Série “Comunhão Nossa de Cada Dia” – Parte VI
Por: Pedro Arruda
Deus planejou um sistema contínuo e multiplicador de separação para garantir a preservação da comunhão e servir de vacina e antídoto contra a divisão. Já desde o primeiro casamento, a separação foi colocada como critério de sucessão geracional, pois, para constituir-se casal, o homem e a mulher precisam deixar seus pais, os quais, por sua vez, devem preparar a si mesmos e aos filhos de forma consciente para que não haja ruptura, mas continuidade e ampliação da comunhão (Gn 2.24). Mesmo que não seja precisamente para o casamento que o filho saia de casa, faz parte da educação recebida que, assumidas as condições de adulto, ele se desvincule da dependência paterna e siga sua vocação. Isso não representa afronta aos pais, mas, pelo contrário, produz uma sensação de missão cumprida.
Ter consciência de que o filho não é um objeto que pertence ao patrimônio particular ajuda muito na preparação para a separação. Ser pai ou mãe é, antes de tudo, uma missão que Deus nos concede a fim de podermos colaborar com ele na implantação de seu reino. Isso inclui a plena preparação do filho para a maturidade necessária para ser pai ou mãe. Por isso o casamento, que marca a separação cerimonial entre pais e filhos, é motivo de alegria e comemoração, pois celebra o cumprimento da missão dos pais e a continuidade da mesma missão, agora por parte dos filhos.
Separação Como Resultado de Maturidade
Apliquemos essa mesma situação à igreja. No princípio, a vida da igreja surgia e se desenvolvia no interior das casas, introduzindo-se no cotidiano das pessoas. Por isso nenhuma de suas atividades era estranha ao ambiente familiar. Para os primeiros cristãos tão rotineiro como lavar roupas, fazer comida, tratar dos animais ou trabalhar como carpinteiro ou pescador era receber outras pessoas em casa para comer juntos, orar, conversar sobre Deus e reunir recursos para ajudar os necessitados. Era dentro desse contexto que as crianças cresciam, vendo seus pais agirem como presbíteros ou diáconos e ouvindo profecias e explicações dos mestres. Desde tenra idade, crescia em cada uma o desejo de assumir responsabilidades espirituais à medida que se alcançasse a maturidade adulta, com a mesma naturalidade com que se aprendiam os ofícios paterno e materno.
Dessa forma, o exercício ministerial desenvolvia-se como um aprendizado natural da vida. É possível imaginar a alegria da família quando, ao final de uma jornada, o filho mais velho apresentava o primeiro móvel confeccionado por ele mesmo, de acordo com as instruções do pai carpinteiro. Igualmente, não seria menor a alegria de ver o filho evangelizando ou proferindo palavras proféticas, tornando-se respeitável por seu conteúdo espiritual. Assim como ele se preparava para um dia sustentar materialmente a família que iria constituir, também se treinava para assumir as funções ministeriais.
A separação segundo a vontade de Deus produz alegria, satisfação, coragem e vontade de enfrentar novos desafios; é algo a ser celebrado, pois constitui um ciclo virtuoso que fortalece a comunhão, uma vez que não é fruto de disputas entre as partes. Entretanto o homem, enganado pelo pecado e seguindo o próprio pensamento, tem contrariado o fluxo natural estabelecido por Deus. Por isso as separações na igreja em nossos dias geram rupturas, impedidas pelas quais, as partes envolvidas não se dispõem mais a dialogar. A divisão – filhote de Satanás – adentrou nas igrejas e mantém-se em atividade constante, sob a tolerância e auxílio dos próprios cristãos.
A Raiz de Todas as Divisões na Igreja
A primeira divisão objetiva que o inimigo causou à igreja não foi a separação histórica entre Roma e Constantinopla, entre o Ocidente e o Oriente, no século XI. Na verdade, uma de suas estratégias originais foi a de catalogar as atividades essencialmente cristãs que distinguiam uma família das demais, dividindo a vida em duas partes: sacra e secular. As atividades sacras, que caracterizavam o relacionamento com Deus, foram sacadas de dentro dos lares e confinadas num ambiente próprio, tido como adequado a elas, fazendo da família e da igreja duas instituições distintas. A família cristã manteve consigo os aspectos seculares, ficando assim muito semelhante às demais, enquanto se criou um ambiente sacro-artificial para a prática cristã. Essa primeira concessão, que separou a igreja da família, abriu as portas às divisões posteriores, como um abismo chamando outro (Sl 42.7). Desde então a igreja ficou exposta ao espírito faccioso e, sem forças para resistir-lhe, tornou-se seu refém.
Ao sair do meio familiar, a igreja deixou de celebrar a separação sadia e natural do crescimento e passou a conviver com autoritarismo e rebeldia. Perdeu-se a autoridade no contexto de comunhão, e o estilo de liderança servidora foi trocado pelo comando hierárquico baseado em cargos vitalícios, favorecendo e consolidando outra divisão que classifica os cristãos em clérigos e leigos, pseudo-separação entre pais e filhos. Essa desvinculação foi prosseguindo a ponto de substituir os requisitos originais para os obreiros: o cuidado com a esposa e a disciplina dos filhos (1 Tm 3.1-12) foi trocado pelo conhecimento acadêmico, a fala eloqüente, a mente perspicaz e até o domínio de marketing. Isso possibilitou aberrações como a de igreja bem-conduzida, segundo os conceitos deste mundo, por líderes familiarmente falidos, tal como ocorre no meio empresarial.
Em decorrência, a própria liderança clerical tornou-se cada vez mais refém do espírito divisionista, produzindo assim uma espiral negativa de sucessivas divisões, como se vê atualmente. Infelizmente, não se trata apenas de divisão entre instituições e criação de novas denominações como se pretende apresentar, mas de divisão entre cristãos que, embora pertençam ao mesmo corpo, não o compreendem e, por isso, o dilaceram (1 Co 12.12-14). Essa é a sutil manifestação do espírito divisionista que atua contra a boa, agradável e perfeita vontade de Deus (Rm 12.2).
Voltando ao Padrão Original
Para evitar as divisões e impedir as separações traumáticas, devemos mirar o exemplo familiar de separação e constituição de novo lar, lembrando que a missão de um verdadeiro pai é preparar o filho para um dia também ser pai. Assim todos os líderes deveriam ter a preocupação de formar discípulos, preparando-os para semelhante separação em vida. Estes, uma vez maduros, devem assumir suas próprias responsabilidades ministeriais.
De maneira geral, porém, os patriarcas na igreja hoje estão abrindo mão desse aspecto da paternidade e usurpando a paternidade dos filhos. Ao invés de prepararem os discípulos para a maturidade e separação, liberando-os a atenderem a própria vocação, querem ampliar infinitamente o próprio ministério. Mantêm sob tutela os discípulos de seus discípulos, como um pai que mantém sob seu controle as famílias de gerações subseqüentes, considerando filhos e netos como parte de seu patrimônio e não como pertencentes a Deus. Tal pretensão é uma síndrome do sistema imperialista e expansionista mundano, típica do meio empresarial.
No ambiente familiar, os filhos cumprem etapas cronológicas de desenvolvimento até a maturidade. Espiritualmente falando, a cronologia não é tão precisa e, por isso, é muito importante atentar ao aspecto kairós do tempo, aproveitando cada etapa para incentivar o desenvolvimento à maturidade. Assim, quando chegar a hora da separação, esta ocorrerá com toda alegria e celebração, garantindo-se a manutenção da comunhão. A não-liberação do filho aniquilará seu potencial de paternidade, tornando-o eterno dependente como uma criança. Ou, se assim não for, em algum momento, fará com que ele se rebele contra a opressão paterna. O mesmo vale para o discípulo.
A família é o modelo mais legítimo para a igreja. Nela, o pai é o principal responsável pela unidade, tanto no sentido de manutenção quanto de restauração. Não é por acaso que o ministério de Elias dirige-se primeiro à conversão do coração dos pais aos filhos e só depois à dos filhos aos pais (Ml 4.5-6). Portanto é imprescindível que repensemos o conceito de autoridade espiritual. A autoridade espiritual sadia provém do conceito de paternidade, que, por sua vez, não pode ser dissociado do amor. Jesus era submisso como demonstração de sua resposta ao amor do Pai. Deus é o cabeça de Cristo, Cristo é o cabeça da igreja e também do homem que, por sua vez, é o cabeça da mulher (1 Co 11.3; Ef 5.23). Essa cadeia de autoridade é legitimada pelo vínculo do amor ágape, pois custou ao Pai o que de mais precioso ele tinha, o único filho, e, ao filho, a própria vida.
Para participar dessa cadeia de autoridade, é preciso ter a mesma disposição. O amor de Cristo é o único que pode legitimar a autoridade espiritual entre as pessoas. Se o marido não tem esse amor para com sua esposa, não tem direito de reivindicar autoridade sobre ela; igualmente, o discipulador com seu discípulo. O sistema de autoridade baseado no amor é reflexo de serviço ao outro e não uma ordem hierárquica que beneficia quem está no topo da pirâmide de comando. Quanto mais apto à obediência, mais apto à liderança. Um sistema hierárquico absoluto em si e desprovido do amor é usurpação humana, como fazem os governantes da terra. “Mas não sereis vós assim; antes o maior entre vós seja como o menor; e quem governa como quem serve” (Lc 22.24-27). Nesse caso, o servir é dar a própria vida!
A igreja continua pagando o preço do descaminho que a afastou do modelo de separação proposto por Deus, quando, cedendo à primeira divisão, separou-se da família e constituiu-se como instituição autônoma. Satanás aproveita-se disso para fazer divisões a seu modo. A restauração da igreja à família e o acatamento à separação planejada por Deus é que darão autoridade para resistir ao espírito divisionista. Não sejamos como os patriarcas de Babel, que se recusaram a espalhar-se pela Terra como Deus determinara (Gn 9.1,7; 11.3-4).