Por Richard J. Foster
Nossa Falta de Integração
A simplicidade interior é o que pode produzir uma “pessoa integrada”. Mas o que é uma pessoa integrada? É o contrário de uma pessoa desintegrada. Isto parece um trocadilho, mas é comparando os opostos que se tornam claros esses conceitos.
A pessoa desintegrada é aquela que perdeu a identidade como um bloco único. Parece que ela é um amontoado de pedaços: mãe, filha, estudante, trabalhadora, participante de um grupo etc. Isso tudo é uma realidade na nossa vida e não sei se há como fugir dela. O problema, no entanto, reside no fato de que a pessoa passa a viver uma vida em pedaços, não sabendo mais quem ela é. É como se ela fosse uma máquina realizando várias funções. Como o que sustenta essa máquina é a urgência dos compromissos, ela acaba realizando de modo automático várias coisas e não se apercebe mais daquilo que realmente lhe interessa, do porquê fazer aquelas coisas, enfim… É como se seguisse um fluxo sem saber por que o está seguindo. Passa a viver uma vida internamente dispersa, sem consciência, sem reflexão, sem integração.
Disparamos aqui e ali tentando desesperadamente cumprir as muitas obrigações que pesam sobre nós. Aos trancos, alternamo-nos entre os compromissos do trabalho e as responsabilidades da família. Enquanto estamos ocupados atendendo às necessidades de um filho ou cônjuge, sentimo-nos culpados por negligenciar as exigências do trabalho. Quando atendemos às pressões do trabalho, tememos estar falhando com a família. Naquelas raras ocasiões em que conseguimos equilibrar as duas com sucesso, as questões mais amplas da nação e do mundo sussurram chamados irritantes de serviço. Se alguém precisa de simplificação da vida, somos nós.
Dentro de todos nós existe um conglomerado de “eus”. Há o eu tímido, o eu corajoso, o eu dos negócios, o eu que é pai ou mãe, o eu religioso, o eu literário, o eu enérgico. E todos estes eus são individualistas rudes. Nada de barganha ou transigência para eles. Cada um berra a fim de proteger seus interesses assegurados. Se é tomada uma decisão de passar uma noite tranqüila ouvindo Chopin, o eu dos negócios e o eu cívico se erguem em protesto ante a perda de tempo precioso. O eu enérgico anda de um lado para outro, impaciente e frustrado, e o eu religioso nos relembra das oportunidades perdidas de estudo ou contato evangelístico. Se a decisão é a de aceitar uma nomeação para o conselho de serviços humanos, o eu cívico sorri de satisfação, mas todos os eus excluídos fazem obstrução. Não admira que nos sintamos perturbados e divididos.
Na verdade, isso não é nenhum pouco estranho para nós. Quanto não conversamos entre nós sobre a organização do tempo e, por tabela, sobre esses muitos eus? Fazemos isso muitas vezes e a conclusão a que chegamos é que é necessário EQUILIBRAR as coisas. Ficamos como um mosaico todo feito de partes.
Achando o Centro
Senti isso durante longos anos, mas um fato mudou minha vida. Ainda me lembro da manhã chuvosa de fevereiro dentro de um aeroporto de Washington, D.C., muitos anos atrás. Exausto, afundei numa poltrona para esperar o meu vôo. Como sempre, eu havia levado material para ler a fim de aproveitar bem os momentos livres. Pela primeira vez na vida, abri o “Testamento de Devoção”, de Thomas Kelly.
De pronto, ele me prendeu a atenção ao descrever perfeitamente a minha condição e a condição de tantos que eu conhecia: “Sentimos honestamente a tensão de muitas obrigações e tentamos cumpri-las todas. E ficamos infelizes, inquietos, tensos, oprimidos e temerosos de sermos superficiais.”
Sim, eu tinha de confessar que me encontrava nestas palavras. Para todos os que me viam, eu estava confiante e no comando, mas por dentro estava cansado e disperso. Então meus olhos deram com palavras de esperança e promessa: “Temos pistas da existência de uma forma de vida imensamente mais rica e profunda do que toda esta existência frenética, uma vida de serenidade e paz e poder tranqüilos. Se tão somente pudéssemos adentrar suavemente esse Centro!”
Instintivamente, eu soube que ele falava de uma realidade além da que eu já conhecera. Por favor, entenda-me, eu não era ímpio ou irreverente, justamente o oposto. Meu problema era eu ser tão sério, tão preocupado em fazer o que era certo que me sentia compelido a atender a todo chamado para servir. E, afinal, eram oportunidades maravilhosas de ministrar em nome de Cristo.
Então me veio a sentença que daria início a uma revolução interior: “Temos visto e conhecido algumas pessoas que parecem ter encontrado este Centro profundo de vida, onde os chamados mal-humorados da vida estão integrados, onde o Não, bem como o Sim, podem ser ditos com confiança.”
Esta capacidade de dizer Sim e Não a partir do Centro Divino me era estranha. Eu sempre orava a respeito das decisões, e, contudo, por vezes em demasia, respondia sobre se a ação me colocaria ou não numa luz favorável. Dizer “Sim” a apelos de ajuda ou oportunidades de servir geralmente trazia consigo uma aura de espiritualidade e sacrifício. Eu podia dizer “Sim” facilmente, mas não tinha a capacidade de dizer “Não”. O que as pessoas pensariam de mim se eu recusasse?
Sozinho, permaneci sentado no aeroporto vendo a chuva bater contra a janela. Lágrimas caíram sobre meu casaco. Era um lugar santo, um altar, a poltrona onde eu me encontrava sentado. Eu jamais seria o mesmo. Silenciosamente pedi a Deus que me desse a capacidade de dizer “Não” quando isso fosse certo e bom.
O Teste
De volta à casa, fui de novo apanhado num turbilhão de atividades. Mas eu tomara uma decisão – as noites de sexta-feira seriam reservadas para a família. Foi uma decisão pequena na época. Ninguém além de mim realmente sabia a este respeito. Contei à família de uma maneira casual, indiferente. Eles não sabiam que era um compromisso com valor de pacto, uma decisão crucial. Para falar a verdade, nem eu sabia. Apenas parecia a coisa certa a fazer, dificilmente o que se poderia chamar de uma diretriz dada por Deus.
Mas então veio o telefonema. Era um executivo denominacional. Será que eu estaria disposto a falar ao seu grupo na sexta-feira à noite? Ali estava outra oportunidade maravilhosa.
Minha reação foi casual, quase inconsciente: “Oh, não, não posso.”
A resposta também foi casual: “Oh, você já tem compromisso?” Senti que estava num beco sem saída.
Naqueles dias, eu não sabia que podia mui legitimamente dizer que de fato tinha um compromisso muito importante. Cautelosamente, mas com determinação, respondi simplesmente: “Não”, sem tentar justificar ou explicar minha decisão.
Seguiu-se longo período de silêncio que pareceu durar uma eternidade. Eu quase podia sentir as palavras: “Onde está a sua dedicação?” vindas pelos fios telefônicos. Eu sabia que tinha tomado uma decisão que me fazia parecer menos espiritual a alguém com quem eu genuinamente me importava.
Após um momento, compartilhamos algumas amabilidades e ele desligou; mas quando o fone tocou o gancho, gritei intimamente: “Aleluia”. Eu havia me rendido ao Centro. Havia tocado a margem da simplicidade, e o efeito era eletrizante.
Deus em Nós ou Nós em Deus?
É interessante como essa experiência me auxiliou a viver uma vida integrada. Eu não deixei de me dedicar ao trabalho de Deus, mas o que aconteceu foi que as demais coisas que fazia ganharam um novo status, um novo valor. Na verdade, comecei a reconhecer a Deus em todo o meu viver. Eu era profundamente comprometido, mas não estava integrado ou unificado. Achava que servir a Deus era outra obrigação a ser acrescentada a um horário já bem ocupado. Mas aos poucos passei a ver que Deus desejava estar, não nas bordas, mas no centro da minha experiência. A jardinagem já não era uma experiência fora do meu relacionamento com Deus – descobri a Deus na jardinagem. Nadar já não era apenas um bom exercício – tornou-se uma oportunidade para comunhão com Deus. Deus em Cristo se tornara o Centro.
Na verdade, o que precisamos não é trazer Deus para nossa vida, mas mergulharmos na vida de Deus. Falei antes de Deus estar na periferia da minha vida. Na realidade, seria mais correto dizer que eu estava na periferia da Vida de Deus. Era eu quem precisava entrar no Centro, no Cerne. Uma coisa é Deus entrar em nós (e uma coisa muito necessária), mas é bem outra nós entrarmos em Deus. No primeiro caso, ainda somos o centro da atenção; no segundo, Deus é o ponto focal.
Quando Deus entra em nós, ainda temos certa autonomia; quando entramos em Deus, estamos DENTRO. Ele está em tudo, e através de tudo, e acima de tudo. Isto não é um panteísmo infantil, como se Deus pudesse ser capturado sem sua criação; é um monoteísmo maravilhoso, majestoso – um Deus a partir de quem toda vida é sustentada. É vida a partir do Centro Divino.
O oposto de nos atirarmos em Deus e viver a partir deste centro me traz novamente à lembrança a canseira causada pela tentativa de equilibrar tantos “eus”. Ter a Deus como Centro é entrar em um grande rio e deixar-se levar pela corredeira, não precisando remar, mas deixando-se levar. É um corpo que cedeu aos movimentos do rio, o rio de Deus.
Tenho notado que me desgasto interiormente muito antes de fazê-lo exteriormente. Portanto, preciso tomar cuidado para não me tornar um monte frenético de energia oca, ativo entre pessoas, mas destituído de vida. Preciso aprender quando me retirar, como Jesus, e experimentar o poder restaurador de Deus. Lemos que Pedro se demorou em Jope por muitos dias com um certo Simão, um curtidor (Atos 9.43). Ao longo de nossa jornada, precisamos descobrir numerosos “lugares de permanência”, onde possamos receber o maná celestial.
Extraído e adaptado de “Celebração da Simplicidade”, Richard Foster; direitos autorais pertencentes à Editora Hagnos, edição atualmente esgotada. Richard Foster, autor e conferencista, tem raízes entre os quacres (Quakers), com os quais mantém ligações até o presente. É fundador de “Renovare”, uma organização dirigida ao desenvolvimento e crescimento da vida espiritual entre os cristãos de todas as igrejas (www.renovare.org).