30 de dezembro de 2024

Ler é sagrado!

Materialismo de Alto Risco

Por: J. V. Fesko

Uma mentalidade muito popular hoje em dia é que quanto mais riquezas e bens uma pessoa consegue acumular, melhor será a sua vida. Em síntese, é uma vida dominada pelo materialismo. Com certeza, sabemos como cristãos que idolatrar qualquer tipo de posse ou objeto é inerentemente errado, pois a ordem de Deus é que não permitamos espécie alguma de ídolo em nossas vidas. Qualquer coisa que tome o lugar de Jesus Cristo, em última análise, tem natureza maligna.

Entretanto, para a mente inquiridora, ordens definitivas geralmente só geram mais perguntas no coração: Por que o materialismo é um inimigo tão perigoso para o cristão? O que há no materialismo que o torna tão mortífero? Para responder, devemos em primeiro lugar determinar o propósito da existência do homem. Dentro desse contexto, os perigos do materialismo se tornam mais evidentes.

Quando pensamos no propósito do homem, voltamos nosso foco para os primeiros capítulos da Bíblia, para o Jardim do Éden. Foi lá que Deus criou o homem à sua própria imagem, “um pouco menor do que os seres celestiais”, coroado “de glória e de honra” (Sl 8.5). O homem foi colocado sobre toda a criação como seu governante, exatamente como Deus se assenta sobre toda a criação como Senhor. Além disso, o homem foi destinado a viver na presença de Deus, a encontrar satisfação somente nele.

Como todos nós sabemos, o homem não se satisfez com essas condições e se rebelou contra Deus. O apóstolo Paulo nos conta que os homens, dizendo-se sábios, tornaram-se loucos e trocaram a glória do Deus imortal por imagens feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de pássaros, quadrúpedes e répteis (Rm 1.22-23).

João Calvino talvez tenha feito a melhor síntese da situação quando escreveu: “assim como a temeridade e a superficialidade se unem à ignorância e à obscuridade, dificilmente se encontra uma única pessoa que não tenha inventado para si mesma um ídolo ou espectro no lugar de Deus. Com toda a certeza, assim como as águas brotam de uma fonte vasta e completa, da mesma forma uma imensa multidão de deuses emerge da mente humana, enquanto cada um, vagueando por aí com excesso de licenciosidade, erroneamente inventa isto ou aquilo a respeito do próprio Deus” (Institutas, 1.5.12).

O Caminho mais Certo para o Inferno

Com isso, chegamos a duas importantes conclusões. Primeira, que o homem foi criado para achar a sua satisfação somente em Deus; segunda, que, devido à sua rebeldia, ele pode transformar – e realmente transforma – qualquer coisa num ídolo. Quando entendemos esse quadro como contexto para o materialismo, temos uma maior compreensão dos seus perigos.

C. S. Lewis observou, certa vez, que o caminho mais certo para o inferno é aquele que é gradativo – com declive delicado, terreno macio, sem fortes curvas, sem marcos, sem placas. Esse é o perigo apresentado pelo materialismo. Nenhum cristão começa numa direção, pretendendo se tornar idólatra, prestando maior culto às posses do que a Cristo. O que realmente acontece é que ele faz uma comprinha aqui, outra ali, e logo seus pensamentos são dominados com a expectativa da próxima aquisição material. De modo lento, mas firme, como uma criança que belisca a sobremesa antes da refeição, ele perde seu apetite para o prato principal – a parte que realmente interessa.

John Piper notou que “o maior inimigo da fome de Deus não é o veneno e, sim, a torta de maçã. Não é o banquete dos ímpios que embota o nosso apetite pelo céu, é o incessante beliscar à mesa do mundo. Não é o vídeo obsceno, mas o gotejar de trivialidades no horário nobre que bebericamos todas as noites. Apesar de todo o mal que Satanás tem potencial para nos fazer, quando Deus descreve as coisas que poderão nos privar do banquete do seu amor, descobrimos que a lista contém um terreno, uma junta de bois e uma esposa (Lc 14.18-20). Os maiores adversários do nosso amor por Deus não são os inimigos dele – são suas dádivas a nós. E os desejos mais letais não são os apetites pelo veneno do mal, mas pelos simples prazeres terrenos. Pois quando substituem o apetite pelo próprio Deus, a idolatria é difícil de ser reconhecida e quase incurável” (Fome por Deus).

Lembre-se: assim como não há nada de errado em comer uma sobremesa, também não há nada de errado com a posse de bens materiais. Pelo contrário, é justamente a prioridade desses bens materiais nas nossas vidas que faz toda a diferença no mundo. Não há nenhuma piedade inerente nem na falta nem na abundância de bens materiais. Encontramos servos de Deus na história da redenção tanto de um lado quanto do outro. Abraão tinha 300 empregados (Gn 14.14) enquanto João Batista possuía nada ou quase nada; contudo ambos buscaram a Deus ardentemente. O mais importante é reconhecer o perigo da idolatria que existe no materialismo; para isso, porém, é necessário reconhecer o vazio total que ele representa.

Quando olhamos para bens materiais, estamos face a face com o fascínio de um atraente – e insípido – substituto para Deus. É necessário que compreendamos que posses materiais são temporárias – elas não perduram. Como Cristo nos alerta: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem, e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam nem roubam” (Mt 6.19-20). Além disso, quando consideramos que Deus nos criou para que encontrássemos nossa satisfação somente nele, podemos compreender que estamos num empreendimento inútil quando tentamos encontrar satisfação naquilo que é temporal.

 O Cão Que Corre Atrás do Próprio Rabo

Com isso, não queremos denegrir a posse de bens materiais – as boas dádivas que Deus derrama sobre nós. Entretanto, quando idolatramos a essas boas dádivas, estamos agindo como o cão do provérbio que corre atrás do próprio rabo – pois nunca encontraremos satisfação. Sabemos, por exemplo, que Abraão, embora sendo um homem rico, não caiu na armadilha do materialismo. Ele possuía muitos bens, e Deus ainda prometeu lhe dar a Terra Prometida (Gn 17.8). Apesar de tudo isso, sabemos, através do livro de Hebreus, que a Terra Prometida não era o alvo dos anseios de Abraão: “Porque aguardava a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador” (Hb 11.10). Abraão não deu prioridade àquilo que era transitório, antes buscava o que é eterno.

É só quando buscamos viver de acordo com o propósito para o qual fomos criados – de encontrar satisfação somente em Cristo – que estaremos verdadeiramente contentes. Estes dois perigos do materialismo, a saber, a maneira sutil com que o materialismo nos seduz para longe de Deus e a natureza fugaz das coisas materiais, ajudam a ilustrar o modo de viver que Deus planejou para nós.

Com a ressurreição de Cristo, sabemos que a era escatológica irrompeu na história, que será consumada com a vinda definitiva do Reino de Deus. Conseqüentemente, precisamos nos lembrar de quem nós somos: filhos do Deus vivo e cidadãos do Reino Celestial, da Nova Jerusalém (Rm 8.16-17; Ap 3.12). Não devemos viver como se ainda fôssemos habitantes deste presente século mau (Gl 1.4). Pelo contrário, devemos viver com os olhos firmemente fixados em Cristo, aquele que inaugurou a era por vir, a era eterna.

Geerhardus Vos comentou que o cristão que “não tem os olhos direcionados para frente e para cima está com sintomas de anomalia, enfermidade, decadência. Tê-los apontados para cima e para frente é sinal de vida, saúde e força. O ar do mundo por vir é a atmosfera vital que lhe dá prazer em respirar e fora da qual se sente depressivo e lânguido” (Grace and Glory – “Graça e Glória” – p. 143). Se reconhecermos também que esta terra não é o céu, teremos muito mais chances de não concedermos aos bens materiais um lugar muito importante nas nossas vidas. Precisamos, como anotou Vos, “considerar a presente vida terrena uma jornada, uma peregrinação, algo necessário por causa do objetivo mas que não tem em si mesmo nenhum valor independente ou atrativo” (Grace and Glory – “Graça e Glória” – p. 146).

Com nosso olhar fixado firmemente em Cristo, sua beleza e sua excelência superarão de longe o encanto e as tentações do materialismo. Não deixemos nunca que qualquer bem ou objeto material tome o lugar supremo que pertence a Cristo.

Publicado com permissão do Seminário Teológico Reformado. Este artigo foi publicado originalmente no periódico Reformed Quarterly, Primavera/Verão 2003.

J.V.Fesko é professor convidado de Teologia Sistemática no RTS – Atlanta, Geórgia, EUA. Ele é pastor da Igreja Presbiteriana Ortodoxa Genebra em Marietta, Geórgia, EUA.

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