Por: Rosalind Goforth
Jonathan e Rosalind Goforth foram missionários canadenses na China de 1888 a 1934. Durante esse período, tiveram onze filhos (cinco dos quais morreram como bebês ou muito novinhos), passaram por perseguições e dificuldades, e testemunharam grandes moveres do Espírito de Deus, trazendo convicção, arrependimento e conversões. Esta é a quarta de uma série de relatos extraídos de um livro escrito por Rosalind.
Rebelião Boxer
Nota histórica: Os fatos que serão narrados neste e no próximo capítulo dessa história ocorreram durante um período muito trágico na China, de 1898 a 1901. Em reação ao domínio de várias potências ocidentais sobre o comércio e até sobre a soberania da China, uma espécie de sociedade secreta, chamada I Ho Ch’uan (“punhos justos” em chinês, ou Boxers, em inglês), começou a crescer rapidamente. Com apoio implícito da imperatriz da China, atacavam estrangeiros, missionários e cristãos chineses, especialmente católicos, por acharem que estes eram partidários dos estrangeiros. Chegaram a ocupar a capital, Pequim, e a sitiar o setor das embaixadas. Milhares de pessoas foram mortas em várias regiões da China, incluindo aproximadamente 200 missionários com suas famílias, a maioria ingleses. O levante foi finalmente suprimido através da invasão de forças militares do Ocidente.
Uma Promessa
Quando penso, em retrospectiva, nesse período negro da nossa experiência na China, sempre me recordo de um evento que ocorreu cinco anos antes, em 1895. Eu estava com meus quatro filhos no Canadá, preparando-me para viajar de volta para a China, onde meu marido havia ficado. Poucos dias antes da viagem, um telegrama chegou com a notícia do violento assassinato de dez missionários em Fukien, uma província no sudeste da China, entre os quais alguns conhecidos, o casal irlandês Stewart e seus dois filhos pequenos. Foi uma notícia chocante, que gerou grande ansiedade em geral pelos missionários na China. Muitos amigos e parentes insistiram comigo para adiar minha volta, mas achei melhor manter meu plano original, e logo estávamos nos despedindo de todos na estação ferroviária em Toronto.
Quando o trem estava começando a partir, uma senhora chegou perto da minha janela e me disse: “Você não me conhece, mas eu orei para que o Senhor me desse uma promessa para você; aqui está, receba da parte dele”. Com isso, entregou-me um pedaço de papel. Ao abri-lo, li o seguinte: “Nenhuma arma forjada contra você prevalecerá” (Is 54.17, NVI).
Ali mesmo, elevei meu coração a Deus em oração para que ele cumprisse essa promessa na minha vida e naquelas que me eram preciosas. Imediatamente, recebi a clara convicção de que o Senhor me havia ouvido.
Nuvens Escuras
Jamais poderemos nos esquecer do inverno de 1899 a 1900. As nuvens escuras já estavam se formando e em várias ocasiões a nossa missão corria sério perigo. O ânimo do povo estava extremamente acirrado – percebia-se que qualquer acontecimento, por mínimo que fosse, teria o efeito de uma faísca num barril de pólvora. Numa ocasião, milhares de pessoas se ajuntaram dentro e fora da missão, claramente prontas para praticar algum mal. Meu marido e os outros missionários entravam e saíam dessa densa multidão durante o dia inteiro, enquanto nós mulheres ficamos trancadas dentro de casa, sem saber em que momento a turba haveria de perder controle e destruir a todos nós. O que a impediu aquele dia de fazer o mal planejado? Somente a oração confiante. O Senhor ouviu nossas orações e refreou maravilhosamente a violência daquele povo.
Desde o outono de 1899, estava ficando claro que as condições para os estrangeiros na China estavam ficando muito desfavoráveis. Mesmo assim, nunca imaginávamos o tamanho da crise que viria nem estávamos preparados quando ela chegou, por volta de junho de 1900. A primeira indicação mais séria foi quando impediram a passagem dos mensageiros que levavam e traziam correspondências para nós, da cidade de Tientsin. Ficamos isolados, dessa forma, do mundo exterior e tivemos de depender unicamente dos rumores loucos que corriam entre os chineses para obter informação.
A região ficava mais perturbada a cada dia; ouvíamos o rufar dos tambores e o clamor do povo por chuva. A escuridão e o horror desse período deixaram uma marca inesquecível. Além de tudo, nessa mesma época nossa filha mais velha, Florence, ficou muito doente e passou uma semana de intenso sofrimento, antes de finalmente nos deixar para estar com o Senhor.
A Decisão de Fugir
Enquanto a Florence estava em seus últimos dias, recebemos o primeiro comunicado do consulado norte-americano em Chefoo, avisando-nos do perigo de permanecermos mais tempo ali. Logo depois, recebemos um segundo comunicado, mais urgente ainda.
A pergunta era: por onde poderíamos escapar? Estávamos no centro-norte do país, a uma longa distância do litoral em qualquer direção. A rota pelo rio, para o leste, levava normalmente duas semanas para chegar à cidade litorânea de Tientsin, mas o caminho estava totalmente bloqueado porque passava por regiões controladas pelos Boxers. A própria cidade de Tientsin estava num estado de sítio. O único caminho aberto seria pelas estradas em direção ao sul, viajando de carroças puxadas por cavalos. Seriam quatorze dias até Fancheng, depois mais dez dias pelo menos de barco até Hankow, e dali para Xangai.
Era verão e a viagem apresentava muitos perigos, especialmente para as crianças em virtude do grande calor que fazia durante o dia. Tínhamos nossos quatro filhos remanescentes: Paul com nove anos, Helen com seis, Ruth com menos de três e o bebê Wallace com oito meses. Desejávamos muito permanecer na missão, mas os cristãos chineses também insistiram conosco para fugir, pois para eles, também, nossa presença trazia perigo.
Tivemos muitas dificuldades para conseguir as carroças e todas as outras necessidades para a viagem, mas o Senhor foi providenciando tudo, item por item. Houve muitas intervenções divinas desde o princípio, mostrando que o propósito de Deus era de nos preservar, algumas das quais só viemos descobrir mais tarde. Um dia antes da nossa partida, por exemplo, um mensageiro passou por nossa cidade, a toda pressa, em direção à capital da província. Sem saber do teor da sua missão, resolvemos de última hora mudar nossa rota que passaria por essa capital e seguir uma outra, consideravelmente mais longa. Ficamos sabendo que esse mensageiro estava levando uma ordem assinada pela imperatriz para matar todos os estrangeiros. Se tivéssemos seguido nosso roteiro original, certamente teríamos sido mortos.
Livramento do Pavor
Deixamos nossa cidade de Chang Te, em 28 de junho de 1900. Nosso grupo era composto de cinco homens, seis mulheres e cinco crianças, além dos ajudantes e carroceiros. Nossa fiel babá chinesa, embora muito angustiada por ter de deixar sua mãe de quase oitenta anos, nos acompanhou também.
Na primeira cidade onde paramos para pernoitar, houve uma tentativa de arrombar nossa pensão, mas ao orarmos, a turba se dispersou e ficamos em paz. Os longos dias, de dez a doze horas, sentados nos duros assoalhos das carroças sem molas, chacoalhando nas estradas irregulares, faziam com que até uma colcha estendida no chão parecesse uma cama de luxo.
Uma vez, quando Jonathan, meu marido, saltou da carroça para buscar água para esfriar nossas cabeças expostas ao sol, um grupo o cercou de forma ameaçadora, repetindo o grito: “Mate, mate”. As outras carroças estavam mais à frente e o carroceiro da nossa não o quis esperar; ele estava até pálido de medo. Como orei naqueles instantes, antes dos homens abrirem caminho, permitindo que ele voltasse!
Alguns dias passaram sem incidentes. No dia 7 de julho, à tarde, paramos numa pensão. Soubemos que a região à nossa frente estava num estado de ebulição contra os católicos. Uma multidão ajuntou-se do lado de fora da pensão. Deixamos uma barricada de carroças para impedir sua entrada. Durante horas, jogavam pedras contra o portão e exigiam nosso dinheiro. Enviamos um mensageiro para buscar ajuda do oficial de uma cidade próxima e passamos a noite em suspense e tensão.
No dia seguinte, de manhã, o mensageiro voltou sem ter conseguido qualquer auxílio. Quando os carroceiros ouviram que não teríamos apoio, ficaram apavorados e foi com muita dificuldade que os persuadimos a arrear seus animais. A turba, do lado de fora, estava cada vez mais densa, como podíamos observar pelas frestas no portão; pairava sobre ela, porém, um silêncio ominoso. Ninguém queria colocar em palavras o que todos sentiam: que provavelmente sairíamos dali para nossa morte.
De repente, fui tomada por um pavor esmagador. Não era temor do que viria depois da morte, mas da provável tortura e sofrimento a que seríamos submetidos. Pensei: “Onde está a coragem cristã que tenho buscado?” Fui à parte para orar sozinha, mas não recebi qualquer alívio.
Logo, alguém nos chamou para orarmos antes de subir nas carroças. Quase sem conseguir andar, de tão trêmula, e ansiosa para que ninguém me visse nesse estado de pânico, finalmente alcancei um banco perto de Jonathan. Assim que cheguei, ele retirou um livrinho de promessas bíblicas do bolso e leu a primeira seqüência de textos que encontrou. Era a seguinte:
“O Deus eterno é a tua habitação, e por baixo de ti estende os braços eternos: ele expulsou o inimigo de diante de ti, e disse: Destrói-o” (Dt 33.27).
“O Deus de Jacó é o nosso refúgio” (Sl 46.7).
“Tu és o meu amparo e o meu libertador; não te detenhas, ó Deus meu” (Sl 40.17).
“Eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com a minha destra fiel… Eu, o Senhor teu Deus, te tomo pela tua mão direita, e te digo: Não temas, que eu te ajudo” (Is 41.10,13).
“Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8.31).
“Assim, afirmemos confiantemente: O Senhor é o meu auxílio, não temerei; que me poderá fazer o homem?” (Hb 13.6).
O efeito dessas palavras naquele momento foi tremendo. Todos perceberam que Deus estava falando conosco. Nunca houve uma mensagem enviada mais diretamente ao homem mortal por seu Deus do que essa que veio para nós. Desde praticamente o primeiro versículo, toda minha alma foi inundada com grande paz; todo traço de pânico desapareceu e senti a verdadeira presença de Deus conosco. Na verdade, sua presença era tão real que dificilmente teria sido mais real, mesmo que estivéssemos vendo uma forma visível.
Livramento do Perigo
Depois da oração, todos subimos nas carroças, e estas saíram uma por uma para a rua densamente abarrotada de gente. Até onde nossos olhos podiam ver, a rua à nossa frente estava escura, cheia de gente à nossa espera. Ao passarmos pelos portões da cidade, comentei com Jonathan que estávamos conseguindo passar pelas multidões sem muito problema. Ele, porém, ficou pálido ao apontar para um grupo de algumas centenas de homens, totalmente armados, que nos aguardava. Eles esperaram até que todas as carroças passassem pelo portão e depois começaram a jogar sobre nós uma chuva de pedras. Ao mesmo tempo, correram para aleijar e matar alguns dos cavalos.
Jonathan pulou da carroça e disse a eles: “Podem pegar qualquer coisa, mas não matem”. A única resposta que lhe deram foi um golpe. Um outro homem bateu-lhe no pescoço com uma grande espada. Providencialmente, o golpe o atingiu com o lado cego da arma, deixando uma marca larga no pescoço, mas nada além disso. Se tivesse o acertado com o lado cortante, certamente o teria degolado! Depois seu capacete foi cortado em pedaços, um dos golpes cortando o forro de couro em cima da testa, mas sem arranhar a pele.
Em seguida, foi derrubado no chão com um terrível corte de espada, que penetrou no osso do crânio, por trás. Ao cair, ele ouviu distintamente uma voz que dizia: “Não temas, há pessoas orando por você”. Tentando levantar-se, alguém o acertou com um bastão. Enquanto caía novamente, quase inconsciente, ele viu um cavalo vindo com toda velocidade em sua direção. Depois de recuperar a consciência, descobriu que o cavalo havia tropeçado e caído, sem qualquer motivo, e com seus coices violentos afastara de Jonathan os atacantes. Estes passaram a saquear as carroças.
Enquanto isso, outros homens haviam subido na carroça onde eu estava com as crianças. Um tentou acertar o bebê, mas eu o protegi com um travesseiro. Logo, deram sua atenção ao saque dos nossos pertences. Arrancaram as caixas das carroças e levaram tudo embora.
Nessas alturas, eu achava que Jonathan estava morto, pois o vira cair duas vezes para o chão, coberto de sangue. Porém, de repente, ele apareceu ao lado da carroça, quase sem forças para ficar em pé, e me disse: “Desça depressa, precisamos sair daqui”. Desci com as crianças, mesmo sem saber onde Ruth estava, e começamos a andar. Quando alguns continuaram jogando pedras sobre nós, implorei que tivessem misericórdia dos meus filhos. Com isso, pararam e voltaram para as carroças.
Fomos andando para uma pequena vila que não estava muito distante, orando para que o Senhor abrisse o coração do povo para nos receber. Quando chegamos perto, alguns homens saíram para nos impedir de entrar na vila. Jonathan caiu no chão, sem forças para andar mais. Ajoelhei-me ao lado dele, enquanto as crianças choravam angustiadas. Parecia que Jonathan estava morrendo. As mulheres da vila que estavam olhando começaram a chorar também.
Com isso, os homens mudaram de atitude e nos disseram: “Podem vir, vamos salvar vocês”. Um foi buscar ataduras e panos para estancar o sangue nas feridas de Jonathan. Usamos retalhos tirados das minhas roupas e das roupas das crianças. Ajudaram-nos a chegar numa casinha onde havia uma cama de palha, e nos providenciaram água quente para banho, alimentação e água potável. Falamos sobre nossa filha Ruth, que estava extraviada, e mandaram alguém procurá-la.
Na providência de Deus, nossos passos haviam sido dirigidos para uma vila muçulmana, da qual ninguém havia participado dos ataques. Mais uma vez, o Senhor nos protegera da morte e respondera nossas orações!
O relato do livramento miraculoso da família Goforth durante a sua viagem para sair do país continua na próxima edição do Arauto da Sua Vinda.