Por: Eliasaf de Assis
Quando a França foi invadida na Segunda Guerra Mundial, um governo que servisse aos interesses alemães foi estabelecido. Para apaziguar os protestos, seus dirigentes eram franceses, mas colaboravam com o regime nazista e, por isso, receberam o nome de colaboracionistas. Colaboraram, na maioria das vezes, para manter a ordem e nem sempre o fizeram por covardia ou traição. Mas, na penumbra das florestas francesas, ao longo da fronteira ou infiltrados na cidade, o movimento de resistência representava a verdadeira França livre. Ele não reconhecia o governo colaboracionista e obedecia a ordem de seu comandante que estava fora do país. Quando a guerra terminou, os colaboracionistas foram depostos e julgados como traidores.
Esta é uma constante na história da maioria das nações ocupadas: ainda que o governo oficial colabore com o invasor, a justiça e a verdade fazem surgir os movimentos de resistência que buscam a restauração da independência, a liberdade do país e a ruína do inimigo. É a voz irritantemente óbvia, que concita o país a não confraternizar com o opressor, repudia a situação e alumia os olhos do povo com o ideal. Em algum momento, essas duas linhas (a colaboracionista e a resistência) são irreconciliáveis. Uma busca o possível, ainda que em detrimento do ideal. Outra almeja o ideal e se impacienta com o status quo.
A igreja em nossa época vive de maneira similar. Em muitos momentos, ela é colaboracionista com o inimigo (seja este o diabo, o mundo ou a carne), ou o tolera sem nenhuma reação, o que dá na mesma. Nem sempre faz isso por apostasia. O que ocorre é que nosso padrão de prática cristã costuma cair, entre outros motivos, para permitir a inclusão de novos membros. A rede deve apanhar peixes bons e maus, mas o custo do evangelho deve sempre estar claro.
Há irmãos, movimentos e grupos que buscam seus caminhos fora da igreja “oficial”, porque julgam que ela não mais representa o povo de Jesus, ou não está correspondendo ao padrão divino. Neste caso, eles não podem ser chamados de desviados, pois estão fora da igreja porque ela desviou. Quando um trem descarrilha, os passageiros o abandonam e procuram os trilhos que os guiarão até o destino. Seria incompreensível dizer a alguém que salta de um trem que está fora dos trilhos que não é permitido descer antes da estação. Entretanto, costuma-se, por exagero na ortodoxia, dizer a quem permanece sem igreja que ele deve obrigatoriamente congregar em uma. Mas só existe igreja hoje porque irmãos corajosos ao longo da história abandonaram os colaboracionistas e juntaram-se à resistência.
Resistência: Primeiros Indícios
Esse movimento de resistência dentro da igreja já podia ser sentido lá pelo 4º século. Quando Constantino passou a favorecer os cristãos e, por fim, o império tornou o cristianismo a religião oficial, a reação dos cristãos ficou dividida. Alguns julgavam uma bênção que milhares ingressassem na igreja, ainda que por motivos governamentais e mundanos, enquanto outros milhares, desapontados por ver a igreja acomodando-se na segurança deste mundo, se afastaram e foram para os desertos. Estes últimos deram origem a um movimento que recebeu o nome de monasticismo, que é considerado por alguns historiadores cristãos como um avivamento, onde milhares de pessoas deixaram a igreja e a sociedade em que viviam para buscar a Deus na solidão.
Alguns autores, mesmo reconhecendo os extremos e exageros do movimento, o definem nos seguintes termos: “Depois da comissão de Cristo aos seus discípulos, o surgimento do monasticismo foi o mais importante – e de muitas maneiras o mais benéfico – acontecimento institucional da história do cristianismo” (Momentos decisivos do Cristianismo, Mark A. Noll , pág. 90).
Inconformados Com Uma Igreja que Deixou de Ser Peregrina
Ao concordarmos que este movimento foi realmente um mover de Deus * (e há motivos para julgá-lo assim), chegamos a uma das conclusões mais curiosas: há avivamentos que esvaziam a igreja oficial, em vez de enchê-la. Isto, sem dúvida, pode parecer muito estranho para nós, mas para os cristãos primitivos, a segurança e a vida acomodada eram tidas como as principais causas da apostasia e do esfriamento. Afinal, durante os primeiros 300 anos da era cristã, qualquer cristão sabia que poderia prestar contas de sua fé diante de um tribunal, e lá ser obrigado a escolher entre a morte e a apostasia. Na paz que havia entre as perseguições, alguns relaxavam e, quando a perseguição retornava, não conseguiam resistir. Essa flacidez espiritual era sintoma de uma vida espiritual relaxada, sedentária no seu compromisso de sofrer por amor a Jesus. A igreja de Cristo deveria, portanto, manter a atitude de uma “igreja peregrina, que não se sente em casa em lugar algum deste mundo”. As comunidades cristãs primitivas, ainda que alcançassem alguma estabilidade, não esperavam “nenhuma segurança permanente nesta vida” (Momentos Decisivos do Cristianismo, Mark A. Noll, pág. 67).
Aos irmãos e irmãs, que aos milhares deixavam a igreja e iam para o deserto ou para as montanhas solitárias, ocorria a idéia incômoda de que era preciso manter alguma distância entre si e a instituição cristã para encontrar a Cristo. Essa idéia já ocorreu a você?
Como explicar a grande multidão que deixa as igrejas? Primeiro, devemos notar que nem todos os que deixam de congregar em uma igreja o fazem por apostatar, ou porque estão abandonando a Cristo. Há quem o faça, erroneamente, procurando uma igreja “melhor”, que lhe preste melhores “serviços” (melhor departamento infantil, melhor equipe de louvor, melhores sermões etc…). São os crentes consumidores, que não entram nas estatísticas de desviados, mas em alguma escala deveriam, já que não são compromissados com um corpo local na intensidade correta.
Mas também há quem, paradoxalmente, deixe a igreja para aproximar-se de Jesus. Quantas vezes, em nossos cultos, seja pela atmosfera árida, pelo emocionalismo superficial ou pela liturgia que funciona sozinha, percebemos mais a ausência de Deus do que a sua presença? Até que ponto a religião repele mais do que religa nossa vida ao Altíssimo? Devemos dizer com dor: em muitas ocasiões, quando a voz profética trovejou em nossos corações, dizendo: “Sai dela, povo meu”, Deus referia-se a alguma igreja, que desviada de seus propósitos, não era mais saudável espiritualmente.
Ouvindo a Outra Voz
Já que tocamos no assunto, é muito apropriada a história do piedoso monge que se recusou a permanecer em sua ordem franciscana quando esta apostatou dos seus ideais. Contrariando a hierarquia eclesiástica, ele subiu a um monte e, quando repreendido por seu superior que lhe ordenou: “Desça daí! Está me ouvindo?”, respondeu: “Não posso! Estou ouvindo outra voz!”
Aqueles que compõem a força de resistência divina não podem ser julgados simplesmente como rebeldes. Eles estão ouvindo a outra voz, a única que interessa.
E o Senhor nos leva ao deserto (fora do sistema religioso) para que possamos ouvir sua voz. Ela não encontra lugar no templo em Jerusalém, mas no deserto, às margens do Jordão. As suas ovelhas reconhecem seu timbre e também rejeitarão qualquer falsete que procure imitá-la. O barulho dos homens e o borburinho da atividade religiosa competem com ela. O seu ribombar é para os desinteressados “como um trovão”. Tem volume, mas não tem sentido. São almas saciadas mas não nutridas, como as crianças que se empanturram de doces e não querem o almoço saudável. Personificam a “alma farta, que rejeita o favo de mel”.
Para a alma sedenta, entretanto, não haverá nada que substitua a voz do Sumo Pastor. Sermões inteligentes não a alimentam, a beleza das canções não a consola. Os eventos religiosos mais ferventes lhe parecerão gelados como o aço, se Deus não os habitar. A saudade do exilado invadirá seu ser, e ela sairá em busca do amado, mesmo que pelo deserto, até o encontrar. Como nossas igrejas tão domadas poderão manter alguém assim? Este amor é selvagem demais, tão forte como a morte, incapaz de ser controlado. Não pode ser contido por um edifício ou culto semanal. É tão exigente em sua busca por Deus quanto a sepultura. Eis o ponto: há pessoas que deixam de congregar porque sua sede por Deus não é satisfeita nas igrejas e não aceitam ser apaziguadas.
Rebeldia ou Resistência?
Sei que este texto pode ser mal interpretado. Não é por ficar na igreja que alguém se torna um colaboracionista, nem por sair dela que se identifica com o verdadeiro movimento de resistência. Estamos mais habituados a ver as pessoas deixarem de congregar por mágoas e ressentimentos e estas, via de regra, justificarem sua atitude com doutrinas ou zelo exagerado. Desautorizo tais irmãos ou irmãs a encontrarem argumentos neste artigo para manter uma atitude magoada com relação à igreja. Tal atitude pode ser diagnosticada por lembranças dolorosas e um certo escárnio, quando o assunto for a igreja oficial. O cinismo e um linguajar agressivo podem muitas vezes disfarçar-se como virtudes, contudo são apenas expressões de rancor e mágoa. São raízes de amargura que contaminam a muitos. O amor de Jesus me impele a clamar que você abandone os sentimentos de rancor ou desapontamento e sinta pela igreja o mesmo que Deus sente. Olhe a igreja como Deus a vê. Ninguém pode atuar no Movimento Divino de Resistência se não carrega um profundo amor pela noiva de Jesus. Quem não é motivado pelo amor, faz parte do problema e colabora com o inimigo.
Sim, a rebeldia e a dura cerviz existem, e há fundamentos bíblicos sobre a preservação da autoridade. Mas os rebeldes causaram, histórica e espiritualmente, menos prejuízo do que a igreja oficial que se julgava dona dos homens e da verdade. E ninguém tem jurisdição sobre a verdade, porque esta é uma pessoa, o próprio Cristo. Como diria C. S. Lewis, ele é um leão (impávido e livre) e não um gatinho domesticado.
Em meus tempos de faculdade, um colega, comunista inteligente e apaixonado, me perguntou: “Por que o cristianismo tem tanto fôlego? Por que a Igreja Cristã continua existindo? Como se explica que, em meio a tantos desvios, a mensagem de Jesus continue sendo pregada?”
A esta pergunta inquietante, respondi que é assim porque a igreja de Jesus começou como uma revolução e não cansa de se revolucionar. São os chamados para fora (o sentido da palavra eclésia) que continuam chamando outros para fora. Sempre que esquecem suas raízes, Deus incendeia o coração de revolucionários, que formam uma resistência e buscam trazer a igreja para fora deste mundo, para o Caminho. Podem ser mal compreendidos, podem errar, podem ser pouco práticos ou mesmo parecer desviados ou traidores, mas graças a este fogo do evangelho, a igreja chegou até nossa época e será a noiva sem mancha nem ruga que Cristo aguarda.
Eliasaf de Assis é sociólogo, conferencista e diretor da Escola Cristã de Ensino Fundamental da Vila Prudente em São Paulo – SP.