Por João A. de Souza Filho
Em espírito e em verdade
Nesses últimos trinta anos, houve uma revolução na igreja brasileira – se não em toda, pelo menos numa boa parte dela. Deus, em sua misericórdia, usou vários homens e grupos nesta nação para trazer aos nossos cultos e ao estilo de vida da igreja uma nova maneira de se expressar em louvor e adoração. Não que a igreja anterior a esse período não soubesse adorar. Percebe-se, pelos hinos antigos, que a igreja anterior a esse período tinha noção clara do que era adoração, mas não expressava seus sentimentos como agora.
Para isso, a igreja precisou desaprender conceitos antigos. Entre outros, era a adoração ligada ao conceito de lugar. Era esse o conceito dos judeus no tempo de Jesus. A mulher samaritana falou a Jesus: “Nossos antepassados adoraram neste monte, mas vocês, judeus, dizem que Jerusalém é o lugar onde se deve adorar”. Vê-se nessa abordagem a adoração ligada ao conceito de lugar. Como somos proibidos de agarrar-nos a objetos (Dt 4.12,15), agarramo-nos a lugares!
Jesus respondeu à mulher informando que “os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade”. O que é adoração em espírito e em verdade? Não é uma adoração em forma de… Os judeus estavam acostumados à forma, aos sacrifícios, aos elementos, e precisavam adaptar-se a uma forma de adoração invisível!
Em verdade quer dizer que não é uma adoração que precise de coisas exteriores, como ambiente, cores, etc., e em espírito, porque Deus é Espírito, não tem corpo, nem precisa de lugar. Pode ser adorado em qualquer lugar! (At 7.48-50; 17.24-25).
Para entender o que Jesus quis dizer, temos de estudar por analogia. Jesus está falando de espírito e vida, de alma e corpo, de mística e razão, de fé e pragmatismo! Por exemplo, em Mateus 22.29, Jesus diz: “Vocês estão enganados porque não conhecem as Escrituras nem o poder de Deus!” A Escritura apela ao intelecto. O poder apela à fé!
Alguns conhecem apenas as Escrituras e, por isso, sua adoração limita-se ao intelecto, enquanto outros só conhecem o poder e perdem o equilíbrio quando adoram, porque perdem as Escrituras! São duas coisas espirituais: uma apela à razão, outra à emoção. Mística e fé em contraste com a razão! A fé é uma coisa mística! Por exemplo, orar e falar com Deus são coisas místicas, porque não se vê a Deus.
Assim, quando se adora a Deus sem espírito e sem verdade, temos apenas religião. Quando se adora a Deus mais em espírito do que em verdade, temos mais emoção que informação. Quando se pensa em buscar o conteúdo teológico, em satisfazer a razão e não os sentimentos, adoramos a Deus mais em verdade do que em espírito. Portanto, a vida cristã é mística e pragmática! Razão e fé são duas coisas que acompanham nossa adoração e nossa comunhão com Deus todos os dias. A Bíblia satisfaz a razão e a fé.
A mística da adoração – em espírito!
Os místicos da igreja criaram termos como união da alma com o Criador, algo que começa no entendimento, passa pela vontade, domina o nosso ser e, por fim, alcança o mais profundo de nossas almas. Também inventaram o termo ócio santo, para explicar o momento em que na adoração e na oração ficamos passivos, deixando Deus agir. Ainda outra expressão é recolhimento. Um deles afirmou: “Ficamos tomados de intensa admiração que alarga a alma, enchendo-a de alegria e prazer, ao descobrir em Deus tantas maravilhas de amor, bondade e formosura. Outras vezes, o silêncio espiritual deixa a alma atônita, absorta, e prostrada diante de tanta grandeza”.1
Embriaguez de amor expressa o momento da adoração quando se sente o gosto da doçura de Deus. Nesse nível de adoração, dizem, “a alma ora se derrete, ora salta de alegria, comportando-se com loucuras de amor, em cânticos de louvor, convidando a todas as criaturas a que louvem tanta bondade”.2 E foram mais além, inventando a expressão embriaguez espiritual, momento em que “a pessoa sente uma fragrância, um cheiro suave que conforta a alma e o corpo. Outras vezes, sente um gosto, um sabor na língua, dando-lhe refrigério. Às vezes, começa a dançar. Juan de Jesus Maria, no livro Escola de Oração, chama isso de embriaguez espiritual”.3
Discernindo entre o verdadeiro e o falso
A música tem o poder de elevar a pessoa a um nível espiritual em que pode ser facilmente enganada, achando que está num território divino, quando está pisando num mundo espiritual falso. Os místicos da igreja descobriram que o mundo espiritual é todo mui semelhante, e que as manifestações, sejam elas divinas ou satânicas, deixam-nos com tremor e temor. Não se pode definir se o que se experimentou foi de Deus ou do diabo apenas pelas luzes, cores, vozes ou anjos.
Criaram, contudo, uma pequena regra para perceber se a experiência espiritual é de Deus ou do diabo. Quando é divina, depois da manifestação, a pessoa se torna mais humilde, amorosa, submissa e quebrantada; sua tendência é esconder dos demais a experiência que teve, porque o que aconteceu foi entre ela e Deus. Por outro lado, quando é satânica e vem mascarada de sã espiritualidade, a pessoa, depois da manifestação, torna-se mais orgulhosa de sua espiritualidade, rebelde e insubmissa. Por isso, os mais “espirituais” tendem a ser os mais rebeldes!
Assim, podemos dizer que a música pode levar o indivíduo para “cima” ou para “baixo”. Quando o adorador penetra no mundo espiritual, transita entre o falso e o verdadeiro, entre o divino e o satânico, porque penetra no campo da mística ou das revelações.
Entre os dons espirituais, três são de revelação: palavra de conhecimento, sabedoria e discernimento de espíritos. O que se vê e se recebe nessa área transcendem a razão, ou seja, estão além do conhecimento humano; daí a necessidade do discernimento de espíritos que permite julgar a fonte do conhecimento e da sabedoria! E na adoração, a música penetra nesse campo transcendental.
Paulo aborda essa questão quando fala sobre orar em línguas, explicando que é algo tão sobrenatural que o espírito ora enquanto a mente fica infrutífera! Daí dizermos que a experiência cristã é ao mesmo tempo mística e pragmática. Quando se ora em línguas, é mística; quando se interpreta, o Espírito Santo traz a revelação ao nível do entendimento humano, porque a vida cristã não é de mistério, mas de revelação! Ele diz: “Cantarei com o espírito, mas também cantarei com a mente”. E na adoração com música, canta-se com a mente, mas também com o espírito!
Quando se canta no espírito, entramos no mesmo terreno do falar em línguas – nada se entende a menos que haja interpretação! O verdadeiro cântico espiritual é dinâmico, melódico, tem altos e baixos e um cântico difere do outro! Cada qual tem melodia e letra próprias. E varia de uma pessoa para outra.
Cântico espiritual ou mantra?
Portanto, é muito fácil entrar numa área falsificada e confundir mantra com cântico espiritual. A divisa ou fronteira entre os dois é tênue, imperceptível, se não houver discernimento! Mantra – que significa libertar a mente – é um tipo de oração cantada, muito utilizada pelos hindus em sua invocação. Fica-se no mesmo tom, repetindo-se a mesma palavra, seja com ou sem música. A repetição dos mesmos acordes, da batida do violão, o mesmo tom no teclado, a mesma batida da percussão, repetindo-se sílabas ou frases, em muitos cultos ou momentos de adoração, mais parecem mantras do que cânticos espirituais.
Apesar da semelhança entre os dois e da necessidade de verdadeiro discernimento espiritual para entender a diferença entre alma e espírito, precisamos começar com um entendimento básico da distinção fundamental entre um e outro. No mantra, a mente é anestesiada e a pessoa entra num mundo aberto a espíritos enganadores. Repetem-se as mesmas palavras ou sons talvez por horas a fio. A composição de sílabas é um mistério e não há nenhum esforço para trazer entendimento à mente.
Por outro lado, no cântico espiritual, mesmo que seja em línguas, Paulo orienta que haja interpretação, pois o Espírito Santo faz questão de revelar os segredos e mistérios. Há uma linha melódica definida que leva a pessoa a ter comunhão com Deus, unindo todo o seu ser, espírito, mente, emoções, sentidos naturais e físico, sem sufocar ou violar nenhuma de suas funções, e sem precisar assumir uma outra personalidade.
O perigo dos “mantras” coletivos de nossos cultos é que as pessoas não sabem o que está acontecendo, pois a indução é imperceptível. Nas religiões orientais, onde o mantra é usado, as pessoas se entregam voluntariamente, pois acreditam naquela porta ao mundo espiritual que é oferecida. O verdadeiro cântico espiritual é conduzido pelo Espírito, e não induzido por alguém, por música ou por batidas de instrumentos! Leva o adorador a ter contato com Deus, e não o deixa aberto a outros espíritos. Por isso Jesus nos orienta a adorar em espírito, mas também em verdade!
Adoração como serviço – em verdade!
Muitos não entendem que adoração é estilo de vida, é serviço. Como vimos acima, os místicos sabiam que a adoração não se resume à mística; adoração é serviço! Os maiores místicos – ou adoradores – foram também os que criaram as maiores obras sociais nos seus dias.
George Muller foi um dos místicos do passado, e foram dele as maiores obras sociais, porque o adorador expressa horizontalmente o que verticalmente experimentou. A comunhão com Deus redunda em serviço. É a cruz. Uma estaca aponta para cima, os braços, para os lados.
Logo depois de sua ressurreição, Dorcas não saiu mundo afora testemunhando o poder de Deus em sua vida. Continuou a costurar vestidos para as viúvas de sua cidade. Fazer túnicas era a forma como ela adorava a Deus! Adoração e serviço devem estar tão entrelaçados como se fossem um só ato! Por quê? Porque se nossa adoração não resultar em serviço, perde seu valor!
Nossa comunhão e nossa adoração, se não resultarem em obras, perdem seu sentido. Os profetas e mestres adoraram a Deus em Antioquia, e o Espírito Santo achou por bem que toda aquela adoração resultasse na conversão dos gentios, e os enviou a pregar o evangelho.
São poucos os textos do Novo Testamento que nos incitam à adoração, mas são muitos os que nos exortam ao serviço. É que temos a tendência de nos agarrar ao místico, ao sobrenatural, ao misterioso, a tudo o que enleva a alma.
A sogra de Pedro, logo depois de curada da febre, passou a servir a Jesus. Foi a maneira que encontrou para adorar: servir! As mulheres que acompanharam Jesus durante os três anos e meio de seu ministério o adoravam, servindo; entre elas estava Maria Madalena de quem Jesus expulsara sete demônios! (Lc 8.2-3). Se você pesquisar no Novo Testamento, descobrirá que servir ao próximo e a Deus é uma forma de adoração aceita por Deus. E que seu galardão no céu não será pelo tempo em que esteve prostrado adorando, mas pelas obras que seu serviço – em adoração – deixou diante de Deus.
O que devemos, isso sim, é discernir quando o serviço que fazemos é fruto do ativismo. Muito se pode fazer apenas por ativismo; mas muito e melhor se a obra for feita como resultado de nossa adoração a Deus!
Adoração como guerra
Por último, precisamos entender que servir a Deus é uma guerra de adoradores. Essa verdade está implícita nas guerras do passado. A vitória numa guerra era sempre creditada a algum deus! Tirar o povo de Israel do Egito com mão forte e poderosa, destruindo a nação e o exército de Faraó, foi a maneira que Deus encontrou para humilhar os deuses egípcios.
Em 2 Reis 3.21 a 27, os reis de Israel tomam o profeta Eliseu e o levam a uma guerra contra o rei de Moabe. O rei de Moabe, ao ver que a batalha estava perdida, numa tentativa de ganhá-la, ofereceu 700 homens que usavam da espada. Todos morreram num só momento. Vendo que não podia vencer, sacrificou seu próprio filho sobre o muro da cidade. Chateados com o que viram, os israelitas deixaram de guerrear e voltaram ao seu país.
Na realidade, o rei de Moabe procedeu como faziam os povos da época. Sacrificou primeiramente os 700 homens e, como isso não bastasse para lhe dar a vitória, sacrificou seu próprio filho! Adoração envolve sacrifícios. O sacerdote oferecia primeiramente animais. Quando estes não lhe davam vitória, oferecia vidas humanas, começando por seus servidores, depois os membros da família e, por último, a si mesmo em oferta!
Ora, sabemos que os “santos” adorados pelo país afora não têm poder algum, mas por que se lhes atribuem tantos milagres? Pela adoração que lhes é prestada. O diabo não tem tanto poder assim, mas a adoração é que concede autoridade a ele e aos demônios! Creio que a decisão de Josué resume o que quero afirmar: “Escolham a quem vocês vão servir, porém eu e a minha casa serviremos ao Senhor” (Js 24.15).
É uma guerra de deuses! Os sacerdotes pagãos davam a vida a favor de seus senhores! As grandes guerras terminavam em festas e em honra aos deuses. Foi assim na luta entre Davi e Golias (1 Sm 17.31-53), em que um ameaçou o outro em nome de seu deus. Noutra ocasião, quando Davi saiu à batalha contra os filisteus, Deus lhe deu um sinal fazendo um estrondo sobre a copa das amoreiras (1 Cr 14.8-12). Outra vez, os deuses entravam na batalha, nesse caso, o Deus de Israel contra o dos filisteus! E assim em toda a Bíblia. Nesse sentido, a adoração a Deus o enaltece e o faz sobrepujar os inimigos! Por isso, Davi exclama no Salmo 138: “Na presença dos deuses, a ti cantarei louvores”.
Adoração, portanto, é um estilo de vida que inclui comunhão com Deus e com os irmãos; contemplação, prostração e vida de serviço. Henri Nouwen era um adorador, com vida intensa de devoção; e sua devoção a Deus resultou numa vida prática em que abandonou a cátedra na universidade para cuidar de pessoas excepcionais, problemáticas. E assim procederam os místicos em todas as épocas. Quando a igreja entender que adoração não é um momento do culto, mas um estilo de vida e de serviço, agradará muito mais a Deus, porque a verdadeira adoração é sempre em espírito e em verdade!
1- ARINTERO, I. J. Biblioteca de Autores Cristianos, Tomo 91 p. 570.
2- Ibidem p. 571
3- Ibidem, p 571
João A. de Souza Filho reside em Porto Alegre, RS, é pastor, conferencista e autor de vários livros. Site: www.pastorjoao.com.br
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A Verdadeira Adoração
Eles eram filhos de trabalhadores. Durante longos anos, muitas gerações de pessoas haviam experimentado a dura realidade do trabalho forçado. Nenhuma daquelas pessoas sabia o que era a liberdade. O único contexto que conheciam era o da escravidão. A despeito disso, viviam impulsionadas por uma esperança. Em seus corações, guardavam uma promessa. Os seus antepassados lhes haviam contado a respeito de uma terra de liberdade. Por isso, aqueles homens não desistiam. Eles criam que, um dia, Deus os libertaria e estariam livres para ir embora.
Certo dia, um ancião, de aproximadamente oitenta anos, chegou ao lugar onde estavam os trabalhadores. Depois de reunir os líderes daquela gente, ele fez as pessoas se lembrarem da antiga promessa. À medida que falava, as pessoas se emocionavam com a esperança de se verem livres. Todos sonhavam com a terra de liberdade e com a possibilidade de ali viverem o resto de suas vidas. A alegria e a satisfação tomaram conta do coração das pessoas. Então, movidos por intensa gratidão, elas, espontaneamente, se inclinaram e adoraram a Deus (Êx 4.29-31).
A verdadeira adoração é movida por princípios semelhantes a esses. Em primeiro lugar, a verdadeira adoração não é, necessariamente, motivada por sonhos que se tornaram realidade. Antes, ela é fruto da confiança em Deus. Ela é sempre motivada pela certeza de que as promessas de Deus se cumprirão, ainda que as circunstâncias tentem dizer o contrário. Ou seja, mesmo vivendo no contexto da escravidão, as pessoas adoravam a Deus, pois criam que Deus cumpriria a promessa, e que logo estariam livres. Elas não adoraram só depois que já estavam livres. Adoraram quando vislumbraram o cumprimento da promessa de Deus. A adoração verdadeira, portanto, é sempre motivada pela fé, pela convicção de que Deus é fiel para cumprir tudo o que prometeu.
Em segundo lugar, a verdadeira adoração é sempre espontânea. Ela vem do coração. Não é resultado de uma liturgia pré-elaborada. Não é fruto de uma mente perspicaz. Não resulta da obediência aos comandos de pessoas. Nasce do desejo interior de adorar a Deus. Na verdadeira adoração, a pessoa é movida pelo Espírito de Deus e não se importa com o que os outros vão pensar. O povo de Israel, após ouvir a palavra da promessa, creu e, mesmo sem ouvir qualquer palavra de comando, se inclinou e adorou a Deus.
Pr. Gustavo Bessa – é pastor de jovens da Igreja Batista da Lagoinha.