Por: Eliasaf de Assis
A única dica de que eu continuava na Grande São Paulo era o avião que sobrevoava baixo a rodovia, em direção ao aeroporto internacional. Deixando a pista principal e tomando uma alça de acesso, logo me embrenhei por uma bucólica paisagem, um inesperado visual de roça para alguém que deixou a cidade de São Paulo há menos de 20 minutos. Sinuosos 15 minutos depois, a estreita estradinha, ladeada por pequenas serras e quintaizinhos arborizados, chegou abruptamente ao fim. Deparei-me com a parede externa de uma casa, um caminho sem saída. Ao lado do carro, vi uma vaca, que ruminava desconfiada em um quintal.
“E agora? Isso será mais difícil do que planejei…”, pensei. Mesmo munido com mapas e roteiros “ponto a ponto”, baixados da internet, o endereço do meu futuro entrevistado teimava em não se revelar. Foi difícil manobrar: tinha que evitar a vaca na lateral, o barranco na traseira e um muro na minha frente. Abri o vidro e cruzei o olhar com um senhor, recostado na cerca de sua casa com uma atitude tão investigativa quanto a vaca. O homem na cerca, a vaca, a chuva que começou a cair… Tudo parecia condizer com o lugar, exceto eu.
Perguntei se a numeração da rua estava correta, o homem balançou a cabeça bovinamente. “O senhor conhece o Roberto Diamanso?” O mesmo olhar, meio cômico. “Ele é músico, toca violão. O senhor conhece?” Não conhecia. “Sabe onde mora o homem que tem 10 filhos adotados?” O rosto do homem se iluminou, e ele apontou a estrada atrás de mim. Explicou-me o caminho, deu-me referências. Girar o carro 180 graus exigiu perícia, direção hidráulica e oração.
Mesmo com as indicações, levou algum tempo para encontrar a casa, um sobradinho grande e bem simples, empoleirado no alto de um barranco. Saí do carro correndo, numa tentativa descoordenada e vã de evitar a chuva e driblar as poças d’água. Fui atendido por uma jovem recatada que me conduziu a uma área coberta e sem paredes onde, em uma sala anexa, uma parede estava decorada com atividades infantis. Dezenas de desenhos idênticos, com um motorista ao lado de um carro e a frase “Entrego o meu caminho ao Senhor”. Apropriado.
A professora da escola bíblica simpaticamente concatenou uma conversa. Seu nome é Denise, cunhada do Roberto. “Roberto é muito ativo”, me diz. “Foi levar os meninos em uma reunião aqui perto. Foi com a Kombi, volta com a moto.” Descubro que ele carrega a moto dentro da Kombi. Passado algum tempo, Roberto chega: o acelerador da moto quebrou, e ele puxa o cabo com a mão, num misto de pilotagem e pescaria. A moto, de uma aparência lastimável, não merecia nem figurar neste artigo.
Ele mostra-me a casa e o terreno, uma área grande e bem arborizada. Postes, tijolos, barras de ferro e telhas já usados foram reutilizados por esse hábil poeta e músico que também é um criativo pedreiro. Acredite: lá na casa do Diamanso, a palavra reciclagem encontra corporalidade. Eles reaproveitam tudo, em um estilo de vida que é um mix maravilhoso de simplicidade, consciência ambiental e dependência de Deus.
A meu pedido, ele recita os versos que fez sobre Apocalipse e ecologia. Sonoridade, beleza lírica e visão de mundo cristã estão presentes em suas músicas e poemas. Roberto Diamanso é um músico consagrado, que transita com desenvoltura entre ambientes seculares e evangélicos, e tem sua prosa e versos apreciados por muitos intelectuais cristãos. Sua versão em literatura de cordel para “O peregrino”, de John Bunyan, ainda não lançada, é uma pérola, uma obra de arte que merece atenção dos apreciadores da boa literatura cristã.
Embora impressionado pela manifestação tão bonita da multiforme Graça de Deus nesse homem, empreendi esta viagem por outro motivo, mais extravagante do que sua fecunda criatividade. Roberto é pai de 13 filhos, 10 dos quais adotivos. Imagino que todas as mulheres que me lêem agora querem saber mais… sobre a mulher do Roberto! E por esse motivo vamos a América.
O descobrimento de América
“Quem é esta que sobe do sertão,
Exalando o perfume das flores das campinas?
Mulher que as meninas dos meus olhos amam.
(…).
Mundo novo, amor,
América que eu descobri, e cubro com meu cobertor” .
América é serena e objetiva, mais do que se poderia esperar de uma mãe atarefada. Arte-educadora e psicopedagoga, cuida da casa e ainda leciona em um curso noturno para inclusão de jovens socialmente marginalizados.
Sentei-me à mesa da pequena cozinha, e ela contou a história da família:
Quando nos conhecemos, o Roberto já era músico, e eu pintava; atuávamos juntos em movimentos de arte. Depois de casados, trabalhamos na Febem, desenvolvendo trabalhos com meninos de rua. Éramos politicamente engajados nesse trabalho.
Do ponto de vista estrutural, na Febem há educação, alimentação, moradia… Os meninos são de origem muito pobre e têm ali o que não tem na casa deles. Geralmente, em termos materiais, é uma das melhores fases que tiveram até então. Mas nada disso atinge as estruturas emocionais ou transforma a pessoa. Quando Paulo Freire visitou a Febem, fizeram a ele uma pergunta: “Como a Febem pode transformar alguém?”. A gestão do governo era bem progressista, mas ainda assim a resposta do grande pedagogo teria sido taxativa: “É impossível que isso ocorra. Uma instituição que foi gerada como resultado do egoísmo das pessoas não pode transformar alguém”. A Febem não surgiu do compromisso do amor, mas da necessidade de dar um jeito, excluir o jovem contraventor.
Na Febem, vemos crianças mergulhadas em uma perversidade tão grande que só pode ser explicada pela queda. O homem não se dá conta da maldade que o domina.
Eu fazia parte da Convergência Socialista e, fascinada pelo intelectualismo, não tinha o menor interesse em nada que tivesse a ver com a fé cristã. Mas era sedenta por espiritualidade e cheia de problemas, tendo inclusive passado por uma tentativa de suicídio aos catorze anos. Éramos muito místicos e envolvidos com esoterismo e bruxaria. Passamos por um momento muito difícil em nosso casamento, chegamos a nos separar, não tínhamos mais nada a ver um com o outro. Então o Senhor me alcançou, e foi uma grande revolução!
Ela sorri, enquanto enche o meu copo de café.
Minha experiência com Deus foi algo muito louco! Eu pensava: meu Deus, como eu pude estar tanto tempo cega?!? Faz 17 anos e ainda acho esse momento muito maravilhoso. Todos que me conheciam estavam muito incrédulos com a minha conversão, inclusive o Roberto! Estavam acostumados a ver-me envolvida com tarot, astrologia, essas coisas… mas pouco depois, o Roberto também se converteu, um presente de Deus!
Fomos sendo restaurados em nosso casamento, e após uns sete anos, juntos novamente Deus nos chamou para trabalhar com as crianças. Não foi algo racional, como se nos reuníssemos dispostos a fundar uma ONG. Foi algo fora de nós, uma iniciativa que nasceu no coração de Deus e que não tinha nada a ver com nosso preparo ou maturidade. Se alguém me procurasse hoje na mesma condição em que estávamos e dissesse que Deus mandou que ele adotasse crianças, diríamos: “Olhe, veja bem o que você vai fazer…”.
O Senhor nos falou que seriam dez crianças. Oramos muito, nós dois e nossos três filhos biológicos. Por isso costumamos brincar, dizendo que, antes que as crianças chegassem aqui em casa, nós ficávamos grávidos delas. E o mais interessante é que as crianças adotadas chegavam no dia do aniversário de nossos filhos. E não foi algo que tenhamos programado. Temos três datas de chegada que coincidem com o dia em que nossos filhos biológicos nasceram! E tudo aconteceu no mesmo ano.
Jonas , com 10 anos, foi o primeiro. Ele chegou no dia 21 de fevereiro, justamente quando comemorávamos o aniversário de meu filho mais velho. Ele era o único sobrevivente de uma chacina em que sua mãe morreu, aos 23 anos. Foi baleado com cinco tiros e se curava dos pontos. Convalescendo em uma casa católica muito perto do local do crime, acreditou-se que era mais seguro que ele viesse morar logo conosco, e o juiz autorizou a remoção.
“Em 26 de maio, no aniversário de meu filho caçula, chegou o Maurício. Era um menino que vivia há muito tempo na rua e tinha sete anos. E então, em 20 de dezembro, chegaram oito. Foi um Natal e tanto!”.
“Você teve oito filhos de uma vez?”, pergunto, parecendo assustado. “Deve ser o único caso de octogêmeos do planeta!”. Rimos juntos. América explica:
Uma instituição havia fechado, e as crianças não tinham para onde ir. Eram dois grupos de famílias, com quatro componentes cada. Havia duas meninas. Temos 13 filhos, 11 são rapazes. Depois disso, ainda apareceram muitas crianças. Mas a gente sabia que não eram nossas, e orávamos para que elas encontrassem o seu caminho.
Uma missão ofereceu-se para nos ajudar. Passados dois anos, nos disseram que a ajuda estava encerrada! Nossas crianças eram todas tão pequenininhas… Mas acredito que faz parte do plano de Deus, para nos ensinar a não depender de organizações ou pessoas para fazer sua obra. Vimos tantas ONG’s abrirem e fecharem nesse período, as crianças assistidas se espalhando por aí. Mas sempre vemos o socorro de Deus. Nós nunca pedimos oferta ou ajuda, e o cuidado de Deus nunca faltou.
Ela interrompe a conversa, chega gente o tempo todo. Crianças, visitantes de longe com cesta básica ou querendo conhecê-los.
As crianças que adotamos foram duramente marcadas por todo tipo de abuso. Dentre outras coisas, algumas quase foram assassinadas pelos seus próprios pais. Pais bêbados jogavam os filhos sob automóveis em movimento.
No início, com meu entusiasmo humano para ajudar, eu queria ser integralmente a mãe deles. Mas as perdas por que passaram são muito significativas, e nenhum mortal pode suprir suas carências. Minha insistência nisso embaraçava-me na missão de levá-los a Deus, que é o único que pode suprir plenamente sua profunda falta de paternidade e maternidade. Afinal, foi o Senhor quem os protegeu desde a tenra infância.
Um deles tem vívidas lembranças de providencialmente acordar assustado quando sua mãe jogou álcool nos filhos e em si mesma para dar cabo da própria vida e de toda família. O parceiro da mãe conseguiu salvar as crianças, mas a mulher queimou-se muito e foi internada em um hospital.
Descobri que a vontade de Deus é algo mais profundo do que um serviço que você gosta e acha que sabe fazer. Deus nos conduzirá por caminhos onde se revelam nossa impotência e falta de habilidade. Muitas vezes eu disse: “Senhor, eu não sou a pessoa adequada para esses meninos. Tem tanta gente aí muito melhor que nós…” E várias vezes o Senhor superou essa minha inadequação e fez-me calar, pois quem nos escolheu foi ele.
O problema das instituições é cuidar de uma criança até os 18 anos e então despedi-la. As igrejas também não costumam entender a necessidade do cuidado e do mentoreamento. Não se valoriza o trabalho um a um, o lidar com poucos indivíduos em uma dedicada relação de mentoreamento a longo prazo. Nunca nos oficializamos institucionalmente, pois as igrejas apreciam receber relatórios constando como muitas crianças são assistidas e registrando vários casos estimulantes e concluídos para que as pessoas se envolvam.
Não soa tão dramático quando adotamos uma criança, e depois de 10 anos ainda estamos com ela, e a obra ainda está longe de estar terminada. Nossa estrutura é tão diluída; parece a muita gente, inclusive a nós, que nada está acontecendo. Há momentos de crise, em que perguntamos a Deus o que vamos fazer. Várias vezes as histórias serão tristes, e você não verá um happy-ending”.
O tempo passa, e as pessoas não estão tão bem integradas e saudáveis emocionalmente como desejaríamos. Podemos contabilizar muitas horas de choro, muito jejum e muita oração que ainda aguarda resposta. Talvez o final feliz nem surja agora, e só possa ser notado na eternidade. Tal como a construção do templo de Salomão, para o qual as pedras eram cortadas na pedreira, e o edifício construído sem barulho, é no silêncio que Deus construirá em nós a sua casa.
A entrevista termina, há crianças e visitantes para serem atendidos. No espaço sem paredes, Roberto saca o violão, ao pedido de uma platéia mirim feliz e interessada. Oramos, cantamos e comemos juntos, uma refeição cujo sabor é transcendido pela alegria da partilha. Enquanto volto para casa, na longa estradinha, penso em como pude sentir Jesus, não na liturgia, que não existia, mas na vida cotidiana, onde O Amor se empenha em sua mais dura prova que é continuar amando mesmo quando o objeto de nosso amor rejeita ser amado.
A Família Diamanso está empenhada em iniciar uma ONG para atender crianças da região.
Para maiores informações, escreva:
[email protected] ou
[email protected]
Ajude depositando sua oferta:
Bradesco
América de Oliveira Costa
Agência: 3229
Poupança: 1001571-5
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Eliasaf de Assis faz parte do Conselho Editorial da Revista Impacto e reside em São Paulo com a esposa Miriam e os três filhos. É sociólogo e professor universitário.
Uma resposta
Sensacional essa entrevista