Por Mateus Ferraz de Campos
Um dos maiores erros que o ser humano pode cometer em sua relação com Deus é o reducionismo. Por não conseguir compreender toda a plenitude do ser infinito de Deus e de suas verdades, freqüentemente o homem adapta essas verdades eternas à sua compreensão finita.
É assim que os mandamentos de Deus tornam-se regras de um legalismo frio. É assim que a oração torna-se mera repetição de palavras inócuas. É assim que o relacionamento Pai-filho intencionado por Deus é vivenciado como mera religiosidade por muitos cristãos.
A adoração, que constitui uma das características vitais do relacionamento com Deus, não escapa às garras do reducionismo. Aquilo que foi pretendido por Deus para ser algo dinâmico e contínuo tem sido reduzido a um mecânico ato cerimonial.
Basta olharmos para a concepção que temos hoje de tudo o que envolve a adoração. Ela é compreendida como uma parte de nosso sistema religioso, marcada por um momento específico do culto, atitudes específicas e posturas específicas. Para começar, na concepção cristã moderna, a adoração está intrinsecamente vinculada à musica. O chamado “ministério de louvor e adoração” criou uma elite ministerial que exalta a figura do músico, equiparando-o ao levita do Antigo Testamento. Obviamente algumas características do ministério levítico, especialmente no tabernáculo de Davi, incluíam a atribuição da ministração ao Senhor através da música. No entanto, a música em si não compreendia a totalidade do que representava o ministério levítico.
Além da questão musical, vemos esse cerimonialismo expresso de diversas formas: em canções específicas para adoração, em expressões corporais específicas de adoração (levantar as mãos, bater palmas, etc), em períodos de louvor que normalmente antecedem a mensagem, considerada a parte principal do culto; enfim, estes e outros componentes semelhantes fazem da adoração um momento definido “encaixado” dentro da liturgia cristã.
Nossa visão ritualística da adoração vem, na verdade, dos modelos veterotestamentários em que existia um lugar (o tabernáculo), um ritual (o sacrifício) e uma postura altamente rígida para a prestação do culto. Tudo exigia um momento certo, um lugar certo, um procedimento certo e uma postura certa.
Essa rigidez do cerimonial traz consigo uma característica importante que tem sido muitas vezes esquecida na igreja do tempo da graça: a reverência. Existia um grande temor por parte daqueles que eram responsáveis por essas expressões de adoração. Temor este que os levava à excelência no que dizia respeito à qualidade do ritual.
No entanto, será que a adoração pretendida por Deus para o seu povo era ritualística?
As Origens da Adoração
Se olharmos para o início dos tempos, em busca da primeira referência a um ato de adoração, não o encontraremos no jardim do Éden. Surpreendentemente, não vemos nenhuma referência a atos de adoração praticados por Adão e Eva no paraíso. Nenhuma orientação divina dizendo a Adão: “Quero que você me adore assim”. Nenhum altar, nenhuma oferta, nenhuma expressão de adoração por parte do homem ao seu Criador.
Isso é intrigante. Em um ambiente completamente livre do pecado, em uma atmosfera de comunhão plena entre criatura e Criador, espera-se que haja adoração. A Bíblia é clara em dizer que a própria criação reage a Deus em adoração: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos” (Sl 19.1).
Sendo assim, por que não vemos a mais nobre de todas as criaturas adorando a Deus? Por que não vemos nenhum salmo, canto, ou registro de qualquer adoração atribuída ao primeiro dos seres humanos?
Mais intrigante ainda é o fato de que a primeira referência a um ato de adoração vem depois da queda. É somente depois da entrada do pecado na realidade do homem que vemos a primeira oferta – a oferta de Abel. Ora, Abel, bem como Caim, devem ter aprendido a respeito da necessidade de adorar com seu pai. Por que, então, não vemos nenhuma referência a sua adoração no jardim? Não havia adoração no jardim?
A resposta é sim e não. A adoração cerimonial, icônica e visível como a conhecemos, não existia no jardim. Talvez Adão nem separasse um momento em sua ocupada agenda para levantar as mãos ao céu e começar seu “ato de adoração”. Talvez não se dirigisse a um determinado local, uma vez por mês, para sacrificar um animal para adorar a Deus. Não, essa adoração carregada de símbolos, circunstancial e calculada, provavelmente não existia. Entendo a adoração do jardim como algo espontâneo, uma adoração que se misturava com a vida. Misturava-se de tal maneira que o ato de viver e o ato de adorar se confundiam. Talvez se você perguntasse ao Adão do jardim: “Você não pára de trabalhar para adorar?”, ele iria responder: “Não. Adoro trabalhando e trabalho adorando”.
Existia uma constante percepção da presença de Deus. A vida era permeada por Deus e, embora existisse o encontro singular na viração do dia, ele não deixava de estar presente na realidade humana. Não era necessário invocar-lhe o nome, não era necessário marcar um encontro ou definir um horário. O homem permitia a interferência de Deus em sua vida, pois Deus era a própria vida. A percepção do Éden era a de que a vida não é um fim em si mesma. A vida encontra sua plenitude em Deus e em Deus somente.
Após o pecado, essa consciência de Deus desapareceu. A conexão foi rompida e agora o homem não era mais tão sensível à presença de Deus. Creio que o sentimento que mais afligiu o homem caído não foi o sentimento da vulnerabilidade diante da morte, nem mesmo a vergonha ou a consciência da culpa. Obviamente, todas essas sensações se misturavam formando um turbilhão angustiante de medo e desespero. No entanto, creio que a pior sensação foi a ausência de Deus. O desligamento de sua identidade com o divino. O vazio existencial que resultava da constatação de que Deus já não era tão real quanto no jardim.
Surge então a adoração cerimonial. Para sentir Deus, o homem necessitava agora de suas percepções sensoriais. Já não era mais capaz de relacionar-se com Deus em espírito, uma vez que este estava morto. Era necessário, portanto, criar meios visíveis e palpáveis para relacionar-se com ele. Surge então o altar, o sacrifício, o ritual específico de adoração que o aproximasse de Deus.
Esse desespero, por outro lado, deu origem a um conhecido mal da humanidade: a idolatria. Para aqueles que não conseguiam mais estabelecer conexão com o Deus invisível, era necessário criar deuses visíveis. A idolatria nada mais é do que uma tentativa desesperada, porém desvirtuada, de aproximar-se de Deus.
Nesse contexto, o cerimonial se faz necessário. O próprio Deus cria uma forma de adoração e de restabelecer contato com seu povo. No entanto, essas formas não constituíam a solução final. Eram sombras de algo desejável, representações reduzidas de algo maior que viria (Cl 2.17; Hb 10.1).
Em espírito e em verdade
Aqui se aplica a maior de todas as explanações a respeito de adoração. Aquela proveniente do próprio Cristo, ao falar com a mulher samaritana (Jo 4.19-24).
Senhor, disse-lhe a mulher, vejo que tu és profeta. Nossos pais adoravam neste monte; vós, entretanto, dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar (vv. 19,20).
O pastor Ariovaldo Ramos, em uma de suas ministrações tendo este texto por base, trouxe à tona algo fundamental. O questionamento da mulher samaritana é um questionamento a respeito do cerimonial. Onde devemos adorar? No monte Gerizim, que era o lugar onde os samaritanos adoravam, ou em Jerusalém, local de adoração dos judeus?
Provavelmente, sendo Jesus judeu, a mulher esperava que ele apontasse o monte Sião em Jerusalém como sendo o lugar propício para adorar a Deus. Mas ele a surpreende: “Nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai… os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (vv. 21,24).
O que Jesus deixa claro é que Deus é espírito e está em todo lugar, portanto a adoração não pode ser confinada a um ato mecânico ou a um lugar específico. Deus espera adoradores que tenham consciência de sua presença ativa na realidade humana e o adorem com o ato de viver.
Assim como ocorria no Éden, Jesus vem restabelecer a adoração espontânea, viva e relacional que o Pai deseja ter com seus filhos. Imagine se seu filho tivesse que marcar hora para falar com você. Imagine se ele tivesse que se dirigir a um local específico, vestindo as roupas certas, carregando os presentes certos para que você pudesse atendê-lo. Não podemos chamar isso de relacionamento e muito menos de paternidade. Adoração é relacionamento e todo relacionamento é dinâmico, vivo e pessoal.
Os adoradores que o Pai procura são aqueles que tenham consciência de que este mundo é o mundo de Deus. Que cada árvore, flor, nuvem ou pássaro exalta a grandeza da majestade do Criador e a vida humana é uma imensa fonte de adoração. Para o verdadeiro adorador, cada manhã é uma oportunidade. Cada pôr do sol é uma expressão da perfeição divina e a vida, por mais turbulenta que muitas vezes possa ser, deve ser permeada de adoração.
Sob esse prisma, aquela adoração cerimonial do culto de domingo à noite tem mais significado. Não iniciamos um período de louvor e adoração que vem logo após a arrecadação de dízimos e ofertas e antecede a mensagem, mas sim continuamos a adoração que começamos no instante que recebemos a vida de Deus em nós. Cantar e trabalhar, levantar as mãos e conversar com o filho, tocar um instrumento e almoçar com a família. Tudo, absolutamente tudo, é um ato espiritual para o homem espiritual.
Deus espera pessoas que rompam com o vazio do ritual. Gente que, à semelhança de Davi, quebre o protocolo e dance de alegria perante o seu Deus. Gente que quebre vasos de alabastro, derrame ungüento precioso, chore, ria e se expresse na presença de Deus.
Adorar em espírito é transcender. É entender que quando estamos em adoração nos reunimos ao cenário que descreve o autor de Hebreus:
Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontáveis hostes de anjos, e à universal assembléia e igreja dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados, e a Jesus, o Mediador da nova aliança, e ao sangue da aspersão que fala coisas superiores ao que fala o próprio Abel (Hb 12.22-24).
Adorar em espírito não é limitar o emocional em prol do racional, nem exaltar o racional abolindo o emocional. O homem não é um ser fragmentado que adora Deus no cérebro ou no coração. Adorar é um ato espiritual que abrange o ser total em uma harmonia que soa como música aos ouvidos de Deus.
Adorar em verdade é ser coerente. É fazer da vida um motivo de adoração. É expressar Deus nas relações pessoais, é viver de maneira que as pessoas sejam constrangidas pela nossa maneira de viver e agradar a Deus (1 Ts 4.1). Quando adoramos em verdade, Deus chama a atenção do mundo através de nós.
Vivemos um momento precioso no Brasil. Pessoas têm se derramado em adoração ao Senhor das mais diversas formas. Pessoas têm voltado o foco da adoração a quem é devido. Deus tem sido novamente o centro do culto. No entanto, até o diferente pode se tornar ritualístico se a consciência de Deus não for real e contínua. Se o “extravagante” virar modismo desacompanhado de testemunho pessoal, Deus virará suas costas. Se chorarmos na presença de Deus, mas não chorarmos diante do pecado, a adoração não será em espírito e muito menos em verdade. Se nossa adoração acontecer no templo e não no mundo, de nada valerá, pois o mundo é o santuário de Deus.
Quando aprendermos a viver essa adoração contínua e significativa, estaremos nos preparando para a maior reunião de adoradores da história, quando os justos e remidos continuarão a adoração que reiniciou quando o Cordeiro rasgou o véu de alto a baixo. Creio que isso é adoração. Creio que isso é vida eterna. Creio que isso é o céu.
Não vi templo algum na cidade, pois o Senhor Deus todo-poderoso e o Cordeiro são o seu templo (Ap 21.22).