Por Harold Walker
Deus deu muitos sinais e provas de sua existência ao homem, mas um dos maiores foi sua Palavra escrita. Se houvesse uma escala de valores, creio que a Bíblia ocuparia o segundo lugar, porque o primeiro indiscutivelmente já tem dono – o próprio Filho de Deus encarnado! Como os dois têm a mesma origem, podemos ver muitas semelhanças entre eles.
Em ambos, Deus se rebaixou ao nosso nível. Deixou uma posição inatingível e invisível para tornar-se vulnerável e limitado. Permitiu-se ser tocado e até maltratado por uma humanidade insensível e malvada. Abriu a possibilidade de ser mal interpretado e alvo de zombaria e blasfêmia. Não impediu que sua pessoa e suas palavras, de valor incalculável, fossem usadas para fins escusos como acúmulo de lucro financeiro, jogos de poder e manipulação de consciências.
Ao mesmo tempo, porém, por meio de ambos, sua glória inigualável pode ser vista através de pequenas frestas nas celas mentais escuras e deprimentes da humanidade. Há um poder tremendo nos simples relatos sobre a vida de Jesus e nos registros de suas palavras, assim como em todas as palavras inspiradas das Escrituras. Através dos séculos, vez após vez, em centenas de culturas e milhões de corações, a luz divina tem brilhado por intermédio desses dois fantásticos presentes que Deus nos deu. Apesar de todas as ardilosas tentativas de pessoas e instituições mal-intencionadas de torcê-la ou encobrir suas verdades, a simples Palavra escrita continua tocando e revolucionando vidas, seja na forma de Novos Testamentos deixados em hotéis, de versículos expostos em outdoors ou de qualquer outra em que as pessoas a encontram.
Em Jesus, o Deus invisível tornou-se visível e palpável. Na Bíblia, os pensamentos insondáveis do Criador assumiram a forma de letras e gramática humanas para serem transmitidos. Ambos viraram motivo de infindáveis discussões e fortes discórdias. Para a mente natural, é inconcebível que Deus, se é que ele existe, tenha conseguido rebaixar-se a esse ponto! Contudo, a grande prova de sua genialidade é que ele é capaz de usar instrumentos tão limitados, fracos e imperfeitos para transmitir sua palavra eterna, pura e perfeita.
Unidade e coerência milagrosas
Durante cerca de 1.600 anos, usando pelo menos 40 autores humanos, ele conseguiu elaborar um livro, ou melhor, uma coletânea de livros, com impressionante e misteriosa unidade e coerência interna, capaz de espantar qualquer um que se aprofunda no seu estudo. Cada tema que surge em Gênesis segue coerentemente através de toda a Bíblia até chegar à consumação no livro do Apocalipse. E isso aconteceu, muitas vezes, sem que os autores humanos soubessem que seus escritos fariam parte dessa coletânea. Sem coordenador editorial humano, o melhor e mais lido livro da história da humanidade foi escrito! Se Deus não existe, como se explica a existência da Bíblia?
Cada um de nós guarda com carinho a lembrança de momentos marcantes em nossa vida, a maioria dos quais só apercebidos algum tempo depois de ocorrerem. Apesar de ser criado num lar onde o leite da mamadeira era administrado (figurativamente falando!) juntamente com a leitura da Bíblia, onde a Palavra era literalmente lida, citada, comentada e discutida de acordo com Deuteronômio 11.19 (“assentados em vossa casa, e andando pelo caminho, e deitando-vos, e levantando-vos”), houve um momento em que minha admiração, empolgação, interesse e ânimo para estudá-la aumentaram exponencialmente. Foi quando um pastor visitante nos apresentou o livro de Watchman Nee, Ye Search the Scriptures ou Escudrinad las Escrituras em espanhol (infelizmente ainda não existe tradução em português).
Para dizer a verdade, nem cheguei a ler o livro! Foi só o comentário desse pastor sobre os 28 planos para estudar as Escrituras apresentados nele que me impactou. Todos os planos são maravilhosos, mas o que mais me chamou a atenção foi a ideia de pegar determinada palavra ou tema, anotar todas as referências na Bíblia nas quais essa palavra aparece usando uma concordância exaustiva (exaustiva no sentido de relacionar todas as referências em que a palavra aparece na Bíblia, não no sentido de produzir exaustão no estudante – embora isso também aconteça!), ler todas as passagens repetidas vezes e classificá-las sob títulos diferenciados, criados à medida que a pessoa for lendo e meditando.
A primeira palavra que peguei para estudar foi a palavra altar. Fiz todo o processo de forma minuciosa e exata, e o resultado foi a apostila O Altar na Bíblia. Fiquei impressionado como esse tipo de estudo permite que a Bíblia nos ensine, e como revela a coerência e unidade da Palavra como um todo. Posteriormente, usei esse método para estudar muitas outras palavras, dentre as quais coração, jejum e sacerdote. Em cada caso, é preciso despojar-nos de qualquer conceito ou ideia preconcebida sobre o assunto e permitir que, à medida que formos observando o tema na Bíblia, nossa compreensão seja ampliada.
Aprendendo a ouvir só a Palavra
Muito mais importantes do que os comentários eruditos sobre a Bíblia são as próprias palavras da Bíblia. Dois grandes mestres da Palavra do século 20 – Watchman Nee e Martyn Lloyd-Jones – sempre incentivavam seus ouvintes a lerem a Palavra de forma contínua e constante, como o melhor método para conhecê-la e, consequentemente, conhecer a Deus. No livro citado acima, Watchman Nee aconselha o estudante sério da Palavra a ter duas Bíblias – uma para estudo sistemático, na qual você pode escrever nas margens, sublinhar e fazer diagramas e desenhos, e outra para leitura devocional, na qual você não escreve, sublinha nem destaca coisa alguma. Para realmente ouvir de Deus e receber o maná de cada dia, é necessário que você se aproxime da Palavra sem preconceito ou ideia fixa. Por isso, qualquer comentário ou anotação, quer seja sua, quer seja de outra pessoa, pode distraí-lo e impedi-lo de discernir o que o Espírito quer ressaltar em sua leitura diária.
O grande problema do homem é sua impermeabilidade, sua incapacidade de ouvir. Geralmente, andamos tão cheios dos nossos próprios pensamentos que não damos a devida atenção ao que os outros têm para nos dizer e, principalmente, àquilo que Deus quer nos dizer. Não devemos ler a Bíblia para procurar pontos de apoio para nossas próprias opiniões. Devemos ler com o coração limpo, vazio de ideias e conceitos, abertos para permitir que sejamos ensinados por Deus. Lida desta forma, a Bíblia nunca fica velha, cansativa ou enfadonha. Mesmo aquelas passagens que conhecemos de cor podem assumir novas dimensões na nossa compreensão.
Resolvendo os impasses com a própria Bíblia
Outra ênfase comum dos dois grandes mestres da Palavra citados acima: não use a Bíblia; permita que a Bíblia use você! Se você encontra aparentes contradições ou enigmas na Bíblia, não a critique. Atribua isso à sua fraca e pobre compreensão. Não devemos tentar abaixar a Bíblia ao nosso nível. Devemos procurar subir ao nível dela. O intenso e perseverante estudo da Bíblia o levará cada vez mais a compreender que os aparentes paradoxos contidos nela são portas para a revelação de sublimes mistérios. A Bíblia não é um livro didático. Não é um manual. Não é um texto jornalístico. É uma coletânea dos mais variados tipos de estilos literários e autores humanos, cujo único fio de ligação é o Espírito Santo. Ela não foi escrita para responder a todas as nossas perguntas. Aliás, provoca mais perguntas do que responde. Mas o fato é que a leitura dela já mudou a história da humanidade em incontáveis ocasiões e continuará fazendo isso até o fim.
O melhor intérprete da Bíblia é a própria Bíblia. Não basta estudá-la como se estuda outros livros. Ao memorizar suas palavras ou ler repetidas vezes determinadas passagens, você começa a perceber aspectos até então escondidos. Quando se lê a Bíblia toda, sempre, perguntas que vão surgindo são respondidas por ela mesma. Para o leitor superficial, ela parece cheia de contradições; porém, quanto mais você a conhece e medita nela, mais sua maravilhosa unidade e coerência se manifestam. Questões que ficam em aberto no início da leitura vão sendo resolvidas durante o percurso. Coisas que você não havia observado na leitura anterior são ressaltadas pelo Espírito na leitura atual. O testemunho de todos que a leram repetidamente, até por mais de cem vezes, é que sempre encontram novidades a cada nova leitura!
Todas as ferramentas de pesquisa bíblica, como Bíblias de estudo, comentários, dicionários, traduções variadas e estudos de palavras no original, podem ser de grande valor desde que o leitor tenha imergido no conhecimento das próprias Escrituras em primeiro lugar. Jesus disse que suas palavras são espírito e vida. Se você não beber profundamente dessa vida primeiro, os comentários sobre a letra da Palavra serão muito áridos e intelectuais e o desviarão do propósito principal pelo qual ela foi escrita. Assim como a criança nasce, alimenta-se, diverte-se e cresce para só depois começar a estudar e entender sobre si mesmo e o mundo ao seu redor, nós também precisamos primeiro experimentar a teologia viva, o pulsar da vida de Deus em nós e o prazer de degustar o alimento puro de seus pensamentos nas Escrituras antes de debruçar-nos sobre os livros para alcançar um conhecimento intelectual sobre essa vida.
Que Deus nos ajude nesse tempo do fim a dar o devido valor à sua Palavra! Que presente maravilhoso ele nos deixou! Que saibamos usá-la e que nunca percamos o senso de reverência e admiração ao nos aproximarmos dela! Que não cometamos o mesmo erro dos escribas no tempo de Jesus: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna; e são elas que dão testemunho de mim; mas não quereis vir a mim para terdes vida!” (Jo 5.39,40) Que nosso propósito principal, ao estudar a Bíblia, seja aproximar-nos mais de Jesus, o Filho encarnado de Deus, e adquirir a vida que vem dele! Afinal de contas, foi para isso que Deus se abaixou, encarnou e permitiu que seus pensamentos fossem expressos em palavras humanas!