Por: Eliasaf de Assis
Ossos do Ofício
Os mortos não voltam, e nem falam. Mas seus esqueletos são cheios de coisas para dizer. Ao estudar um esqueleto ou uma ossada, um antropólogo pode decifrar várias pistas do passado. A idade e o sexo da pessoa, sua saúde e mesmo seu nível social (se era um rico sedentário ou um escravo raquítico) estão lá, literalmente impressos em seus ossos. Os tendões e ligamentos, acionados pelo trabalho constante, deixam marcas indeléveis nos ossos tornando possível descobrir o tipo de trabalho que alguém fazia, observando as ranhuras.
Nosso trabalho é assim. Deixa traços que sobreviverão após a nossa partida e que nos marcarão por toda a eternidade. Os primeiros cristãos, quando eram sepultados nas catacumbas, costumavam decorar seus nichos funerários com desenhos e adornos de sua relação com Jesus e também de seu ofício. É um hábito carregado de significado: encontraremos com Deus após nossa morte e prestaremos conta do que fizemos, inclusive no “horário comercial”. Pois é impossível viver o nosso cristianismo apenas no happy hour ou no fim de semana. Se a vida abundante não invadir minha “prisão de 8h00 às 17h00”, serei um ser fragmentado. Devo preparar-me para aquele dia em que me apresentarei ao Senhor como um ser integral: espírito, alma, corpo, ferramentas e profissão.
Alugando a Mão de Obra e a Alma dos Homens
Levando em conta o tempo que nos toma (afinal, contadas 40 horas de trabalho semanais, você aos 60 anos terá trabalhado algo como 90.000 horas) e sua importância para a nossa sobrevivência, já percebemos como o trabalho deve ser estudado de perto pelos cristãos. Até porque, modernamente, o trabalho não permite neutralidade, é sempre um convite ao conflito: crítica, oposição e embate de idéias.
O trabalho traz à tona o melhor e o pior de nós. Pode subsidiar nosso serviço a Cristo ou pode impedi-lo. A preguiça é um pecado: pode ser interpretada como a cama (acomodação e ociosidade) que esconde a lâmpada do meu testemunho. Mas o alqueire (trabalho e ocupação terrena) também pode encobrir a minha luz.
Negócios e amizades talvez possam ser apartados, mas negócios e espiritualidade se comprometem mutuamente. Minha fé limitará meus negócios (e o tempo e intensidade que lhes dedico) e meus negócios limitarão minha fé. Podemos notar facilmente a mente maligna no carnaval, no crime, na corrupção política e no esoterismo, mas podemos igualmente vê-la no mundo do trabalho? Afinal, já que o mundo jaz no maligno, o trabalho, a educação e a ciência não são mais instituições neutras. São terrenos dominados, e quando lidamos com eles estamos lidando com um sistema inteiro que está sob o juízo divino, e que um dia mostrará seus dentes, manifestando sua natureza de anticristo.
Nossas igrejas preocupam-se acertadamente com o desemprego. Mas o que fazer quando o nosso emprego nos desemprega espiritualmente? Damos ao trabalho tudo o que podemos (mais o que nos é cobrado) e as sobras são de Cristo: orações interrompidas na metade, pregações não captadas pela mente cansada e (quando muito) ofertas para que obreiros em tempo integral façam o que não podemos fazer.
Este assunto torna-se ainda mais relevante com a ênfase descomunal que o trabalho tomou em nossa cultura. Quando alguém se emprega em uma empresa, está alugando a sua mão de obra para a organização. Mas, na filosofia da maioria das empresas, o compromisso exigido é quase religioso: não basta vestir a camisa, ultimamente devemos tatuá-la em nossa pele. Apesar de cansados, devemos parecer sempre motivados. Alugamos não apenas nossa mão de obra, mas também nossas almas. Você já se sentiu assim, exaurido emocionalmente e obrigado a aparentar que tudo está bem, sorrindo para o cliente mesmo quando não quer? Explica-se por que os bares estão lotados após o horário de trabalho: as pessoas querem um lugar onde possam ser elas mesmas e despejar seus desapontamentos.
Sem desejar cansar o leitor com análises históricas, isso ocorre porque nos últimos dois séculos a revolução industrial “industrializou” não apenas o processo em que as mercadorias são produzidas, mas também o tempo e mesmo a organização da família. A nossa sociedade industrial separou claramente o tempo em: tempo de trabalho e tempo de lazer. Sem dúvida, não devemos brincar em nosso tempo de trabalho, mas quais são as conseqüências desta exploração do homem em dois tempos e áreas tão distintas?
A Humanidade: Mergulhada em Compulsões
“Todo trabalho do homem é para a sua boca; e, contudo, nunca se satisfaz o seu apetite” (Eclesiastes 6.7).
A compulsão para o trabalho
Essa atitude de dilatar o valor do trabalho é chamada de compulsão para o trabalho. É também chamada de workaholic em inglês, o que compara o vício pelo trabalho com a dependência alcoólica (alcoholic – alcoólatra). É motivada por muitos fatores, mas analisaremos aqui duas causas que implicam diretamente em nossa condição espiritual: a busca por satisfazer os valores de nossa sociedade e o medo da pobreza. O primeiro tem a ver com conformar-se aos moldes deste mundo, o segundo com quem cuida de nós.
A) Conformando-se aos moldes deste mundo
É claro que o trabalho não é o inimigo, mas sim o estilo de vida que orbita exclusivamente em torno dele. É por causa desta “gravidade poderosa” que a atmosfera psicológica de uma empresa tem invadido nosso lar. Até mesmo a configuração física, na forma dos escritórios domésticos, tem reformulado a arquitetura do ambiente familiar. Debruça dos sobre a planta da casa de seus sonhos, um casal cristão desejava, algum tempo atrás, um cômodo que dedicaria à oração; hoje tal espaço é usado para instalar nossos “Home-Office”, onde, ocupados, diremos aos nossos filhos que não interrompam o nosso trabalho. Assim, cada vez mais, o suor do trabalho ininterrupto tem salgado definitivamente o nosso doce lar.
Ao tentar atender os valores de nossa sociedade, o “workaholismo” é autofrustrante, isto é, ele mesmo provoca uma situação que não deseja. Trabalhando além de suas forças, a pessoa começa a gastar as energias que não tem, sejam elas as da família, ou aquelas que reservaria para sua vida espiritual. Cansado, o viciado em trabalho tem um mau desempenho e não pode nem reclamar. Caso se lamente, será avaliado como desmotivado. Por isso, deve manter a aparência de alguém cansado, mas disposto. Afinal, o estresse é julgado como uma virtude, pois comprova que somos pessoas ocupadas. Admira-se uma pessoa que tem a agenda lotada! E alguém que não suporta este estilo de vida é julgado inadequado para os empregos e tempos modernos.
B) Quem cuida de nós
O medo da pobreza é a expectativa de que terminaremos nossos dias em necessidade e falidos. Homens e mulheres, dominados pelo medo da pobreza, lançam-se febrilmente ao trabalho para o “bem” de seus filhos e, depois, só conseguem vê-los quando estão dormindo ou quando os levam à terapia (ou aconselhamento pastoral), onde o diagnóstico pouco varia: ausência dos pais. Tornam-se alheios ao que ocorre em sua casa e família, já que vivem em outro mundo, o mundo do seu trabalho.
Somos levados a esta condição espiritual pela falta de fé. Julgamos que nossas necessidades só podem ser supridas se nos matarmos de trabalhar. Essa nossa postura de nos dedicarmos radicalmente ao trabalho é fortalecida pela acirrada pregação, não dos púlpitos, mas dos telejornais que nos assombram quando, esgotados, chegamos do serviço. Cercados por tantos “maus relatórios”, agimos como se o cuidado de nossa vida dependesse exclusivamente de nós mesmos. Tomados pelo medo do desamparo, nossa situação reflete o estado de alma de Jó:
“Por que o que eu temia me veio, e o que receava me aconteceu? Nunca estive descansado, nem sosseguei, nem repousei, mas veio sobre mim a perturbação” (Jó 3.25,26)
A compulsão para o lazer
“… para que bebam, e se esqueçam da sua pobreza, e do seu trabalho não se lembrem mais” (Provérbios 31.7).
Para contrabalançar, o próprio sistema criou a “indústria do lazer”, menor economicamente apenas que a de automóveis. Essa indústria floresce graças à compulsão para a recreação. Os cansados e esgotados são as principais vítimas desta compulsão. Procuram-se nos fliperamas, cinemas, viagens caras e entretenimento em geral trazer algum alento e distração às almas cansadas. Acessível apenas a quem pode pagar, o lazer e “descanso” deste mundo endivida muita gente, que se lança à compulsão pelo trabalho para custear sua compulsão para o lazer1.
Há cada vez mais recreação e cada vez menos descanso. Nossa sociedade perdeu a verdadeira prática do lazer, e é vencida por vícios (quase todos de caráter recreativo) e preocupada com programas de recuperação. Como em toda compulsão, as pessoas não encontram a verdadeira satisfação que são o lazer e o descanso genuínos.
Em algum lugar do futuro…
“Melhor é um punhado de descanso do que ambas as mãos cheias de trabalho e correr atrás do vento” (Eclesiastes 4.6).
Costumamos adiar o melhor de nossas vidas (seja na família ou na carreira cristã) para um momento quando estivermos mais tranqüilos. Este momento fica em algum lugar do futuro, talvez no “ano que vem”, quando nos mudaremos para uma cidade mais tranqüila e nossa vida assumirá um ritmo mais sereno. Oraremos com o nosso cônjuge, caminharemos de braços dados sem hora para chegar, tomaremos nossos filhos nos braços sem olhar nossos relógios e subiremos à casa do Senhor com nossos celulares desligados, atendendo apenas às chamadas divinas.
Enquanto este momento não vem, nos debatemos com um estilo de vida que enlouqueceria nossos avós. Chegamos cedo ao trabalho, mas sempre com a sensação de estarmos atrasados ou com uma montanha de trabalho à nossa espera. Saímos dele tarde, mal vemos nossos filhos crescerem e, mesmo cansados, ainda carregamos a sensação de que não fizemos tudo o que devia ser feito.
Como, vivendo vidas tão profundamente agitadas, poderemos viver o evangelho de Jesus de forma integral? Como nos libertaremos de um estilo de vida tão fragmentado, situados em dois mundos tão antagônicos? Resta um descanso para o povo de Deus?
Uma Perspectiva Cristã do Lazer
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo é leve” (Mateus 11.28-30)
Como são doces estas palavras do amável Senhor! Este mundo procura nos submergir e nos repudia quando nos sentimos fracos e inadequados. Mas é justamente este cansaço e sobrecarga que atrai o terno olhar de Jesus. É aos cansados que ele faz sua chamada e promessa, claras e reconfortantes. Alívio e descanso. Essas palavras são remédio para nossa alma.
Este remédio atua em nosso íntimo, pois é a partir daí que nossa vida exterior pode ser mudada. Com base nisso, pensemos a respeito dos diferentes conceitos a respeito de lazer:
• Lazer = ociosidade
• Lazer = recreação
• Lazer = tempo livre
Podemos afirmar que o ócio não pode ser considerado lazer (embora muitos insistam em usá-lo como sinônimo), pois causa ansiedade e abala a paz interior. Ociosidade é uma palavra carregada de conotações negativas: preguiça e improdutividade. Mas o lazer, embora possa parecer desperdício, é espiritualmente produtivo, pois nutre a sensibilidade para os encontros divinos.
Olhando para o passado, bem antes de nossa era industrial, podemos encontrar algum esclarecimento. Precisamos fazer isso, porque nossas interpretações sobre o trabalho e o lazer são nubladas pelos conceitos de nossa época. Os pais da igreja falavam sobre o lazer santo. O que é redundante, já que lazer é implicitamente santo: a palavra vem de licere, lícito em latim. É lícito e, por isso, deve ser experimentado sem remorsos. Aliás, ao descansarmos, devemos nos sentir obedecendo a Deus.
O lazer pode incluir recreação (jogos, brincadeiras, passeios, etc…), mas é ainda mais, é uma condição da alma. A recreação pode ser apenas exterior, mas o lazer necessariamente se hospedará em nosso interior. O lazer é uma atitude interior que conduz à simplicidade, ao refrigério na comunhão com outros e à contemplação. É uma atitude que nos permite contemplar a natureza, relacionar-se com as pessoas à nossa volta, praticar atividades que não dão dinheiro, mas fazem a alma repousar.
Por que Jesus escrevia na terra com o dedo? Qual o significado disso e o que era escrito? Ninguém sabe! Um dos maiores mistérios do evangelho (para mim) pode sugerir que ele estava apenas rabiscando, se distraindo. Nem por isso estava indisponível para ser usado por Deus.
O trabalho sem lazer e o entretenimento compulsivo destroem a atenção espiritual. Esta era a estratégia do Faraó no êxodo: dê-lhes mais trabalho para esquecerem este negócio de Deus. O verdadeiro lazer possibilita um estado de alma onde a espiritualidade pode se despertar. Nossa atenção espiritual deve ser restabelecida.
O lazer é tempo livre, mas esta liberdade só é encontrada em sintonia com a presença de Deus. A experiência o comprova: tente desfrutar de uma viagem, da natureza ou da companhia dos amigos e manter a sensação da presença de Deus junto com você. Tudo ganha significado e novo sabor, se Deus está presente. Homens como irmão Lawrence viveram e testemunharam isso.
Parece exagero? Não deveríamos confinar a presença de Deus a nossas reuniões. De forma bem humorada, quero dizer que Deus reivindica sua mobilidade. Dê a ele a liberdade de ir e vir.
E é minha interpretação particular do evangelho que Jesus curava aos sábados, o dia judaico estabelecido para o lazer santo, porque Deus fez o “sábado para o homem” (Mc 2.27), isto é, o reservou como o momento em que o homem repousa e Deus cuida dele. Lazer santo é usufruir momentos onde nos abandonamos nas mãos divinas.
Não alcançaremos isso enquanto a voz insistente de nosso tempo conseguir nos inquietar. Essa voz diz que não podemos largar nada, por um minuto que seja, e que a tensão deve nos dominar para que tudo saia bem. Somos, dessa forma, semelhantes ao bebê que se agarra à manga da camisa do pai com medo de cair, ignorando que o pai o sustenta com braços fortes e amorosos. Se o bebê dormir, soltará suas mãos e relaxará. O lazer santo é permitir-se dormir no doce embalar do colo do pai. É fazer dos versos abaixo nossa oração:
Cristo nosso sábado, nosso descanso e repouso
Hoje nos lançamos ao relento do seu mover
Pois todas as nossa obras, tu fazes por nós;
Deus que tudo executa.
Eliasaf de Assis é sociólogo, conferencista e diretor da Escola Cristã de Ensino Fundamental da Vila Prudente em São Paulo-SP.