Por Pedro Arruda
Há muito que se busca um retorno à essência e à prática da igreja original tal qual se vê nas Escrituras. O maior problema nessa busca é que nascemos e desenvolvemos todo o nosso pensamento sob a influência do fruto do conhecimento do bem e do mal – inclusive sobre o que vem a ser igreja. Habituamo-nos a conceber a igreja a partir de conceitos objetivos, e é com essa mentalidade que buscamos entendê-la na Bíblia, especialmente no livro de Atos dos Apóstolos e nas epístolas. Por sermos movidos pela objetividade, é evidente que os resultados da nossa busca também são objetivos – e ficamos presos ao modelo que ali descobrimos, dentro do qual tentamos adequar tudo de forma bem rígida.
Para evitar esse processo negativo, devemos substituir nossa premissa, trocando a busca de um modelo objetivo de igreja por uma compreensão subjetiva dos ensinamentos de Jesus. A nova premissa seria que a igreja não foi resultado de um modelo institucional, mas do estilo de vida ensinado por Jesus e potencializado pelo Espírito Santo. É impossível descobrir como se originou a igreja se só a examinarmos depois de constituída. Caso a queiramos compreender, teremos de observar seus antecedentes, onde se fincaram suas bases. Enquanto o livro de Atos e as Epístolas falam abundantemente sobre a igreja em ação, é nos evangelhos que encontramos seus fundamentos.
Embora a igreja já estivesse claramente planejada na mente divina, era difícil explicar algo que ainda não viera à luz. Por isso Jesus falou tão pouco sobre a igreja ao mesmo tempo em que estava estabelecendo suas bases. No Velho Testamento, observamos que Davi recebeu o projeto da casa de Deus, mas a construção do templo ficou para seu filho Salomão. Da mesma forma, foi Jesus que trouxe a planta da igreja apesar de ter deixado para o Espírito Santo executá-la. Se quisermos compreender o projeto, agora que a casa está em ruínas (ou edificada de acordo com outra planta), teremos de voltar a Jesus, isto é, aos evangelhos.
Antes de se estabelecer um modelo, é preciso conhecer o projeto. Por isso não temos a pretensão de falar diretamente sobre a igreja, mas sobre coisas anteriores a ela, dentre as quais casa, família e comunhão.
O sonho de Deus: casa própria
Não consta que Adão e Eva tivessem uma casa como moradia no Jardim do Éden. O modelo que conhecemos agora é posterior ao pecado, necessário ao conforto e à proteção contra eventuais intempéries. Foi com esse tipo de pensamento que Davi se propôs a construir uma casa para o Senhor, plano que, inicialmente, foi recusado.
Por que, pergunta-se, Deus rejeitaria algo que pretendia aceitar? Talvez porque era necessário corrigir os conceitos de Davi, mostrando-lhe que a casa a ser construída não seria para Deus e, sim, para ele mesmo. Basta, no entanto, notar como os conceitos de Davi e de Deus eram diferentes. Davi, constrangido por morar numa casa luxuosa enquanto a arca do Senhor abrigava-se numa tenda, pretendia erguer um edifício – uma obra de engenharia que proporcionasse conforto e proteção. Deus, por outro lado, pensava em família quando se referia à casa que construiria para Davi, com projeção para a eternidade.
Vemos, aqui, que casa e família são termos que se fundem conceitualmente; um sem o outro perde sentido. Davi pensava em dar um endereço a Deus ao passo que Deus preferia que este endereço fosse a família de Davi. Embora o templo estivesse localizado no Monte Moriá, faz-se referência a Sião, onde estava a casa de Davi, como morada do Senhor (Sl 9.11; 76.2; 123.13).
Todos têm direito à família
“Deus faz que o solitário more em família…” (Sl 68.6). Penso que seja um menosprezo reduzir este versículo apenas ao plano natural. Deus concebeu a humanidade a partir da família. Se não fosse o sistema de procriação, que nos diferencia completamente dos anjos, não haveria a possibilidade de a encarnação de Jesus acontecer. Portanto, a humanidade iniciou-se e perpetua-se pela família, e nem mesmo a vinda de Jesus desrespeitou tal maneira de Deus. Viver sem família é uma anomalia, e tentar cumprir o plano de Deus em outra base é uma aberração maior ainda.
Só para lembrar, Deus escreveu a história através da família: iniciou a humanidade com a família de Adão, preservou-a por meio da família de Noé, gerou a nação escolhida usando a família de Abraão, tirou o povo do Egito organizando-o em famílias e, da mesma maneira, constituiu a nação de Israel e reconstruiu Jerusalém depois do exílio babilônico.
Jesus nasceu numa família, e o derramamento do Espírito Santo, no dia do nascimento da igreja, foi interpretado como um dom à família (At 2.17,18), alcançando filhos e filhas, jovens e velhos, servos e servas, componentes típicos de uma família. É aqui também que se inicia o cumprimento da promessa feita a Abraão em sua dimensão universal: “Em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.3).
Um olhar míope sobre os ensinamentos de Jesus pode levar-nos a conclusões equivocadas sobre a consideração que ele tinha pela família. Frases como “Quem não deixar pai, mãe, irmão e irmã não é digno de mim” foram erroneamente interpretadas como aprovação para abandonar-se a família ou colocá-la em segundo plano. Na verdade, o que ele queria dizer era que a família, como todas as outras coisas, deve ser considerada por nós dentro da perspectiva divina e não como uma valoração pessoal e direta. As prostitutas e os publicanos, por exemplo, têm valor diferente quando vistos do ponto de vista de Deus. Embora tidos como escórias da sociedade, precederiam, segundo Jesus, os escribas e os fariseus no reino de Deus.
Quando Jesus foi chamado por sua mãe e seus irmãos, ele perguntou quem seriam estes e indicou como tais aqueles que fazem a vontade do Pai. Com isso, não pretendia desprezar mãe ou irmãos, mas sim elevar os discípulos a essa qualidade de familiares.
Também devemos considerar as inúmeras vezes em que Jesus recorreu à família para explicar questões do reino de Deus. Basta olhar as parábolas e verificar quão recorrentes são as figuras parentais ali utilizadas.
A primeira grande divisão: família e igreja tornam-se coisas distintas
Quando chegamos à igreja já constituída, a família continua ocupando papel central. Na verdade, era difícil separar uma da outra. A finalidade da família era hospedar a igreja e servir como base operacional de suas ações, inclusive as missionárias.
Durante seus primeiros 150 anos, a igreja reuniu-se dentro do seio familiar. Depois disso, as famílias hospedeiras generosamente desocuparam as residências em favor da igreja para que esta as usasse no serviço religioso. Nos 150 anos posteriores, essas casas, com pequenas adaptações, continuaram a servir para o encontro da comunidade e as atividades afins. Em seguida, já no período de Constantino, a mãe deste, conhecida como Santa Helena, passou a patrocinar a construção das primeiras basílicas concebidas, desde o projeto, para o serviço religioso.
Durante a história eclesiástica, registraram-se muitas insurgências e desvios, sendo que a primeira grande divisão é considerada a secessão entre Roma e Constantinopla, e a segunda, a Reforma Protestante. Contudo, essas divisões foram de caráter institucional e vieram muito tempo depois da divisão mais fundamental e terrível de todas, que passou quase despercebida dos estudiosos e historiadores até hoje.
De forma sutil, mas com eficácia mortal, o inimigo começou sua estratégia divisionista em meados do segundo século, separando a família da igreja. A partir daí, a igreja começou a ser uma instituição distinta e, ao mesmo tempo, estranha à família. O que veio a seguir foi só uma questão de desenvolver-se como tal. O vírus da divisão já havia sido inoculado. Todas as igrejas nascidas depois disso trazem tal vício em seu projeto que tende sempre a repetir-se. Divisão gera divisão, e esta mãe é de uma fertilidade total!
É importante observar tal questão, pois uma igreja que não toma a família por base tem em si um vírus adormecido que se desperta e manifesta no momento que julga mais apropriado, ou seja, no momento em que as resistências do corpo encontram-se mais fragilizadas.
Hoje, tanto o termo igreja quanto o termo família estão profundamente distorcidos, sendo quase impossível ter um consenso coletivo e genuíno dos respectivos significados. Precisamos, porém, atentar para o fato de que Deus é o único que tem legitimidade para conceituar tanto um quanto o outro, pois o que o mundo mais deseja é deturpar a obra de Deus.
A comunhão como base da restauração
Portanto, se pretendemos realmente ver a igreja restaurada, devemos procurar vê-la na condição mais próxima possível da original. Nesse sentido, temos de rever nossos conceitos, tais como o de Jesus ter falado muito pouco sobre igreja, pois a verdade é que ele muito falou, ensinou e fez acerca da igreja.
Tão importante foi o conhecimento vivencial do modelo de Jesus, que este se tornou um dos critérios para a escolha do sucessor de Judas entre os Doze. Ou seja, tiveram de achar alguém que compreendesse o projeto de Jesus em primeira mão, acompanhando-o desde o princípio (At 1.21,22).
Já, de acordo com nossa percepção, Jesus não foi suficientemente detalhista a respeito da estrutura da igreja, e, por isso, privilegiamos Atos e as epístolas e desprezamos os evangelhos ao tratar desse assunto. Entretanto, é nos ensinamentos de Jesus que encontramos o projeto de igreja que surgiria com o Espírito Santo, projeto que foi observado da maneira mais estrita possível pelos primeiros participantes.
A igreja que Jesus ensinou estava fundamentada na comunhão. Ele glorificou o Pai consumando a obra que lhe foi confiada (fazendo a vontade do Pai) e transmitindo a mesma glória aos seus para que fossem um. Logo, a comunhão (ou união) só é possível na base da vontade de Deus (veja João 17).
Não haverá restauração da igreja se não partirmos do mesmo ponto da igreja primitiva. Tentar imitar a igreja já constituída sem conhecer seu projeto original será sempre uma frustração.
O projeto que Jesus concebeu era um estilo de vida consolidado na comunhão (portanto sob a vontade de Deus), cuja concretização se dá pela família humana, projetando-se desta para a família divina, como sempre ocorreu na História.