Por Samuel L. Brengle (1860-1936)
Eu ouvi recentemente de um pregador que falava tanto sobre a misericórdia de Deus que “até parecia não haver nada em Deus além de misericórdia”. Eu temo que ele tenha distorcido a imagem de Deus. Tal distorção, embora bastante comum para as pessoas que não pensam profundamente e de boa aceitação para as que não querem levar a vida muito a sério, é extremamente perigosa.
Se quisermos ganhar vidas para o Reino e garantir nosso próprio relacionamento com Deus, não devemos distorcer a imagem do seu caráter. “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). Para isso, é necessário que conheçamos o verdadeiro e santo Deus como ele é, e não algum falso deus que se acomode aos nossos pobres desejos e opiniões deformadas.
Alguns mestres religiosos distorcem a imagem de Deus, fazendo dele alguém totalmente selvagem e cruel. Parecem ter um prazer macabro em descrever as mais horríveis cenas do inferno, imaginando Deus se deliciando em torturar o condenado. Isso só pode levar pessoas a ficarem amarguradas com Deus de tal forma que não possuam mais esperança alguma na misericórdia divina.
Outros distorcem a imagem de Deus, fazendo-o aparecer excessivamente indulgente, que bajula os pecadores com uma simpatia desmedida e trata as pessoas infiéis, levianas e mornas com uma pena fraca e sentimental. Nada poderia estar mais longe da verdade a respeito de Deus.
Vemos que o próprio Deus repreende duramente aqueles que, vivendo no pecado, pensavam que o Senhor não desaprovava seus caminhos. Enumerando uma lista dos pecados do homem ímpio (Sl 50.17-20), ele assim lhe afirma: “Tens feito estas coisas, e eu me calei; pensavas que eu era teu igual; mas eu te arguirei e porei tudo à tua vista. Considerai, pois, nisto, vós que vos esqueceis de Deus, para que não vos despedace, sem haver quem vos livre” (vv. 21,22).
A verdade está entre esses dois extremos que descrevemos. Há misericórdia em Deus, mas há também um componente claro de severidade. Podemos ver ira em Deus, contudo temperada com misericórdia.
Os grandes ganhadores de almas, desde os tempos da Bíblia até agora, reconheceram essa tensão. Mantiveram um equilíbrio entre a bondade e a severidade de Deus, porque as Escrituras assim o revelam. A Bíblia, dentre todos os inúmeros livros escritos, é o único que nos dá uma representação autêntica de Deus.
A natureza nos adverte
A própria natureza nos revela a bondade e a severidade de Deus. O fogo não somente assa a nossa comida e nos abençoa, como também pode nos queimar. A água não somente sacia a nossa sede e nos refresca, mas, se nos descuidarmos, poderá nos afogar. Se reconhecermos os modos de Deus trabalhar na natureza e prestarmos atenção, veremos que as leis da natureza são extremamente bondosas e úteis. Mas, se as negligenciarmos ou nos recusarmos a obedecê-las, provaremos o quanto podem ser terríveis e destrutivas.
As Escrituras nos advertem
Se quisermos conhecer a Deus em toda a riqueza do seu caráter e toda a plenitude de sua revelação, precisamos estudar a Bíblia e comparar as Escrituras com as próprias Escrituras.
A Bíblia nos fala sobre o amor inexprimível de Deus, amor este que o leva a procurar pecadores em misericórdia; ao mesmo tempo, a sua justiça requer penitência do pecador, fé, afastamento do mal e obediência à sua vontade.
Várias descrições da Bíblia nos mostram como Deus mantém um equilíbrio entre sua misericórdia e seus juízos.
“Considerai, pois, a bondade e a severidade de Deus”, escreve Paulo: “para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a bondade de Deus, se nela permaneceres; doutra sorte,” ele diz (mostrando que a bondade de Deus não anula a sua severidade), “também tu serás cortado”. Precisamos tomar cuidado!
Depois, ele acrescenta um toque de ternura, deixando claro como mesmo na sua severidade, Deus espera a fim de mostrar misericórdia: “E eles também”, ainda que tenham sido cortados, “se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; pois Deus é poderoso para os enxertar de novo” (Rm 11.22,23).
Mais uma vez Paulo escreve: “Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê… Visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé”. E então acrescenta: “A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.16-18).
Paulo vai além e escreve: “Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento? Mas, segundo a tua dureza e coração impenitente, acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo o seu procedimento: a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, procuram glória, honra e incorruptibilidade; mas ira e indignação aos facciosos, que desobedecem à verdade e obedecem à injustiça. Tribulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, ao judeu primeiro e também ao grego; glória, porém, e honra, e paz a todo aquele que pratica o bem, ao judeu primeiro e também ao grego. Porque para com Deus não há acepção de pessoas” (Rm 2.4-11).
A misericórdia salvadora de Deus revelada nas Escrituras é invariavelmente contrastada com a ira de Deus, assim como as grandes montanhas são vistas em oposição aos mares profundos.
O escritor aos Hebreus diz sobre Jesus: “Por isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles…” (Hb 7.25); enquanto Paulo escreve sobre alguns que não alcançaram graça: “A ira, porém, sobreveio contra eles, definitivamente” (1 Ts 2.16).
Há, portanto, uma salvação completa para todos aqueles que “confiam e obedecem”, e uma condenação total para todos aqueles que seguem em incredulidade egoísta, amor pelo mundo e pecado. Verdadeiramente “de Deus não se zomba” (Gl 6.7), pois é um Deus de juízo.
Jesus nos adverte
Vemos Jesus mantendo esse mesmo equilíbrio quando diz a respeito dos que ouvem e praticam sua palavra que são como aqueles que construíram sobre a rocha, contra a qual qualquer vento, inundação ou intempérie não pode prevalecer, enquanto os que o ouvem mas não lhe obedecem são como aqueles que construíram sobre a areia, e cujas casas serão varridas pela inundação e pelo vento (Mt 7.24-27). Novamente, ele diz sobre os ímpios: “E irão estes para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna” (Mt 25.46).
Jesus também fala da porta fechada no casamento, separando aqueles que estão do lado de dentro na presença do seu Deus dos outros que estão do lado de fora, rejeitados e desconhecidos; da alegria do Senhor experimentada pelos servos bons e fiéis, e da escuridão do lado de fora, à qual o ímpio e o indolente são lançados; do grande e intransponível abismo que separa aqueles que estão no lado direito, em conforto, segurança e paz, dos que estão do lado errado, no infortúnio amargo de terrível remorso e tormento.
Também vemos João sendo fiel a essa grande verdade, quando afirma: “Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus” (Jo 3.36).
Da mesma forma, em todo o Antigo Testamento esse mesmo equilíbrio é mantido. “Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas. Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor; ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, se tornarão como a lã. Se quiserdes e me ouvirdes, comereis o melhor desta terra: Mas” – aqui está a alternativa infalível – “se recusardes e fordes rebeldes, sereis devorados à espada…” (Is 1.16-20).
Essas imagens das palavras da Bíblia nos mostram que nenhuma palavra, nem mesmo a doce palavra “misericórdia”, consegue resumir o caráter rico e multiforme de Deus. A Bíblia diz: “Deus é amor…” (1 Jo 4.8), mas também diz: “Nosso Deus é um fogo consumidor” (Hb 12.29).
Aos corações penitentes que confiam em Jesus, Deus será rico em misericórdia. Ao mesmo tempo, ele defenderá a ordem moral e espiritual do seu universo por meio de penalidades drásticas contra aqueles que seguem com orgulho, leviandade ou determinação nos seus próprios caminhos.
Nossa única esperança está nas feridas de Jesus e na proteção do seu sangue. Lá, e somente lá, encontramos misericórdia, quando pecamos; misericórdia esta que é ilimitada e livre! Aleluia!
A extrema seriedade do pecado
“Os loucos zombam do pecado”, escreveu Salomão (Pv 14.9), e homens que se dizem sábios ainda levam pessoas ingênuas ao erro assim como a serpente enganou Eva, dizendo: “É certo que não morrereis” (Gn 3.4).
Porém, aqueles que entendem a imutável santidade do caráter de Deus e a sua lei tremem e temem diante dele quando pensam no pecado. Eles sabem que Deus deve ser temido; “o terror do Senhor” está diante deles.
Isso não é incoerente com o perfeito amor que elimina o medo. Pelo contrário, é inseparavelmente unido a esse amor, pois o homem que está mais plenamente cheio de amor é o que mais teme. É o temor que vem da reverência que o leva a afastar-se do pecado. Aquele que é exaltado nas maiores alturas do amor divino e da comunhão em Jesus Cristo vê mais claramente as profundezas terríveis da ira divina contra o pecado e o terrível abismo para onde os pecadores sem Cristo estão sendo arrastados.
A visão e o senso da excessiva maldade do pecado e da ira de Deus contra a impiedade não geram pânico, nem uma escravidão ao medo que faz o homem esconder-se de Deus, assim como Adão e Eva se esconderam entre as árvores do Éden. Pelo contrário, gera o temor santo de um filho que o leva a sair do esconderijo, correr para Deus e buscar abrigo nos seus braços, a fim de ser lavado no sangue do “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).