21 de dezembro de 2024

Ler é sagrado!

Missões: O Garimpeiro de Almas

Por Luiz Montanini

A caminhonete ‘traçada’ – expressão popular para veículos equipados com tração nas quatro rodas – chega na Chácara Embaixadores, conhecido local de treinamento missionário em Paulínia, SP, dirigido pelos irmãos Pedro e Odenir Sortica e suas respectivas esposas, Isabel e Sueli.

O pastor Gustaf Adolf Bringsken, 72 anos, sorridente e bem disposto, como sempre, desce do veículo.

Este é o homem que há 50 anos saiu da Holanda para o Brasil, disposto a anunciar o evangelho do Reino onde jamais fora pregado. E, para isso, decidiu viver justamente entre índios nada amigáveis e na maior e pior área de conflito de terras do Brasil, a região de São Félix do Araguaia.

Gustaf Adolf e sua mulher Janey poucos conhecem. Mas, do pastor Gustavo e Janey, boa parte dos missionários brasileiros já ouviu falar.

Em outubro de 2005, o pastor Gustavo e a irmã Janey completaram 50 anos de missões no Brasil. Meio século, destaque-se. A história deles valeria um belo livro em papel cuchê e em fino acabamento, mas eles não têm nenhum interesse em correr atrás de reconhecimento. Correm, remam e voam atrás de almas para Cristo.

Pastor Gustavo é o homem do campo. Irmã Janey é a legítima ajudadora idônea. Fica em casa, em Vila Bela, MT, intercedendo e cuidando das almas que ganharam e ainda ganham por ali.

Da raça, tribo e cor que fossem e aonde quer que estivessem, ainda que ali vivesse uma só alma, o pastor Gustavo nunca hesitou em buscá-la para Deus, por ar, terra ou água, não raro pelas três formas de transporte em seqüência, por meio de muitos perigos, que não caberiam se listados aqui. Pela graça e poder de Deus, tem vencido literalmente serpentes venenosas, escorpiões e outros bichos.

Agora, você vai se surpreender quando eu lhe informar o número de pessoas que o pastor Gustavo ganhou para Jesus nestes 50 anos de Brasil. Melhor, deixe que ele próprio responda:

“Quantas pessoas ganhas para Jesus nesse meio século, pastor Gustavo?”

“Não sei.”

É isso. O pastor Gustavo ganhou centenas, talvez milhares de pessoas para Cristo ao longo dos anos, mas nunca saiu de caderneta na mão, anotando seus bons resultados. Ele não tem qualquer interesse nisso. Faz o que realmente importa. É um garimpeiro do evangelho: só procura o ouro puro – não se ocupa com bijuterias.

De sua parte, ganha as pessoas e parte para outro campo. De preferência, procura achar ainda lugares onde Cristo não foi pregado (e há muitos ainda hoje, esteja certo). Volta e meia, retorna aos campos abertos para cuidar, animar na fé e treinar os convertidos para a continuidade da obra, porque “a seara é grande”.

Das almas que ganhou – por viagens de barco, jipes ou vôos pilotando seu Cessna 170C, doado por irmãos holandeses – muitas se tornaram pastores e missionários frutíferos que, por sua vez, como os próprios Pedro e Odenir Sortica, citados acima, ganharam e continuam a ganhar outros, para a glória de Deus, num crescimento exponencial.

A voz de menor volume

Gustavo foi convertido a Cristo ainda adolescente, “com 15 ou 16 anos” – na Holanda arrasada pela Segunda Grande Guerra, por volta de 1950. Aos dezoito anos, sua vida foi radicalmente mudada por um fato aparentemente simples, num culto noturno em uma igreja presbiteriana que, aliás, não era sua igreja de origem – na época fazia parte dos chamados “Irmãos Livres”.

Um missionário mostrava um filme a respeito do Tibet. Durante a projeção, Gustavo lembra que Deus lhe informou que ele iria pregar o evangelho onde ninguém pregara, para não edificar sobre fundamento alheio, conforme Paulo observa em sua carta aos Romanos (Rm 15.20).

Entre a palavra que lhe trouxe alegria e a realização da visão havia um caminho, e Gustavo ainda não o conhecia. Queria servir ao Senhor, mas não sabia por onde começar e nem como. Então foi aprender litografia (desenho gráfico) e resolveu esperar trabalhando para ajudar sua mãe e duas irmãs a sustentar a família.

Foi bem na profissão, lembra. Entretanto, quatro dias antes de assinar um bom contrato por três anos – a empresa iria pagar-lhe um bom salário e faculdade -, sentiu que devia abrir mão do emprego caso quisesse ver o chamado de Deus cumprido em sua vida.

Foi uma decisão difícil de ser tomada. Vários amigos, parentes e seu próprio coração lhe diziam que não precisava deixar tudo e partir. Afinal, agora iria ganhar um bom dinheiro, sinal de que Deus o estava abençoando financeiramente e que poderia ajudar a enviar outros ao invés de sair feito um Abrão para uma terra que nem sabia qual era. Felizmente para o Brasil, Gustavo teve ouvidos para ouvir a voz de menor volume no dial da sua mente.

Treinamento num Grupo Histórico

Naquela época, ser batizado e desfrutar da comunhão com os Irmãos Livres europeus significava automaticamente um treinamento de excelência. Embora poucos o reconheçam, e sejam apontados mais os erros e desvios do movimento, o fato é que os Irmãos Livres tiveram papel relevante em alguns aspectos da ainda incipiente restauração da igreja (veja a respeito dos Irmãos Livres no livro A História Que Não Foi Contada, de John Walker e outros).

Os Irmãos Livres foram, por exemplo, um dos precursores da visão de corpo de Cristo e não de denominação. Os grupos faziam cultos de oração nas casas e Gustavo fazia parte de um deles que se reunia na casa de Hilda Kooy, que viria a se tornar sua sogra.

Foi um tempo de grande avivamento, inclusive naquela casa. Uma prova: dos 23 integrantes do grupo, 13 foram para o campo missionário, obedecendo ao chamado de Deus. Dentre esses saiu o Irmão André, que depois se tornaria o famoso “contrabandista de Deus”, fundador da missão “Portas Abertas” (veja mais no site www.portasabertas.com.br e no seu livro O Contrabandista de Deus). Ali, Gustavo conheceu a Janey. Passado algum tempo, o irmão André conseguiu ultrapassar com seu famoso Fusca a chamada “cortina de ferro” dos países comunistas, então totalmente fechados ao capitalismo e, especialmente, ao cristianismo. Enquanto isso, o pastor Gustavo e Janey vieram para os nambiquaras. E os nambiquaras os receberam.

Macumba, Sapo e Punhal

A chamada do pastor Gustavo para o Brasil foi assim: ele foi fazer um seminário bíblico interdenominacional na Suíça e, quando saiu, pediu a Deus orientação sobre aonde devia ir.

Já na Holanda, estava andando na feira livre e passava defronte a um sebo, loja, aliás, para dentro da qual nunca olhava. “Mas naquele dia me caiu o olho em um livro sobre o Brasil, que estava sobre uma mesa. Não me recordo o nome do livro, mas era escrito por um missionário inglês que tinha feito missões no Brasil. Naquele momento, Deus confirmou o Brasil em meu coração”.

Para encurtar a história, Gustavo passou algum tempo na Holanda buscando recursos, casou-se e veio para o Brasil. Havia se comunicado por cartas com um colega missionário que já estava no Brasil, em Juazeiro do Norte, mas dissera a ele que queria ir para um lugar onde não tinha o evangelho, preferencialmente onde havia índio.

Chegou ao Brasil em outubro de 1955 e, logo em seguida, fez uma incursão pelos Estados do Mato Grosso e Roraima e também pela Bolívia. Decidiu-se por morar e montar sua base em Vila Bela, MT. Chegou com a esposa e uma filha, recém-nascida.

“Queríamos trabalhar com os nambiquaras e para isso precisávamos aprender duas línguas, o português e o nambiquara. A cidade de Vila Bela era refúgio de negros quilombolas, descendentes de escravos. Havia apenas 6 brancos por ali, na época, e a cidade era constantemente atacada pelos nambiquaras.”

Quando chegaram à cidade, souberam que dois dias antes os nambiquaras haviam aparecido em Vila Bela, sem armas, e selado a paz. “Para nós foi uma confirmação de Deus, porque eram índios arredios e selvagens: meio ano antes haviam flechado e matado uma senhora e um agrimensor, em Vila Bela.”

O contato inicial com os indígenas foi difícil. “Entrávamos no rio, viajávamos muito e não víamos ninguém”, lembra o pastor Gustavo. Muitos anos depois, vieram saber que eram atenciosamente observados pelos índios, camuflados na floresta.

“Os índios foram se aproximando, mais por curiosidade, por sermos muito brancos, e logo sumiam no mato. Mas, como abrimos o coração para eles, logo ficaram nossos amigos e hoje há muitos convertidos em aldeias em vários estados do Brasil e na Bolívia.”

O contato com a população de Vila Bela também não foi fácil. A maioria da população era formada por ex-escravos, adeptos da macumba, que usavam esse artifício contra Gustavo e Janey. “Uma vez, rodearam a casa com velas e as acenderam na madrugada. Ficou aquele clarão”, lembra o pastor Gustavo. “Colocaram garrafa de cachaça e galinha preta no portão de casa. Na manhã seguinte, nós quebramos tudo. Outra vez, colocaram um sapo enorme espetado com um punhal no chão, acompanhado de velas. O sapo estava vivo. Libertei o bicho e guardei o presente, o punhal, que me era útil na floresta.”

“A noite inteira era macumbaria”, continua o pastor Gustavo. “O dono da macumba era delegado e o ‘cavalo’, que recebia o demônio, era primeiro sargento da Polícia Militar. Um dia, pegaram uma planta, aquela espada-de-são-jorge, e bateram em uma criança a noite toda, ‘para tirar o demônio dela’. Como o juiz de menores da época ficava só em Cáceres, a 300 km dali, no dia seguinte, eu peguei a Bíblia e fui falar com os macumbeiros. Fui como servo de Deus. Depois disso, mandaram ainda mais macumba sobre nós. Ficaram nossos inimigos por um bocado de tempo. Quinze anos depois, o sargento estava morando no Ceará e mandou me dizer que tinha se convertido e que nunca havia esquecido o que ouviu naquele dia.”

As Dificuldades para a Esposa Missionária

“Para minha esposa era difícil ficar ali, muitas vezes sozinha, enquanto eu viajava”, reconhece o pastor Gustavo. “Na vila não tinha padaria, portanto ela própria tinha de fazer o pão. A comunicação era demorada. Uma carta era transportada no lombo do boi de Vila Bela a Cáceres. A ida e volta da carta demorava trinta dias… Depois modernizou: a correspondência passou a ser levada no lombo do burro, mais veloz, e demorava apenas 21 dias! Mas Janey nunca ficou em pânico. É mulher de Deus.”

De Vila Bela, por telefone, a irmã Janey Bringsken, continua a história:

“No começo, foi mesmo difícil. Quando viemos para o Brasil, em outubro de 1955, eu estava grávida e não sabia. Era uma menina. Nasceu em fevereiro de 1956 e, em outubro, ela faleceu. Tinha apenas 8 meses. Ali não havia médico, nem mesmo enfermeiros.”

“Foi um momento de muita tristeza. Falei para o Gustavo: ‘Aqui é lugar só para solteiros, não para uma família…’ Mas Deus é fiel e me consolou. Ele usa as lutas e dificuldades para moldar nosso caráter porque o fim é sermos parecidos com Jesus”, ensina a irmã Janey.

Janey conta que sempre tivera chamado para missão, mas não especificamente para o Brasil. Conheceu Gustavo em uma reunião de oração em sua casa, onde alguns Irmãos Livres se reuniam e passaram a conversar. Em pouco tempo, Janey estava disposta a acompanhar o pastor Gustavo, a fim de pregar com ele o evangelho a povos isolados.

Ainda jovem, recém-casada, ficava sozinha quando Gustavo viajava.

Aprendi ali, em meio àquelas dificuldades, a ir para perto do Senhor Jesus. Às vezes, o Gustavo ficava meses fora de casa. Então aprendi primeiramente a confiar em Deus. Não tínhamos telefone, nem correio, nem telegrama, e uma carta do Gustavo às vezes chegava um mês depois que ele já tinha voltado para casa. Mas, em tudo isso, eu posso testificar que quando fazemos uma pergunta a Deus, ele dá a resposta. Nos dá paz, dizendo que está tudo bem. Eu era jovem, mas experimentei a fidelidade de Deus.”

Gustavo nunca se preocupou com rol de membros”, confirma irmã Janey. “Importante mesmo são os que Jesus marca no livro da vida. Hoje, porém, há muitos líderes e pastores que foram formados por ele”, diz Janey, excluindo-se humildemente. (Todos sabem que a irmã Janey teve e tem papel fundamental na moldura do caráter de toda essa gente). “Trabalhamos com as mulheres aqui. Meu esposo viaja muito para a ‘fronteira’, eu não vou. Tem bastante serviço aqui.”

Dos oito filhos do casal (e mais 3 adotados, incluindo um índio nambiquara), dois faleceram. As tribulações, dificuldades e doenças, como inúmeras malárias, foram freqüentes, no entanto eles dizem que, se pudessem voltar no tempo, aos seus vinte anos, fariam tudo de novo. “É claro que faria muitas coisas de forma diferente, mas eu viria para o Brasil de novo”, garante irmã Janey. “Porque no Brasil Deus tem moldado o nosso caráter, tem nos levado à intimidade com ele, tem nos levado a conhecê-lo melhor – o objetivo principal do cristão – e tem transformado toda dificuldade em bênção”, resume a irmã Janey.

É isso: o pastor Gustavo e a irmã Janey têm inúmeras realizações, mas preferem não enumerá-las. Preferem, isso sim, ganhar almas para Cristo e levá-las à intimidade com Deus.

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Algumas curiosidades e realizações do ministério do pastor Gustavo

• O Irmão André, o ‘Contrabandista de Deus’, doou seu famoso Fusca ao pastor Gustavo, na Holanda. Nele, o pastor Gustavo rodou pela Holanda por um ano e meio, mobilizando igrejas para ofertarem em favor da compra de seu avião.

• Quando o pastor Gustavo e a irmã Janey chegaram à Vila Bela foram apelidados logo de demônios dos olhos azuis, porque eram louros e traziam doutrina nova.

• A primeira conversão demorou a acontecer. Em Vila Bela, viviam apenas cinco brancos. O restante da população era de descendentes de escravos negros.

• Os nambiquaras têm um costume: acreditam que quando nascem gêmeos, um é do mal; outro, do bem. E como não sabem quem é do mal e quem é do bem, matam ambos. Isso acontece ainda hoje em aldeias distantes.

• A palavra nambiquara significa “povo cinza”, porque costumam dormir literalmente na cinza e amanhecem cheios de fuligem.

• O casal fundou o Colégio Evangélico, em Vila Bela, MT, com primeiro grau completo, com professores de Curitiba, Goiânia, Anápolis e Brasília, pagos pelo Estado e pela missão. Hoje a escola é administrada pelo Estado do Mato Grosso.

• O casal fundou ainda a Policlínica em Vila Bela na década de 70, que se transformou depois no Hospital Evangélico. Financiado em 75% pelo governo holandês, já atendeu mais de 10 mil pessoas. A administração do hospital deve passar para o Estado, em 2006.

Luiz Montanini faz parte do Conselho Editorial da revista Impacto. É jornalista, reside em Valinhos, SP, e é responsável pelo site cristão: www.jornalhoje.com.br

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Uma resposta

  1. Tive o privilégio, de morar em sua casa por 6 anos com minha família ,foram anos de aprendizagem sem igual! Saudade de ouvi-lo falar – suas histórias e pregações.

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