O envolvimento ou não do cristão individual, e da igreja como coletividade, na política é um assunto bastante polêmico, e inspira defesas apaixonadas em ambos os lados da questão.
Sem qualquer pretensão de ter feito uma ampla ou profunda sondagem entre representantes das diversas opiniões e posicionamentos que existem nos meios cristãos no Brasil, oferecemos aos nossos leitores três depoimentos de pessoas que enfrentaram ou ainda enfrentam o desafio de viver como cristãos nos meios políticos.
Servir a Deus e não ao sistema
O cristão é um seguidor de Cristo. A política é a arte de gerir, administrar e legislar sobre a coisa pública, na forma organizada pelo Estado e seu regime.
Para um cristão genuíno, seguir a Jesus não é uma abstração, uma alienação política, social e econômica. Ao contrário, seguir a Jesus, anunciando e vivendo a ética, os valores e princípios do reino de Deus, tem implicações políticas, sociais e econômicas relevantes no sistema social em que vivemos.
Em tese, a política procura o bem-estar social. Na prática, porém, reflete interesses de grupos sociais hegemônicos, e não raro está a serviço de interesses escusos.
A questão crucial é: como um seguidor de Jesus pode ser fiel ao seu Mestre dentro de um sistema que se opõe ao reino de Deus?
Estou convicto de que ele precisará estar consciente de sua vocação de servir a Deus e não ao sistema. Ele precisa entender a existência do Estado sob a ótica do Reino de Deus, para que, cumprindo suas funções ordenadas nas Escrituras (Rm 13), esteja desta forma também sujeito ao senhorio de Jesus Cristo.
A serviço da sociedade como um todo
O cristão, na política, não deve estar a serviço de sua igreja como instituição e sim a serviço da sociedade como um todo.
Se o cristão, no cumprimento de seu mandato cultural, isto é, em seu serviço dentro da cultura, tem uma vocação de servir na política, nada impede que o faça, desde que se mantenha leal a Cristo e aos valores éticos do Reino de Deus. Ou, em outras palavras, desde que fazer a vontade de Deus esteja acima de sua realização pessoal.
O problema é que nessa trajetória, muitos se perdem. Atribuo a queda às pressões do meio, aos interesses escusos que permeiam a atividade política, à tentativa de agradar o sistema e à sedução do poder.
Quanto aos eleitores cristãos, eles não precisam estar preocupados em ter maioria para eleger seus governantes principais, como governador ou presidente. O cristão deve escolher o melhor candidato, não por sua profissão de fé, mas por suas propostas e coerência, considerando que honestidade no trato da coisa pública é dever de todos.
O candidato pode até usar o título “cristão” para se apresentar ao eleitorado, a fim de dar testemunho pessoal de sua fé, mas jamais usá-lo como plataforma para sua eleição.
Ninguém pode impor uma teocracia em uma democracia. Não no sentido de que se é messianicamente chamado por Deus para cumprir um mandato político.
Disposto a ser rejeitado
O político cristão também precisa entender que ser rejeitado é o custo do seu testemunho. Se não fizer parte do esquema, poderá ser isolado pelos demais. Ele deve estar ciente disso para não se abater.
Na política partidária, ou você é contra ou a favor, e muitas vezes precisa arriscar a reputação em prol da verdade e da convicção pessoal. Embora isso possa lhe trazer uma sensação de vazio, deve sempre saber que não pode servir a dois senhores.
A chamada fidelidade partidária é outro problema. Se há um projeto de um partido contrário à igreja como instituição, entretanto justo para a sociedade como um todo, o político cristão, no caso do legislativo, deve votar a favor. Ao fazê-lo, tem problemas com sua base eleitoral. E se há um projeto do partido considerado injusto do ponto de vista do Reino de Deus, o político cristão não deve apoiá-lo. Desta forma, também acaba tendo problemas com seus pares.
Aí se percebe a dificuldade do cristão político em conservar sua integridade espiritual diante de Deus.
Ademir Ifanger (pastor, advogado e ex-funcionário público)
Política e igreja não devem ter vínculos
Igreja alguma deve estar vinculada a partido político. Se o político cometer qualquer deslize, a igreja despenca junto. Ora, a igreja deve ser totalmente independente, porque tem um único objetivo, o de propagar o amor de Deus através da pessoa de Jesus Cristo.
As dificuldades do meio político não são diferentes das de casa. Quem tem caráter em casa, tem também fora dela.
Você é quem faz o ambiente ou pelo menos interfere nele. Pode morar em um condomínio que é um céu, mas também pode fazer parte de uma comunidade que é um covil. Ainda assim, sua vida ali vai determinar sua reputação.
Terrível fim para um mau começo
O que tem levado muitos políticos à ruína é que não começaram corretamente. Caso tenham chegado ao poder através de acordos que resultaram ou resultem em vantagens, pode ter certeza que seu futuro está destinado ao fracasso.
Por exemplo: se um empresário pouco confiável ajuda um político, o político fica no bolso dele, preso. Terá que se sujeitar aos pedidos daquele que o ajudou.
Meu conselho a qualquer cristão interessado em entrar na política é que se for para se eleger em cima de conchavos, de favores, é melhor não entrar.
Se você não dá brechas para que o inimigo venha com propostas indecentes, eles o respeitam. Estou há nove anos na política e nunca recebi uma proposta indecente.
Nenhuma mulher vai se insinuar para um homem de respeito. Pode até sondar, mas a parede moral de sua vida é sólida, bem fechada, sem brechas.
O político precisa usar bem o seu voto, porque ele representa muitas pessoas. Caso saiba que algo está sendo conduzido de maneira errada e vota a favor daquilo, estará sendo conivente. Mesmo que não leve propina, mas vota para agradar o prefeito, a fulano ou sicrano, é participante da sujeira.
Ninguém fica impune
Agora, se o político não sabe, não tem culpa. Aí entra a justiça divina, porque Deus não deixa ninguém impune. Em tudo na vida é assim. Se alguém está sendo usado, seu manipulador vai pagar. Na política é a mesma coisa.
Tenho visto pessoas que fizeram coisas ilícitas e hoje estão pagando. Estão sendo processadas, as falcatruas estão vindo à luz, estão perdendo eleitores.
Existe a troca de favores no meio político. Mas sempre deve ser em benefício da população, nunca em proveito próprio. Além de crime, é um caminho sem volta. Se o político abrir precedente, sua fama acaba num instante e ele se acaba politicamente e até como pessoa.
Na política também há muita batalha espiritual — às vezes o mau caráter quer levar o político junto e arma calúnias para prejudicar alguém.
Além disso, há muita falsidade. Um político jamais pode dizer que não precisa de ninguém. Mesmo que um odeie o outro, não pode demonstrar isso porque amanhã pode precisar dele.
Nesse meio, o cristão deve agir como ovelha no meio de lobos, isto é, deve ser simples e prudente.
É como entrar no meio da favela para lutar contra os traficantes. Por isso, o equilíbrio é importante. Quando alguém é equilibrado no meio político, é respeitado.
Hoje, a tendência é de degradação, a ponto de homens de caráter serem descartados por grupos de pessoas inescrupulosas. Por isso está cada vez mais difícil conciliar a vida política com a cristã. Entretanto, é bom frisar, quando Deus quer usar, ninguém pode impedir. Ao político resta seguir um caminho reto e justo e não se preocupar.
Líderes precisam ser exemplo
O maior erro que tem ocorrido, trazendo sérios prejuízos ao meio cristão e desencaminhando pessoas, é usar a igreja como partido político. Nunca usei o púlpito da igreja para fazer campanha. É importante separar.
Há muitos líderes cristãos que se aproximam de políticos para obter favores. O político cristão precisa ficar alerta a esse perigo e o líder cristão precisa aprender a não misturar as coisas.
O político cristão precisa entender que se estiver defendendo somente a sua classe está, na realidade, atrás de interesses pessoais quando foi eleito para servir toda a comunidade.
Hoje já existem igrejas que estão fechadas entre si, fazendo acordos com certos candidatos, manipulando o político e a congregação do jeito que querem e usando-os para interesses pessoais, construindo ou ampliando prédios, ou tentando obter benfeitorias.
A liderança precisa ser o exemplo. Se o pastor não for o exemplo, como pode exigir que a igreja seja fiel?
Clayton Machado (Político cristão, vereador municipal)
Experiência Política de Um Grupo Cristão
Um grupo de cristãos paulistas — Pedro Arruda, o professor Moacir Alves de Faria e o engenheiro Renato Andrade Ribeiro — participam na política há muitos anos e utilizam os períodos eleitorais como oportunidade pedagógica para expor os valores cristãos.
Para eles, o importante não é vencer uma eleição mas dar um testemunho cristão. Nas campanhas das quais participaram, têm experimentado as duas possibilidades: em algumas eleições conseguem eleger o candidato com o qual trabalharam e em outras não. Até agora não conseguiram a reeleição de nenhum candidato. Por três ocasiões elegeram membros de sua comunidade como vereadores: Moacir Alves de Faria em 1988 e Edson Alves do Santos em 1996, ambos em Jandira (SP) e Renato Andrade Ribeiro em 1996 em Itapevi, municípios da Grande São Paulo.
Hábitos antigos mantidos
Embora durante a campanha, os candidatos e suas equipes de voluntários se opusessem aos “cabides de empregos públicos”, muitos interessados voltavam a insistir no pedido já negado durante a campanha. Isto muitas vezes começava pelas pessoas mais próximas, como os familiares que julgavam que o eleito tinha a obrigação de atender à solicitação. Muitos dos interessados eram encaminhados pelos seus próprios pastores, tentando usar o “prestígio pessoal” que o cargo lhes confere.
Da mesma forma a pressão para se obter os favores públicos era feita sem o menor pudor, como tornar a reivindicar material ou equipamento para o templo que não fora concedido durante a campanha. Pareciam não entender que a negativa não havia sido apenas por uma questão de não poder, mas principalmente por não se concordar eticamente com o tipo de solicitação.
Portanto, a dificuldade do político cristão não é apenas no sentido de resistir às pressões e influências de partidos, colegas, ou sistema corrupto, mas principalmente no sentido de suportar a pressão dos seus eleitores. E muitas vezes, a maior dificuldade se encontra entre os eleitores “cristãos”, talvez pelo fato de se esperar uma atitude e uma conduta diferente dos demais.
Pedro Arruda nota que no meio do povo cristão há, ainda, uma grande falta de cultura política.
“Poderíamos dizer que há uma falta de conversão neste assunto. Os mesmos hábitos que se tinha antes são mantidos após a conversão. Parece que não dão conta de que a coisa pública é de todos e não dos mais espertos. Daí a razão da insistência de se obter favores através do trafico de influência, tal e qual fazem os ímpios.
“O que muda é o tipo de produto a ser negociado em alguns casos. Ao invés de um jogo de camisa para o time de futebol, pede-se um uniforme para a equipe de coreografia. Solicita-se ônibus para transporte, não para uma excursão à praia, mas para um encontro de fé. Pedem-se instrumentos, só que ao invés de ser para uma escola de samba, é para uma banda gospel.”
Há pedidos que não mudam em nada, como, por exemplo, de usar a influência do eleito para se conseguir um emprego, dando-se um “jeitinho” no concurso público. E, o que é pior: quando não se consegue o benefício através do político cristão, o cidadão consegue por meio do não cristão e passa a ser então um desafeto daquele que, por motivos éticos e cristãos, lhe negou o solicitado. Essa é uma das razões da dificuldade da reeleição de quem tem um procedimento ético rigoroso.
“Não podemos reduzir a participação política cristã simplesmente a uma campanha eleitoral de votar ou não num candidato evangélico”, acredita Pedro Arruda. “Antes de tudo é preciso tratar com o pecado presente na relação com a política. E a atitude correta para com o pecado é o arrependimento.”