Por Renata Arruda
A vida de um missionário pode ser muito menos óbvia do que alguns costumam imaginar. E a história de João[1] vem para ensinar-nos a esse respeito. Garoto simples, da favela carioca, ele não tinha um futuro profissional brilhante, muito menos condições para chegar a outro continente. “Gente pobre é difícil fazer um bom curso”, ele me conta. Seu primeiro emprego – entregar botijão de gás de casa em casa – não requeria nada além da força viril. O que muita gente nem desconfia, porém, é o quanto esse trabalho manual e pouco almejado pode ser enriquecedor para um garoto, que, ao fazê-lo com dedicação, desenvolve, pouco a pouco, a nobreza de caráter.
Um pouco antes de completar a maioridade, João descobriu sua rara paixão. Na leitura do livro Atrevi-me a Chamar-lhe Pai (de Bilquis Sheikh, Editora Vida), sobre a história verídica de uma muçulmana que se converteu ao cristianismo – cuja recomendação trato de registrar: vale a pena ler! –, ele foi despertado pelo nome do país dela, Paquistão. Ao pegar o atlas para pesquisar sua localização, ele viu o nome do país vizinho, Afeganistão. A palavra, até então desconhecida, agora lhe saltava aos olhos. Ele queria saber tudo sobre o povo, os costumes, a alimentação. A nação sobre a qual as aulas de geografia nada lhe haviam revelado, de alguma forma, tornou-se, a partir dali, algo como “o seu país” – como se nascesse dentro de si uma dupla nacionalidade, uma atração espiritual, um sentimento de dever em relação àquela pátria.
Porém, esse senso de missões, tão aguçado, que atinge um menino adolescente não viera sem propósito. Veio do ventre, do Espírito, da profecia. “Eu sempre tive o desejo de ir para fora do Brasil, eu nasci dentro disso”, ele explica. Sua mãe ainda estava grávida quando um casal de evangelistas suecos foi até o barraco de chão batido e disse: “Esse que vem em seu ventre não é seu, é de Deus. Ele andará pelas nações falando do meu amor”.
Assim, antes mesmo de seu nascimento, já fora predestinado para ir além do Brasil. E, naquela leitura despretensiosa que fizera aos 17 anos, ele descobriu o lugar a que seu coração fora amarrado.
O meio do caminho
Antes de chegar ao fim, tem o meio. E muitos cristãos empacam nesse caminho nem sempre fácil, mas preparatório. Às vezes, tendemos a pensar que se Deus falou, as coisas devem vir rapidamente, ignorando totalmente tantos exemplos bíblicos que nos mostram o exato contrário.
No caso de João, o meio significava 22 anos. Antes de dedicar-se aos preparativos missionários, ele trabalhou como lavador de motos, vendedor e auxiliar administrativo em um dos escritórios das filiais da Shell Brasil.
Novamente com um olhar atento ao mundo, ele encontrou uma chave para chegar até seu alvo. Nos anos 1990, descobriu numa reportagem que os afegãos adoram a boa comida brasileira e, então, decidiu aplicar-se em um curso de gastronomia. A profissão, para ele, é ponto relevante para todo cristão: “Eu sempre quis usar minha profissão pro Reino”. João considera que a missão intercultural e a profissão estão interligadas: “É importante que um missionário tenha uma profissão, você precisa de um diferencial. E quatro anos de estudo não custam nada”.
João acredita que multiplicamos as oportunidades de sermos usados por Deus quando nos dedicamos aos estudos: “Deus nos usa em nosso dom natural, e, quando estudamos, podemos ser muito mais usados”. E ele enxerga isso com muita clareza em sua vida. No momento em que precisou ingressar numa organização missionária, seus cursos foram levados em conta: “Eu fui aceito nessa organização em que estou hoje porque tenho um diferencial, sou cozinheiro e fiz cursos de gastronomia em outros países”.
Aprender outra língua também foi muito importante. Em 2002, ele conseguiu fazer um curso oficial na ONG[2] e começar a estudar inglês. Nesse mesmo período, fez suas primeiras viagens missionárias, porém sem chegar ainda ao país mais aguardado. As viagens foram todas feitas a partir de projetos desenvolvidos pela ONG, percorrendo Bolívia, Paraguai e Argentina. Certa vez, enquanto se preparava para uma viagem à África do Sul, acabou indo para a Europa, o que lhe trouxe a oportunidade de conhecer os missionários que o haviam ungido no ventre materno.
Os muitos anos pareciam pouco tempo quando viu o grande dia chegar. Preparava as malas e os documentos para aquele momento, mas o coração vinha treinando há 22 anos.
A inusitada prova da nacionalidade
Foi no ano de 2007 que embarcou para o Afeganistão. Seu corpo era levado para o lugar que em pensamento já estivera muitas vezes. Enquanto o avião descia, ele avistava muitos pontos de destruição, um lugar bem diferente de tudo que havia visto ou mesmo imaginado. “É um susto, é surreal, nunca tinha visto uma paisagem daquelas, tudo destruído”.
Ao me contar sobre o país, João mistura as sensações. Descreve lindas paisagens, afirma que o cenário do filme Caçador de Pipas é verídico e alega que Cabul não tem beleza. Entretanto, garante que tem um novo pensamento sobre o país: “Hoje, eu mudei toda a minha ótica. Tem muita coisa bela, tenho fotos de lugares nunca vistos. Eu me sinto privilegiado de estar no Afeganistão”.
O curioso, porém, foi sua chegada. Na imigração, acharam que ele fosse um afegão. Sua pele morena e olhos escuros lhe dão uma “feição” muçulmana.
“Fala em dari[3], você é afegão” – eles diziam.
“Não, sou brasileiro” – ele insistia com certo medo de que fosse barrada sua entrada.
Como ele insistia que sua nacionalidade era latina, os guardas lhe propuseram um teste um tanto quanto controverso. Entregaram-lhe uma bola, pedindo que mostrasse seus dotes tipicamente “brasileiros”. Quase inacreditável, mas aconteceu!
Pegou a bola com as mãos trêmulas. Não que não gostasse de futebol, mas conhecia sua falta de talento para o esporte. Jamais esperou que tivesse de provar sua nacionalidade a partir dos dotes futebolísticos, mas soltou a bola nos pés e, qual não foi sua surpresa, conseguiu dar oito embaixadinhas. Foi aceito! Um brasileiro no Afeganistão para disseminar o amor de Deus.
Levando o amor de Deus
Embora João fale de um modo incisivo sobre Jesus – por um segundo achei que tentava também me converter –, sua tática são os relacionamentos. Segundo ele, um afegão é muito mais racional que os brasileiros, para ele, emocionais. A entrega de folhetos evangelísticos, já esgotados, mas ainda presentes no Brasil, é contraindicada: “Não vá entregar folhetos, que você será preso. Não podemos andar com Bíblias no Afeganistão. Você pode pregar pra um árabe, mas se você não tiver um relacionamento com ele, ele não o ouve”.
Seu investimento evangelístico tem sido por meio do serviço e da formação de amizades: “Com pequenas atitudes, eu consigo chegar ao coração deles”. A ONG da qual faz parte trabalha de forma mais social, atua legalmente no país como prestadora de serviços humanitários. Se a ONG for descoberta como organização cristã, é expulsa, pois cristãos são perseguidos no país.
João e outros integrantes da missão no Afeganistão cozinham para alguns irmãos que estão envolvidos na construção de escolas. Além disso, a ONG trabalha com formação de professores afegãos e ajuda para algumas pessoas que permanecerão por um curto tempo no país.
Enquanto permite envolver-se com os muçulmanos, João tem descoberto uma cultura maravilhosa: “Existem afegãos preciosos que me ensinaram muito. A cultura em si ensina muito”. Mas esta é apenas uma face da tradição afegã. Como muitos sabem, a mulher no Afeganistão é tratada como um ser inferior ao homem. João confirma a informação: “Elas são tratadas como ‘objeto de reprodução’ ”. São escondidas por trás das burcas e jamais podem olhar para um homem. Nesse ponto, João sofre um choque cultural, pois sempre sorridente, às vezes se pega no equívoco de olhar e quase sorrir para alguma muçulmana.
O cristianismo parece, então, ser uma libertação ainda mais marcante para essas mulheres. João afirma ter visto o sorriso mais lindo durante uma reunião secreta que é feita nas casas. Uma convertida sorria de uma maneira pura e espontânea como jamais poderia fazer naquele país na presença dos homens. “Ver o sorriso daquela mulher foi algo sobrenatural.”
Por outro lado, muitos muçulmanos receiam o poder da conversão: “O maior medo do afegão é que, ao receber Jesus, ele não consiga ‘disfarçar’. Ele sabe que vai ter de falar do amor de Deus, e isso coloca sua vida em risco”.
O perigo muçulmano
De volta à realidade brasileira, João chama atenção dos cristãos para um crescimento do islamismo no Brasil: “Nós somos uma nação relativamente nova e muito adaptável culturalmente. Nos adaptamos em outros lugares, o que é bom, mas também somos facilmente influenciados, o que nos torna alvos fáceis”. Segundo ele, há um forte investimento islâmico, envolvendo conferências e construção de mesquitas, para converter brasileiros.
Ele também cita a necessidade de mais oração e financiamento de missionários que se encontram nesses países de risco. “Para ir ao Afeganistão, é necessário um suporte financeiro e muita oração, pois há forte pressão psicológica e estresse. A qualquer momento, pode chegar alguém e avisar que ‘há um carro bomba rondando a cidade’, e então ficamos todos em alerta.”
Além dos possíveis atentados, João conta sobre a eletricidade escassa que é cobrada de forma absurda: “Não tem contador, e, no dia do pagamento, o homem olha para sua cara e cobra o quanto ‘julgar justo’, seja o valor que for. Se ele cobrar um preço excessivamente alto, não podemos questionar”.
“No Afeganistão, você chega com muita luta e sai em guerra”, ele conclui. Guerra que travou desde os 17 anos, e agora não pensa em desistir.
[1] Nome fictício, para preservar sua identidade
[2] Tipo de curso e nome da ONG também não revelados para preservar identidade
[3] Língua principal falada no Afeganistão
Uma resposta
tremendo também sinto muito amor por esse povo , que o senhor Jesus salve esta nacao .