Charles H. Mackintosh
Não existe campo de estudo mais frutífero do que o da história dos tratamentos de Deus na vida de seus servos. Além de ser fascinante ler esses relatos, é também muito rico em instrução e aplicação pessoal. Talvez a maior lição que podemos tirar deles é descobrir o principal objetivo de Deus em tratar conosco: produzir verdadeiro quebrantamento e humildade; despir-nos de toda falsa justiça, esvaziar-nos de autoconfiança e ensinar-nos a depender totalmente de Cristo.
Todos precisam passar pelo processo que se pode chamar de despojamento e esvaziamento. Com alguns, esse processo começa antes da conversão ou do novo nascimento – com outros, inicia-se depois. Muitos são conduzidos a Cristo por experiências de profundos abalos e disciplinas dolorosas de coração e de consciência – experiências que podem ter-se estendido por anos a fio, em alguns casos por quase toda a vida antes de se renderem a Jesus. Outros, pelo contrário, chegam a ele com uma carga relativamente pequena de sofrimento, com poucas cicatrizes no coração. Depois de conhecerem a Jesus, logo tomam posse das boas novas do perdão de pecados pela morte redentora de Cristo e experimentam paz e alegria. Porém, ainda precisam passar pelo processo de despojamento e esvaziamento, que, em alguns casos, pode fazer com que vacilem no seu alicerce e até duvidem da conversão.
Esse processo é bastante doloroso, mas muito necessário. O coração do homem natural precisa ser ensinado e julgado mais cedo ou mais tarde. Se não for ensinado na comunhão com Deus, terá de ser disciplinado por meio de amargas experiências nos fracassos e nas derrotas. “Para que nenhuma carne se glorie na presença de Deus” (1 Co 1.29); todos nós precisamos reconhecer nossa absoluta impotência em todas as áreas a fim de provar a doçura e o conforto desta verdade: Cristo se tornou para nós sabedoria, justiça, santificação e redenção.
Deus só utiliza vasos quebrados. Não nos esqueçamos disso. É uma verdade solene e necessária: “Porque assim diz o Alto, o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos e vivificar o coração dos contritos.” E novamente: “Assim diz o Senhor: O céu é o meu trono, e a terra, o estrado dos meus pés; que casa me edificareis vós? E qual é o lugar do meu repouso? Porque a minha mão fez todas estas coisas, e todas vieram a existir, diz o Senhor, mas o homem para quem olharei é este: o aflito e abatido de espírito e que treme da minha palavra” (Is 57.15; 66.1,2).
A necessidade de quebrantamento
Estas são palavras oportunas para todos nós. O quebrantamento de espírito é uma necessidade muito notória do momento presente. Noventa por cento dos nossos problemas e dificuldades podem ser creditados à falta dessa qualidade. É impressionante como conseguimos nos dar bem nas situações mais desafiadoras do cotidiano – na família, na igreja, no mundo, em toda a nossa vida prática –, quando o ego é sujeitado e levado à morte.
Milhares de coisas que de outra maneira seriam obstáculos instransponíveis para o nosso coração passam a ser consideradas inconsequentes quando alcançamos um estado de espírito verdadeiramente contrito. Somos capacitados a suportar vergonha e insulto, a desconsiderar desfeitas e afrontas, a desprezar totalmente nossas manias, predileções e preconceitos, a ceder aos outros quando não há envolvimento de princípios essenciais, a estar prontos para executar toda boa obra, evidenciar generosidade sincera em todos os procedimentos e flexibilidade em todos os nossos movimentos morais, de forma a adornar e exaltar o testemunho prático de Deus nosso Salvador.
Lamentavelmente, na maioria das vezes, agimos de maneira exatamente contrária! Exibimos um temperamento rígido e inflexível; defendemos com intransigência nossos próprios direitos; colocamos nossos interesses em primeiro lugar; cuidamos somente daquilo que nos pertence; brigamos pelos nossos pontos de vista. Tudo isso comprova, indiscutivelmente, que o nosso “eu” não está sendo habitualmente avaliado nem julgado na presença de Deus.
Assim, tornamos a repetir – e a enfatizar – que Deus só consegue trabalhar com material quebrado. Ele nos ama demais para nos deixar duros e resistentes; é por isso que considera necessário nos passar por toda espécie de disciplina a fim de levar-nos a uma condição de coração em que possa nos usar para sua própria glória. A vontade precisa ser quebrada; a autoconfiança, a autocomplacência e a autoimportância precisam ser cortadas pela raiz. Deus fará uso dos ambientes e das circunstâncias pelas quais teremos de passar e das pessoas com quem nos relacionamos na vida diária para disciplinar o coração e sujeitar a vontade. Além disso, ele tratará conosco diretamente com a finalidade de gerar na nossa vida esses tremendos resultados práticos.
A glória divina que vem de severas provações
Tudo isso pode ser observado com grande clareza no livro de Jó e proporciona extraordinário interesse e beleza às suas páginas. Fica muito evidente que Jó precisava ser severamente “peneirado”. Se não precisasse, com toda certeza nosso gracioso e amoroso Deus não o teria submetido a isso. Não foi à toa que o Senhor deu liberdade para que Satanás tocasse no seu querido servo. Podemos dizer, com toda a confiança, que somente a mais urgente necessidade o faria adotar tal linha de ação. Deus amava Jó com um amor perfeito; mas era um amor sábio e fiel – um amor que levava em conta todas as coisas, não apenas aquilo que aparecia na superfície. Olhando para as profundidades do coração do seu servo, Deus sondava as raízes, as fontes e as motivações que o próprio Jó nunca havia visto e que, consequentemente, nunca havia julgado. Que misericórdia imensa é ser tratado por um Deus assim! Estar nas mãos daquele que não poupará esforços para subjugar tudo o que há em nós que é contrário a ele e para produzir em nós sua maravilhosa e bendita semelhança!
Querido leitor, você não vê algo profundamente significativo no fato de que Deus pode fazer uso até de Satanás como instrumento na disciplina do seu povo? Assim como na história do patriarca Jó, podemos observar o mesmo fato com o apóstolo Pedro. Pedro precisava ser peneirado, e Satanás foi usado para fazer o trabalho. “Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo” (Lc 22.31).
Aqui, também, havia uma necessidade grave. Uma raiz muito profunda precisava ser alcançada no coração de Pedro – a raiz da autoconfiança. Seu fiel Senhor viu que era absolutamente necessário fazê-lo passar por um processo extremamente severo e doloroso a fim de que essa raiz fosse exposta e julgada. Foi por isso que Satanás recebeu permissão para peneirá-lo profundamente para que ele nunca mais confiasse no próprio coração, mas andasse humildemente pelo restante dos seus dias.
Deus só consegue usar material quebrado, seja num patriarca, seja num apóstolo. Todos precisam ser abrandados e quebrantados a fim de que a glória divina possa resplandecer com fulgor cada vez mais intenso.
Charles H. Mackintosh (1820-1896) foi um pregador e escritor irlandês. Participou ativamente no Avivamento Irlandês de 1859-60.
Uma resposta
Glória. Incrível como o quebrantamento é tão necessário, tão importante, e tão ignorado pela maioria dos cristãos. Em todo o caso, a todo que deseja que Deus esteja a seu lado, ainda que inconscientemente, também deseja o quebrantamento, pois Deus está sempre perto de um coração quebrantado.