor do que as lágrimas para nos lembrarmos de nossa humanidade. Nada melhor que o choro para nos fazer compreender a dor do outro. Quando nascemos de novo, não nascemos supra-humanos; pelo contrário, voltamos à verdadeira humanidade. Aquela humanidade inicialmente criada por Deus no Éden e que foi desumanizada pelo pecado. Quando somos nascidos de novo, nascem novas lágrimas em nosso olhar. Um choro que surge como uma reação ao desumano. Lágrimas de constante quebrantamento, lágrimas solidárias, lágrimas de Deus vertidas em nossos olhos.
Quando olhamos para Jesus, vemos que nada pode ser mais anticristão do que dizer: “Pare de sofrer”, pois sabemos que pisamos no chão da humanidade e damos nossas mãos aos pecadores para chorar com eles e, assim, facilitar a sua cura e ressurreição. Afinal a alegria que vem pela manhã só faz sentido depois do choro que durou toda a noite. A bem-aventurança do consolo é destinada somente aos que choram, pois são esses que no final terão seus olhos enxugados pelas mãos de Deus.
“Em todas estas coisas, porém, somos mais do que vencedores, por meio daquele que nos amou” (Rm 8:37).
Mateus Ferraz de Campos é pastor na Igreja do Nazareno em Americana, SP e líder do ministério Canto do Céu (www.cantodoceu.com.br).É casado com Renata e tem um filho. Visite o seu blog: prmateusferraz.blogspot.com