Vencendo a Crise de Identidade
Por Mateus Ferraz de Campos
O que você vai ser quando crescer? Provavelmente você já teve que responder a essa pergunta em algum momento de sua vida. Freqüentemente, essa questão é levantada ainda na infância quando não temos suficiente capacidade de discernimento nem interesse em decidir detalhes tão específicos do futuro. Quando se é criança, o futuro é algo que nunca vai chegar. No entanto, à medida que envelhecemos e somos bruscamente empurrados para fora da “Terra do Nunca”, essa pergunta, que outrora era de um teor tão inocente, passa gradativamente a assumir um caráter intimidador e até mesmo tirano.
Especialmente durante a juventude, temos grande dificuldade em lidar com o futuro. Isso acontece, principalmente, porque temos sobre nós a pressão de provar ao mundo que nossa existência tem um propósito, um significado. No entanto, o jovem é visto como um projeto inacabado de gente que, ironicamente, só será alguém “quando crescer”. E por crescer, subentende-se, ter uma profissão que o qualifique, um status social e, é claro, uma conta bancária que lhe garanta estabilidade e crédito. Para o sistema, esse conjunto de elementos define a identidade de alguém e, enquanto não conseguimos o desempenho desejável nessas áreas, somos ainda pessoas em formação.
Esse dilema constitui uma crise muito grande. Passamos toda nossa existência tentando afirmar nossa identidade através desses parâmetros para que, de alguma forma, tenhamos a aceitação de que precisamos por parte do resto do mundo – e, no final das contas, acabamos nos tornando a somatória da opinião pública.
Uma Questão Central
A questão da identidade é central na formação do indivíduo. Creio que foi essa a razão pela qual o diabo escolheu essa questão na tentação de Cristo (Mt 4). Uma vez que Cristo foi concebido sem pecado e não possuía tendências pecaminosas nem inclinações desvirtuadas em seu caráter, o tentador se baseia na questão mais íntima para tentá-lo: “Se tu és Filho de Deus…”
Essa insinuação visava contrariar a afirmação do próprio Deus a respeito da identidade de Cristo que fora manifesta em seu batismo:
“Batizado Jesus, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba, vindo sobre ele. E eis uma voz dos céus, que dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3.16-17).
O desafio do diabo a Jesus se mostra muito parecido com o desafio que muitos de nós recebemos por parte do mundo. O desafio de, através de todos os meios possíveis, provar quem somos e justificar nossa existência. E é a partir desse questionamento que ele lança suas tentações.
Essa estratégia, quando melhor analisada, faz muito sentido. O pecado tem uma profunda relação com a questão da identidade. Em última análise, o pecado é uma grande busca por afirmação pessoal. Quando pecamos, estamos tentando validar nossa existência por meio de sensações. Ao sentir-se incompleto, o ser humano busca alternativas que o façam sentir-se vivo, mesmo que seja por poucos instantes.
É assim que o adolescente cai em laços como drogas e prostituição. Em uma tentativa desesperada de sentir-se vivo e ter sua identidade afirmada, ele busca recursos que lhe transmitam essa momentânea sensação ou, pelo menos, que o ajudem a silenciar o constante questionamento interior de sua identidade. É comum vermos jovens caindo nas mais terríveis armadilhas do inimigo ao serem questionados a respeito de seu estilo de vida. Desafios como: “Você não é homem?” ou: “Você não sabe o que é viver!”, e coisas desse tipo acentuam ainda mais o desejo de provar, de alguma maneira, que sua vida faz sentido.
A estratégia é antiga. Foi a partir da insinuação de que o homem não era tudo aquilo que poderia se tornar, que Satanás induziu Eva ao pecado.
“Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gn 3.5).
Perdemos nossa identidade no jardim quando desejamos ser o que não fomos projetados para ser.
As Três Tentações de Identidade
Creio que o roteiro seguido por Satanás na tentação de Jesus constitui um padrão de tentação. Todos os três confrontos partem do princípio do questionamento da identidade: a tentação do Fazer, do Aparecer e do Ter.
1. A Tentação do Fazer
“Então, o tentador, aproximando-se, disse-lhe: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães. Jesus, porém, respondeu: Está escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.3-4).
Se partirmos do princípio de que Jesus era poderoso o suficiente para transformar pedras em pães, tinha autoridade para isso – pois é o primogênito de toda criação – e estava com fome, pois já estava há quarenta dias em jejum, chegaremos à conclusão que era totalmente lícito e justificável que ele usasse de seu poder em prol da satisfação de sua necessidade.
No entanto, embora lícito, ceder à tentação naquele momento seria o mesmo que recorrer ao seu poder para provar sua identidade. Com sua sábia resposta, Jesus está dizendo a Satanás: “Não sou o que sou pelo que posso fazer, mas posso fazer porque EU SOU”. Sua identidade procede do Pai e de toda palavra que procede de sua boca.
A tentação do Fazer está constantemente presente em nossas vidas. Somos levados a pensar que nossa identidade procede de nossas aptidões e especialidades. Basta dizer que ao questionarmos alguém sobre sua identidade, a primeira resposta será muito provavelmente uma referência à sua profissão. É por esse motivo que muitos perdem totalmente o sentido de ser ao perder seu emprego ou mesmo sua função ministerial na igreja. Somos freqüentemente moldados pelo que fazemos e acabamos incorporando a função à identidade.
Por trás dessa tentação está o desejo incontido no homem de ser o sustentador de si mesmo. Ao manipular as circunstâncias ao nosso redor, procuramos afirmar nossa identidade provando que pode-mos sobreviver sem o auxílio de ninguém – inclusive de Deus. É isso que dizemos com nossas atitudes quando consideramos nosso sustento como sendo o fruto de nosso exclusivo esforço pessoal. Ao negar que tudo procede do Pai, tentamos transformar pedras em pães para que o mundo acredite em nós e se renda diante das provas incontestáveis que apresentamos.
Jesus deixa claro que a identidade não precisa de demonstrações, uma vez que o que somos nos foi transmitido por Deus.
2. A Tentação do Aparecer
“Então, o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o sobre o pináculo do templo e lhe disse: Se és Filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito que te guardem; e: Eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra” (Mt 4.5-6).
A cena seria holywoodiana. Jesus, em pleno templo de Jerusalém, um local sagrado e cheio de fiéis, sendo carregado por anjos. Podemos imaginar o olhar atônito dos judeus com seus sacrifícios nas mãos, alguns apontando para o céu e, um a um, ajoelhando-se diante de uma demonstração de poder que só poderia mesmo ser realizada pelo Filho de Deus.
A estratégia de marketing era perfeita. Para se projetar como Filho de Deus não haveria melhor ocasião do que esta. Aparecer diante de todos em uma exibição única que renderia as melhores manchetes nos maiores jornais da época. Seria um atalho para a glória. Quem precisa ir para a cruz quando se tem o diabo como promoter?
Jesus sabia muito bem o que estava em jogo naquele momento. Ele sabia que um dia os olhos de todas as nações seriam dirigidos a ele, mas o método seria completamente diferente.
“E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo” (Jo 12.32).
Seria a crucificação de Jesus que glorificaria o Pai e não uma mera exibição pública de poder.
A satânica tentação do Aparecer consiste em alimentar no homem o desejo de se projetar. Interessantemente, o desejo de Satanás não é atrair a glória para si e, sim, desviá-la de Deus. Em um mundo cheio de pessoas procurando o papel principal no grande teatro da vida, Satanás é perito em acender as luzes sobre quem quer que seja, desde que o mundo não olhe para Deus. Aproveitando a analogia, nesse grande teatro todos aparecem em seus melhores ângulos, tendo seus defeitos meticulosamente maquiados para que o público não se desencante com suas falhas. Vestimos sempre nossas melhores roupas, exibimos nossas mais impressionantes aptidões, sempre escondendo a realidade que se revela nos bastidores da alma.
Cada vez mais, a imagem se distancia da realidade, e a maioria de nós acaba se especializando na arte de representar, na esperança de que um dia possamos nos tornar o que mostramos, ou que o espetáculo nunca acabe.
O que mais me impressiona é que Jesus escolheu exatamente o oposto do teatro.
“…não tinha aparência nem formosura; olhamo-lo, mas nenhuma beleza havia que nos agradasse” (Is 53.2).
Foi por meio de sua humilhação que ele foi exaltado à direita de Deus, a renúncia foi sua conquista, a dor foi sua vitória. Autêntico, veraz, sincero, real. Esse é o seu modelo.
3. A Tentação do Ter
A última das tentações do deserto é, talvez, a mais perspicaz. Satanás agora faz uma proposta a Jesus.
“Levou-o ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles, e lhe disse: Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mt 4.8).
O evangelista Lucas acrescenta um detalhe importante. O diabo diz que tem o domínio dos reinos do mundo porque lhe foram entregues. Bem, os reinos deste mundo estão claramente sob domínio satânico – basta olharmos para o domínio da maldade que impera em nossos sistemas governamentais e políticos, e chegaremos facilmente à conclusão de que o administrador por trás dos maiores empreendimentos humanos é o diabo. No entanto, sabemos muito bem (e Satanás também o sabe) que esse domínio é temporário. Em breve, o Rei tomará o que lhe é de direito. Considerando o fato de que Deus está acima da dimensão do tempo, ou seja, para ele não há limitação do futuro que ainda não aconteceu, esse Reino, que sempre lhe pertenceu, ainda lhe pertence. Portanto a proposta do diabo consistia em oferecer a Jesus o que já lhe pertencia, ou seja, aquilo de que Jesus não precisava.
A tentação do ter não está no fato de adquirirmos coisas e, sim, no fato de nos dobrarmos diante de qualquer ídolo para obter aquilo de que não precisamos. O consumismo se baseia exatamente nesse princípio. O errado não é adquirir e, sim, consumir sem restrições, motivado por uma ganância que sempre nos transmite a sensação de não ter-mos o suficiente, quando na verdade temos mais do que o suficiente.
O acúmulo de bens tornou-se o objetivo final da humanidade – o que lhe transmite um ilusório senso de satisfação pessoal. As pessoas passaram a ser definidas pelo volume de suas contas bancárias, pelo ano de seus automóveis e pelo valor de seus imóveis. Alguém sem esses itens é alguém sem identidade alguma perante o sistema deste mundo. Essa pressão gera em nós uma constante insatisfação, que nos faz concentrar nossos esforços no aqui e agora e esquecer dos valores eternos.
“Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam, nem roubam” (Mt 6.19-20).
O mundo conspira para nos fazer desejar ter para ser, quando já temos aquilo de que realmente precisamos, pelo fato de sermos filhos de Deus.
“Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados” (Rm 8.17).
Muitos cristãos acreditam que as mesmas palavras ditas pelo diabo poderiam também ser um discurso divino: “Tudo isso te darei se, prostrado, me adorares”. Toda adoração que se baseia em uma relação de troca é idolatria. Deus não é um negociador de barganhas. A mentalidade consumista pode corromper até mesmo nosso relacionamento com Deus, levando-nos a nos prostrarmos diante dele pelos motivos errados.
Uma Palavra Para Esta Geração
Quero falar agora com a minha geração. Sou jovem e sei muito bem como essas tentações nos são tão ardilosamente apresentadas. Em nenhum outro tempo somos tão bombardeados por essas propostas diabólicas quanto nos tempos de juventude. Talvez seja durante essa fase que Satanás concentre seus esforços, porque é precisamente nessa fase que estamos mais vulneráveis e confusos a respeito de quem somos. Precisamos provar ao mundo que somos dignos da vida que nos foi dada. Precisamos nos sentir confortáveis com nossa existência. E tais propostas parecem um atalho para preservarmos uma consciência tranqüila.
Enganosamente, sentimo-nos mais aliviados quando somos peritos em alguma coisa, quando estamos debaixo dos holofotes ou adquirindo coisas que nos tragam a sensação de sucesso. Deixa-mos nossas faculdades orgulhosas por sermos alguém – um médico, um engenheiro, um advogado – e nos afundamos em uma ciranda sistêmica em busca de um status que nos ajude a manter as aparências. Com o tempo, toda paixão de nossas vidas se vai. Fria e paulatinamente deixamos de viver para sobreviver. Deixa-mos de ser e passamos a atuar. O grande choque virá quando já for tarde demais, e os cabelos brancos trouxerem consigo o arrependimento de não termos feito algo de valioso com nossas próprias vidas. A estratégia do diabo é fazer com que passemos a vida toda tentando ser alguém para, no final, olharmos no espelho e descobrirmos que, na realidade, passamos a vida deixando de ser alguém.
Talvez a grande mensagem de Deus a esta geração seja: “Vocês não precisam provar nada para ninguém! Sua força virá de sua dependência. Sua imagem será o reflexo de Cristo. Suas posses serão acrescentadas enquanto o Reino de Deus e a sua justiça forem sua motivação.”
Pare por um instante e reflita sobre isto. Por que você está fazendo o que está fazendo? Para quem você tem dedicado o seu tempo? Qual é o verdadeiro propósito de sua vida?
Não estou dizendo para sair de sua faculdade e ingressar no seminário teológico. Talvez o Reino de Deus precise de alguém implantando esse Reino no fórum de justiça ou nas grandes empresas. Alguém que levante a bandeira do evangelho em um mundo de padrões corruptos e duplas medidas. Talvez Deus esteja contando com você para dizer: “Basta!”. Somente você pode entender o plano de Deus para sua própria vida. No entanto, uma coisa é certa. Seja o que for, sua contribuição no Reino de Deus será uma extensão de sua identidade que já foi dada por Deus em Cristo Jesus.
Ele já definiu quem somos e qual nossa missão:
“Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10).
E isso nos basta.
Mateus Ferraz de Campos é um dos pastores da Igreja do Nazareno em Americana – SP
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