Por: Eliasaf de Assis
Quando o Verbo se encarnou, o próprio Deus vestiu-se do tecido molecular humano. Tornou-se um frágil embrião, abrigado no ventre de uma jovem, portadora de um nome extremamente comum (é um nome próprio usado por seis pessoas diferentes na Bíblia). Quem a observasse, dificilmente veria alguma diferença em relação a outra moça qualquer. Ela mesma, por sua vez, estranhou a saudação do anjo (Lc 1.29).
Podemos imaginar a jovem Maria, subindo cansada às regiões montanhosas da Judéia, a caminho da casa de sua prima, Isabel. Sua gravidez era recente, e provavelmente não poderia ser percebida ainda. Isabel estava grávida de seis meses, a maior expectativa de sua vida milagrosamente prestes a ser atendida. Devia imaginar que não houvesse alegria maior do que esta que sentia. Maria entrou na casa, e saudou a Isabel.
O que ocorreu neste instante foi descrito no Evangelho (Lc 1.39-43), e ocupa desde então os registros da eternidade. Já acordei de madrugada, e fui invadido pela ternura, quando senti em minha pele, os chutinhos de meu bebê, ainda na barriga de minha esposa. Posso imaginar o que Isabel sentiu quando o bebê João Batista, num prenúncio do que seria sua vida, quebrou a monotonia intra-uterina e estremeceu de alegria ao perceber a presença de Jesus. Possuída pelo Espírito Santo, Isabel viu o que ninguém que julgue só a aparência pode ver: ela viu que Maria trazia Cristo escondido.
Meses mais tarde, Maria e seu marido empreenderam uma rigorosa viagem. Chegando ao seu destino, em uma cidade superlotada, Maria deu à luz a seu primeiro filho, e neste evento paradoxalmente singelo e cósmico, o Deus altíssimo respirou na forma de um bebê. José e Maria traziam Deus escondido, mas ninguém sabia e não houve quem lhes cedesse algum lugar.
Ninguém em Belém notou ou percebeu, mas alguns pastores camponeses, trabalhando à noite nas redondezas, recordariam o resto de suas vidas o anjo resplandecente, a milícia celestial que tornou as trevas noturnas em fulgurante e cintilante glória do Senhor, e a orquestra sideral com vozes poderosas e trovejantes como cascatas, alçando o coro que empalidece as melhores sinfonias do mundo.
“O anjo, porém, lhes disse:
Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de grande alegria, que o será para todo o povo. É que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor. Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem” (Lc 2.11-14).
Iluminados por esta sublime aparição, os pastores foram e viram além da aparência da criança que, envolta em faixas, estava deitada na manjedoura. Semelhante experiência tiveram Simeão e Ana no templo, quando Jesus foi apresentado (Lc 2.25,38).
Enquanto uns puderam reconhecer a Cristo, outras pessoas, incluindo aqui os sacerdotes e estudiosos da Bíblia, não viram o Cristo escondido. Elas esperavam um guerreiro libertador, ou heróico juiz, e Jesus foi para elas uma pedra de tropeço, ou como cita Lucas, um “alvo de contradição” (Lc 2.34).
Estas pessoas erraram porque não puderam ver além da aparência, e agiram preconceituosamente. E este é um perigo real para os cristãos nos dias de hoje.
Evangélicos Podem Desprezar a Cristo por Rotular os Outros
Nós, evangélicos, nos estabelecemos neste país à custa de muito empenho, suor e sangue. O catolicismo brasileiro herdou do imperialismo português o belicismo e a feroz resistência ao movimento evangélico. No início do século XX, pastores celebravam cultos ante saraivadas de pedras. Crianças evangélicas eram impedidas de serem enterradas em cemitérios católicos.
Se você é católico e lê estas linhas, deve compreender que na memória de alguns de nossos anciãos, ainda é bem viva a imagem do padre, que tal qual um espectro, fazia insurgir toda uma cidade contra os evangélicos. No nordeste éramos chamados de “bodes” e autores populares, como Lima Barreto, apelidavam-nos de “os bíblias”, ou “glória”.
Mesmo sob dura perseguição, a pregação evangélica extrapolou as pequenas comunidades rurais e igrejas de língua estrangeira e alcançou as metrópoles. De casas de oração feitas com madeira cortada a facão, chegamos a grandes templos com vários cultos, cujo entra e sai de milhares de pessoas leva em alguns casos a reorganizar o trânsito de cidades. Estatísticas, de moderadas a descabidas, revelam os vastos números de evangélicos, multidões vislumbradas apenas em visão e sonhos por obreiros perseverantes e devotados como Daniel Berg, Gunnar Vigreen, o casal Bagby e Paulo Leivas Macalão.
Mas se antes o desafio era crescer sob perseguição, hoje é não revidar o mal com o mal e evitar rotular os outros. E se seus “anticorpos protestantes” querem fazer parecer que este texto está sugerindo o ecumenismo, você pode perder a bênção. (Não rotule alguém que escreve contra rótulos!) Politicagens eclesiásticas ou a falsa unidade dos cleros em nada nos interessam.
Se algum dia você orou para ser permeado pelo amor de Deus e para amar aos outros do jeito certo, deve estar preparado para que o Espírito Santo trabalhe no sentido de derrubar preconceitos e julgamentos. Nesta obra, o Consolador pode nos levar a trilhar um caminho em que Cristo vem até nós escondido nas pessoas que costumamos julgar. Deus deseja alimentá-lo em lugares secos, e ele pode soberanamente exigir de você evangélico, que aprenda com um católico. Tal qual Pedro, você pode ouvir seu amoroso Senhor admoestando-o:
“E ouviu-se uma voz que se dirigia a ele: Levanta-te, Pedro! Mata e come. Mas Pedro replicou: De modo nenhum, Senhor! Porque jamais comi coisa alguma comum e imunda. Segunda vez, a voz lhe falou: Ao que Deus purificou não consideres comum” (At 10.13,15).
Evangélicos Podem Tornar-se Cegos a Suas Próprias Debilidades
Rotular outros é uma ocupação que pode nos cegar para a nossa própria condição. É o que se depreende da Escritura:
“Como é que você pode dizer ao seu irmão: “Irmão, me deixe tirar esse cisco do seu olho”, se você não repara na trave que está no seu próprio olho? Hipócrita! Tire primeiro a trave que está no seu olho e então poderá ver bem para tirar o cisco que está no olho do seu irmão” (Lc 6.42).
Este é um comportamento que se acentua em nós, evangélicos. Desde a Reforma, o protestantismo sempre precisou de um alvo para seu protesto. Não é errado, pelo contrário, é salutar precaver o rebanho de Deus contra movimentos heréticos e seitas predatórias. Mas há um componente de alienação quando criticamos o erro nos outros e o negamos em nós.
Estive em reuniões de igrejas evangélicas que se gloriam de seguir a sã doutrina. Lá, o povo foi advertido contra Harry Potter e Padre Marcelo. Embora eu compartilhe de certas opiniões críticas sobre estes personagens, na oportunidade que me deram para pregar, ataquei os namoros inconseqüentes e impuros na igreja evangélica, bem como enfatizei a necessidade de que os pais disciplinem seus filhos. Causei um alvoroço, e vi pessoas furiosas defendendo o direito de suas filhas adolescentes de “ficar” com quem quiserem.
Afinal, no dizer de alguém, “o ‘ficar’ de um evangélico é diferente do ‘ficar’ do mundo”. Mas a verdade é que a carne de evangélicos, católicos e outros, religiosos ou não, é toda igual, programada para o pecado. Mas ao rotular católicos, ou pessoas de outras religiões, os evangélicos negam-se a ver seus próprios defeitos e contradições.
Envilecer católicos, adventistas e outros, ou exacerbar as denúncias contra movimentos new age ou ocultistas (que apesar de perigosos, não merecem a atenção que lhes concedemos) é uma forma de fazer crer que o mal está fora de nós. Mas qualquer pessoa sincera sente em seu espírito como o povo de Deus precisa quedar-se em arrependimento. Quando gloriam-se dos milhões que alcançamos, meu coração sente peso e vergonha por aqueles que escandalizamos com divisões, ganância financeira e soberba doutrinária. Mas quando o Senhor nos conduzir ao arrependimento, a trave de nossos olhos cairá, e entenderemos o que diz o profeta:
“A tua ruína, ó Israel, vem de ti, e só de mim, o teu socorro” (Os 13.9).
Rotulamos Porque Ressaltamos a Ortodoxia Em Vez da Ortopraxia
Rotulamos na medida em que, satisfeitos com nosso consentimento intelectual à verdade, criticamos a doutrina ou prática dos outros. É emblemático que nós, cristãos evangélicos, sejamos por vezes chamados o “povo do livro”. Isso porque se o livro, a Bíblia, significa para nós apenas uma constituição doutrinária, vivemos uma fé literária em vez de uma fé literal. Mais do que crer corretamente, precisamos agir corretamente. E tal qual o rapaz que nosso amado Salvador comparou aos hipócritas religiosos de seu tempo, podemos concordar com sua palavra e ao mesmo tempo não praticar nada:
“Mas que vos parece? Um homem tinha dois filhos e, dirigindo-se ao primeiro, disse: Filho, vai trabalhar hoje na minha vinha. Ele, porém, respondendo, disse: Não quero. Mas, depois, arrependendo-se, foi.
E, dirigindo-se ao segundo, falou-lhe de igual modo; e, respondendo ele, disse: Eu vou, senhor; e não foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Disseram-lhe eles: O primeiro. Disse-lhes Jesus: Em verdade vos digo que os publicanos e as meretrizes entram adiante de vós no Reino de Deus” (Mt 21.28,31).
E Jesus torna a nos advertir, deixando claro que haverá um julgamento proporcional à medida da vontade de Deus que as pessoas conhecem e praticam:
“Aquele servo, porém, que conheceu a vontade de seu senhor e não se aprontou, nem fez segundo a sua vontade será punido com muitos açoites. Aquele, porém, que não soube a vontade do seu senhor e fez coisas dignas de reprovação levará poucos açoites. Mas àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão.” (Lc 12:47,48).
Encontraremos Com Cristo ao Vencermos Nossa Xenofobia Religiosa
A Bíblia alerta quanto à xenofobia, o medo de estrangeiros (aqui usado no sentido de pessoas que pensam diferente ou têm origem diferente de nós):
“Como o natural, será entre vós o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o SENHOR, vosso Deus” (Lv 19.34).
Em contrapartida, nos exorta a praticar a xenofilia, o amor ao estrangeiro, a hospitalidade amorosa, que pode nos coroar de boas surpresas:
“Não negligencieis a hospitalidade (philoxenia no grego, ou xenofilia), pois alguns, praticando-a, sem o saber acolheram anjos” (Hb 13.2).
Você pode praticá-la:
• Ouvindo antes de criticar ou tentar converter alguém. Recebendo pessoas amorosamente, em sua casa ou igreja, amando-as porque são pessoas e não seres religiosos. Recebendo em seu círculo social pessoas de qualquer fé, valorizando suas experiências, tolerando suas buscas errôneas, exortando quando Deus lhe der oportunidade, orando por elas, desenvolvendo reais amizades, rindo e chorando juntos. Jesus acompanhou, oculto, os dois amigos que tristes conversavam no caminho de Emaús. E quando constrangido pela hospitalidade, partiu o pão no jantar, ele se revelou! É na comunhão que encontramos o Cristo escondido.
• Lendo um bom livro ou ouvindo uma mensagem sem desprezar o autor ou o conteúdo só porque é católico, tradicional, carismático, não carismático, liberal ou qualquer outro “rótulo” cristão que temos costume de usar. Quando julgamos uma pessoa por sua procedência, unimo-nos em atitude a Natanael, que disse:
“De Nazaré pode sair alguma coisa boa?” (Jo 1.46a).
Essa pergunta beligerante o manteria longe da melhor coisa que alguém pode experimentar, que é viver, amar e morrer por Jesus.
De coração aberto, e um espírito brando, sigamos o conselho de Filipe no evangelho:
“Vem e vê” (Jo 1:46 b).
É Cristo quem nos aguarda.
Eliasaf de Assis é sociólogo, conferencista e diretor da Escola Cristã de Ensino Fundamental da Vila Prudente em São Paulo – SP
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CRUZANDO A ESTRADA UM PELO OUTRO
Nós nos tornamos próximos quando nos dispomos a cruzar a estrada um pelo outro. Há tanta separação e segregação: entre negros e brancos, entre homossexuais e heterossexuais, entre jovens e idosos, entre doentes e saudáveis, entre prisioneiros e livres, entre judeus e gentios, muçulmanos e cristãos, protestantes e católicos, católicos ortodoxos gregos e católicos romanos.
Há muita estrada a cruzar. Estamos todos muito ocupados em nossos próprios círculos. Temos nosso próprio grupo de pessoas a socorrer e nossos próprios compromissos a cuidar. Mas, se pudéssemos cruzar a estrada de vez em quando e prestar atenção ao que acontece no outro lado, é provável que, de fato, nos tornássemos próximos.
CONSTRUIR PONTES ENTRE AS PESSOAS
Tornar-se próximo é construir pontes entre as pessoas. Enquanto houver distância entre nós e não pudermos olhar um nos olhos do outro, todos os tipos de falsas idéias e imagens surgirão. Apelidamos as pessoas, fazendo piadas sobre elas, as cobrimos com nossos preconceitos e evitamos contato direto com elas. Pensamos nelas como inimigos. Esquecemos que essas pessoas amam da mesma forma que nós, cuidam de seus filhos como cuidamos dos nossos, adoecem e morrem como nós. Esquecemos que essas pessoas são nossos irmãos e irmãs e as tratamos como objetos que podem ser destruídos sem a mínima consideração.
Quando tivermos a coragem de cruzar a estrada e olhar nos olhos um do outro, poderemos ver que somos filhos do mesmo Deus e membros da mesma família humana.
Extraído do livro “Pão Para o Caminho” de Henri Nouwen, Edições Loyola. Pedidos deste livro podem ser feitos à Worship Produções: 19 (3462 9893).
Henri Nouwen: 1932 – 1996