Em 1964, Jean Vanier, um canadense, fundou a primeira Comunidade da Arca, em território Francês. Espalhadas hoje por todo o mundo, estas comunidades oferecem às pessoas deficientes um lar onde podem encontrar refúgio e valorização, e fazer desabrochar nelas um espírito de entrega e amor. Foi numa dessas comunidades que Henri Nouwen dedicou vários anos de sua vida.
Por: Jean Vanier
Qualquer espiritualidade cristã tem seu fundamento em Jesus. Na Arca nós vivemos de um modo especial o mistério de Jesus fraco, que veio ao mundo em busca dos fracos.
Jesus veio, com efeito, anunciar uma boa nova aos pobres. Ele explicitou sua missão na sinagoga de Nazaré, quando aplicou a si as palavras de Isaías:
“O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-novas aos pobres, para curar os corações feridos, para proclamar a libertação dos escravos e pôr em liberdade os prisioneiros” (Is 61.1; Lc 4.18).
Quebrando as Muralhas
No tempo de Jesus havia muitos pobres, oprimidos, cegos, e rejeitados; havia também muitos leprosos que sofriam não só em razão de suas úlceras mas também do desprezo e da rejeição da sociedade. Eram “intocáveis”. Tocá-las tornava uma pessoa impura. A doença era considerada uma punição de Deus. Todas estas pessoas eram excluídas, deviam voltar-se apenas para a própria tristeza, alimentar seu sentimento de culpa e ter uma imagem partida de si mesmas. Elas não tinham nem futuro, nem esperança.
Havia também os ricos, os que detinham o poder. Eram aqueles que estavam satisfeitos consigo mesmos. Tinham vencido. Tinham privilégios e bens. Criam-se abençoados por Deus.
Havia nitidamente dois mundos separados por uma muralha: de um lado, os ricos, que desprezavam os pobres. De outro lado, os pobres, fechados em si mesmos e circunscritos à própria tristeza.
Jesus comeu com os ricos, com Simão, o fariseu, e com Zaqueu. Ele convidou-os a mudar, a não mais desprezar os pobres nem considerá-los como inferiores, mas a dividir com eles seus bens. Ele não lhes pediu, necessariamente, que vendessem suas casas, mas que abrissem seus corações aos pobres. Após seu encontro com Jesus, Zaqueu decidiu distribuir a metade de suas riquezas entre os pobres.
Jesus não veio para julgar ou condenar, mas para reunir e unificar todos os filhos de Deus que estavam dispersos. Ele veio para quebrar as muralhas que separavam os ricos dos pobres, os saudáveis dos doentes e deficientes, para que todos se reconciliassem e encontrassem seu lugar num mesmo todo.
Mudando a Ordem das Coisas
Jesus percorreu as rotas da Galiléia. O povinho, os doentes, os pobres, se emocionavam com sua bondade e compaixão. Jesus os amava. Ele curava os doentes e reanimava a todos. Ele ia até mesmo aos lugares de pecado, aproximando-se daqueles que se sentiam excluídos da religião.
Ele falava-lhes com ternura, revelando a bondade e o perdão de Deus. Ele queria mudar a ordem das coisas, não por meio da força ou de uma nova série de leis promulgadas com rigor, mas tornando-se amigo dos pobres, mostrando um caminho de humildade e de comunhão.
Jesus nada fez para tornar-se Rei e utilizar o poder para remodelar a sociedade num sentido de maior justiça, em que cada um fosse respeitado como deveria. Ele enveredou pelo caminho da humildade, seguiu uma rota descendente para ficar mais próximo dos feridos.
Jesus mostrou uma visão do mundo inteiramente nova. Deus não é apenas aquele ser todo bondade e compaixão que vela por seus pobres e convida os ricos à partilha. Mas o próprio Jesus assumiu a condição de pobre. O Verbo se fez carne, o Todo-Poderoso tornou-se uma criança indefesa que simplesmente por ser o que é faz despertar o amor. Suas palavras, sua maneira de ser, derrotaram os adversários, sobretudo os donos do poder. O homem todo compaixão transformou-se num ser que precisava de compaixão, transformou-se num pobre. Jesus inverteu a ordem vigente: não se tratava mais de “fazer o bem” aos pobres, mas de descobrir Jesus oculto no pobre, de descobrir que o pobre cura e liberta.
Estes dois mundos que existiam no tempo de Jesus continuam existindo em nossos dias, nos nossos países, nas nossas cidades, nos nossos corações. O rico é aquele que crê bastar-se a si mesmo, que não reconhece ter a necessidade de amar, não reconhece precisar do outro. Há um rico em cada um de nós. Há também os ricos de cultura e de bens espirituais, satisfeitos consigo mesmos, reclusos dentro do próprio poder, gozando de seus privilégios, de seus preconceitos. Eles possuem mais do que lhes é necessário, e procuram ter cada vez mais.
E há os pobres e os excluídos, considerados seres incapazes de se inserir na sociedade. São os mendigos, os “sem domicílio fixo”, os desempregados, todas as pessoas que sofrem de alguma enfermidade mental, de uma deficiência física ou mental. São os velhos abandonados, os instáveis, os que se fecham numa imagem partida de si mesmos. São todos os que sofrem de subnutrição e de miséria. São todos os refugiados que fogem do ódio.
A mensagem de Jesus é a mesma hoje como ontem: ele veio para reunir todos os filhos de Deus dispersos pelo mundo e comunicar-lhes vida em abundância. Por isso ele quer abolir os ódios, os preconceitos e os temores que separam as pessoas e os grupos, e criar neste mundo dividido pontos de unidade, de reconciliação e de paz, convocando os ricos à partilha e os pobres à esperança. Esta é a missão da verdadeira comunidade: destruir os muros que separam os fracos e os fortes para que, em conjunto, reconheçam suas mútuas necessidades e passem a formar uma só comunidade. Esta é a boa nova.
O Mundo de “Cima” e o Mundo de “Baixo”
Nossas sociedades ocidentais são de competição, em razão do fato de serem sociedades de consumo que incitam ao individualismo. Desde a escola, é preciso ser o primeiro. É preciso ganhar para ser admirado. É preciso vencer na vida para obter um emprego que renderá poder, riquezas e privilégios.
A competição tem um lado positivo. Desenvolve ao máximo as energias e as capacidades. Incita a pessoa a dar o melhor de si. Sem a competição e sem o desejo de ser reconhecido e admirado, a humanidade não teria progredido tanto, e em tantos campos. A busca do excelente conduz ao excelente.
Mas tem também um lado negativo. Para um que ganha, quantos há que perdem, que se desencorajam e desistem de levar adiante o aperfeiçoamento de seus dons? Incapazes de subir, eles caem ainda mais, e chegam a perder a confiança em si mesmos. Os que subiram na escala das promoções sociais tendem, em geral, a desprezar os que não tiveram êxito. São os “pobres infelizes”.
Eu também fazia parte deste mundo de competição. Eu me sentia atraído pelas “alturas”. Não conseguia discernir o valor dos que estavam “embaixo”, ainda que ajudasse em algumas ocasiões pessoas que estavam em grande apuro. Eu tudo fazia, porém, para atraí-las também ao alto, para a conquista de bens materiais e de sucesso.
Em 1963, descobri o mundo de “baixo”. Visitando instituições, asilos, e hospitais psiquiátricos, descobri o mundo das pessoas que sofriam de deficiências ou doenças mentais, um mundo de desolação e loucura. Estas pessoas ficavam escondidas, postas de lado, afastadas da sociedade, para que ninguém as visse. Em muitas instituições, havia excelentes condições de higiene e um bom corpo de assistentes, porém como não tinham tempo para se dedicar a todos os pacientes, estes eram na maior parte abandonados a si mesmos.
Mesmo naquelas instituições que cuidavam muito bem dos deficientes, tratando-os com respeito e afeto, as pessoas não acreditavam que seus pacientes tivessem a capacidade de adquirir uma maior autonomia, e muito menos que pudessem transmitir algo de positivo para os outros.
Foi então que encontrei Raphael e Philippe num asilo nas cercanias de Paris. Raphael tivera meningite na infância, o que o privara do uso da palavra. Faltava equilíbrio a seu corpo, e padecia também de um desequilíbrio mental. Mais ou menos a mesma coisa se dava com Philippe. Ambos foram colocados no asilo quando seus pais faleceram. Estavam bem trancados, atrás de sólidas e grossas paredes. Comprei uma pequena e mal conservada casa no norte da França, e convidei estas duas pessoas a vir viver comigo. Foi assim que a aventura da Arca começou.
Vivendo no Mundo de “Baixo”
A primeira coisa que descobri vivendo com eles foi a profundidade do sofrimento que traziam, marcado pelo sentimento de terem sido uma decepção para seus pais e seus próximos. Pode-se compreender a reação dos pais. Quem não ficaria machucado e triste por saber que seu filho nunca mais falaria, andaria ou viveria plenamente! Ter um filho portador de alguma deficiência é um sofrimento enorme. Mas ter uma deficiência é um sofrimento maior ainda!
Raphael e Philippe tinham um coração incrivelmente sensível. Tinham sido vítimas de rejeição, de mil faltas de consideração por parte de todos que os cercavam. A partir daí a reação deles era dupla: ora entravam em acessos de cólera, ora escapavam para o mundo dos sonhos.
Era óbvio que precisavam de amizade e de confiança, precisavam exprimir suas necessidades e serem ouvidos. Na verdade, tinham exatamente as mesmas necessidades que eu: precisavam amar e ser amados, escolher rumos, desenvolver suas capacidades.
À medida que a amizade entre nós foi aumentando, fui tomando consciência da crueldade de nossas sociedades que favorecem os fortes e desprezam os fracos. Esta rejeição está inserida na cultura, nas instituições, até mesmo na Igreja, que geralmente também não sabe reconhecer o valor destas pessoas. Não há dúvida de que a Igreja e a sociedade manifestam muitas vezes a idéia de que é preciso “fazer algo” por elas e por seus pais desamparados. Mas raramente percebem que as pessoas fracas também têm uma contribuição a lhes dar.
Com o tempo, através deste tipo de convivência de comunidade, comecei a captar o sentido da Boa Nova de Jesus, e de como esta entra em choque com a nossa cultura. Jesus aconselhava seus discípulos a não convidar amigos, parentes ou vizinhos ricos para um jantar, mas a fazer banquetes para os pobres, aleijados, os mancos e os cegos (Lc 14.12-14). Comer à mesma mesa significa tornar-se amigo, viver em aliança, formar junto com eles uma mesma família. São os antípodas de uma sociedade em competição, de uma sociedade hierarquizada que rejeita os fracos.
Estas pessoas não são doentes, deficientes, ou pobres que precisam de tratamento, instituição ou auxílio apenas; precisam de um meio adaptado a elas, que as encoraje a viver, a se desenvolver o mais possível, e a encontrar um sentido para suas vidas. Descobri como nossas sociedades competitivas, materialistas e individualistas são desumanizantes, e quanto a mensagem de Jesus é profundamente humana.
Antes desta experiência, na minha vida profissional na Marinha, sempre fui um homem eficaz e rápido, acostumado a tomar sozinho minhas decisões. Eu era um homem de ação antes de me tornar um homem de escuta. Tive muitos colegas, mas não tive verdadeiramente amigos. Eu tinha ainda muitas barreiras cercando meu coração, para proteger minha vulnerabilidade.
Agora tudo era diferente. Não se tratava mais de subir em grau, tornando-me cada vez mais eficaz e respeitado, mas de descer, de “perder” meu tempo numa relação com pessoas portadoras de deficiência, para forjar com elas uma comunidade, um lugar de comunhão e de aliança.
Viver junto com Raphael e Philippe incluía, sem dúvida, fazer muitas coisas por eles que eram incapazes de fazer sozinhos. Mais do que isto, era preciso ajudá-los a crescer rumo a uma maior autonomia, a fazer escolhas e a tornar-se, tanto quanto possível, responsáveis por suas próprias vidas. Mas a necessidade maior era de sair do seu isolamento, ingressar numa comunidade de amigos, viver esta comunhão de corações.
Precisavam ter alguém que os valorizasse e que os ajudasse a ter confiança em si. E amá-los significava também deixar que eles experimentassem a minha pobreza, e dar-lhes espaço para me amarem. Como haviam vivido tanto tempo sem amigos, desprezados, tinham formado uma imagem negativa de si mesmos. Estavam convencidos de que “não serviam para nada”, de que tinham causado muitas amarguras a pais, familiares e amigos. Era preciso que eu lutasse contra esta imagem, fazendo com que sentissem a minha alegria de estar com eles, minha alegria pelo simples fato de que eles existiam.
Aprendendo Com os Fracos
Desta forma, tocando de perto na fragilidade e no sofrimento das pessoas deficientes, recebendo delas uma resposta de confiança, senti surgir em mim novas fontes de ternura. Elas despertaram uma parte de meu ser que até então tinha ficado subdesenvolvida, atrofiada. Elas me abriram os olhos para um outro mundo. Não o mundo da força e do sucesso, do poder e da eficácia, mas o mundo do coração, da vulnerabilidade e da comunhão. Era algo novo para mim. Elas me conduziram para um lugar onde encontrei a cura e a paz interior.
Tornar-se amigo de um pobre não é algo fácil. Ele nos amarra na realidade do sofrimento. É impossível fugir para outras idéias ou sonhos! O apelo do pobre à amizade e à solidariedade nos obriga a fazer escolhas, a colocar o amor no centro de nossas vidas, e isto no dia-a-dia. Ele nos transforma.
As pessoas pobres, deficientes ou rejeitadas exercem uma outra espécie de influência sobre nós. Não estão paralisadas pela cultura ambiente ou pelos hábitos sociais. Acolhem com alegria os visitantes, sem estabelecer qualquer diferença entre eles e os grandes do mundo. Não consideram a função ou o cargo, mas olham o coração. Não usam máscaras: a alegria ou a cólera explodem no seu rosto. Vivem o momento presente e não se fecham na nostalgia do passado ou nos sonhos do futuro. Por isso mesmo, elas parecem possuir uma grande capacidade de perdoar, de suplantar as feridas de um conflito. Todas estas qualidades fazem homens e mulheres propensos à amizade, à acolhida, à celebração. Elas se integram e se unem com muito mais facilidade do que muitas outras pessoas dotadas de mãos perfeitas e inteligência, mas deficientes e atrofiadas no plano do amor. Elas nos mostram o caminho do amor.
O Mistério da Fé
Jesus nos diz que aquele que acolhe uma criança em seu nome, acolhe a ele, e quem o acolhe, acolhe o Pai (Lc 9.48). A criança simboliza todos aqueles que não podem orientar-se sozinhos, que precisam de uma presença e de uma ajuda quase constantes. Jesus se identificou com o marginal, com o que tem fome e sede, com o que está nu, doente ou encarcerado, com o estrangeiro, quando disse: “…todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos, mesmo dos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25.40). Estas palavras contêm um verdadeiro mistério da fé. Como é que Raphael, ou outro pobre ou deficiente qualquer, na sua pobreza, pode tornar Jesus presente, o Verbo de Deus? Será possível que, ao tocá-lo, tocamos o próprio Deus?
Esta identificação de Jesus no pobre é um dos maiores mistérios, e dos mais incompreensíveis do Evangelho. Como é possível que o Deus da grandeza, da beleza, do poder, possa tornar-se o menor, o mais sofrido, o mais débil? Mas a lógica do amor não é a mesma lógica da razão e do poder. Amar significa colocar-se ao alcance do outro, utilizar sua linguagem. Quando amamos uma criança, falamos com ela à maneira dela, brincamos com ela do seu jeito. É assim que Deus faz conosco, tornando-se pequeno para que nós não tenhamos medo dele e para que ele possa entrar numa comunhão de amor conosco.
O Verbo se fez carne para revelar-nos o que há de mais precioso em nós: nosso coração vulnerável, nossa sede de ser amados e nossa capacidade de amar, de ser misericordiosos, de dar vida. O mais importante não é o conhecimento ou o poder, mas o amor que permite colocar estes conhecimentos e este poder a serviço da vida, num relacionamento de fidelidade. É por isto que Jesus se identifica com os fracos que proclamam sua necessidade de amor e apelam para a comunhão.
O mistério de nosso Deus é que ele é um Deus escondido. Ele não é um Deus que faz a lei, que manda e exige, e muito menos um pedagogo que ensina o caminho da salvação. Ele é coração; um coração à procura do nosso para comunicar-lhe a alegria e o êxtase da comunhão que une as pessoas da Santíssima Trindade.
Identificando-se com os pobres, Jesus quis lembrar que ele se identifica com o que é pequeno em cada um de nós. O importante é adquirir confiança, abertura, capacidade de admirar, qualidades estas próprias da infância. Cada pessoa é importante, seja qual for sua deficiência, fragilidade, cultura ou religião. Ela foi criada à imagem de Deus. Ela tem um coração capaz de amar e de ser amado.
Viver com o pobre nos obriga a abandonar nossas teorias, nossos sonhos, nossos belos pensamentos sobre Deus, para viver a realidade — uma realidade às vezes muito dura e sufocante. É nesta realidade que nós descobrimos o Deus que se chama Emanuel, “Deus conosco”. Ele está presente no âmago de nossa humanidade, no coração de nosso sofrimento.
Extraído e adaptado do livro: “A Espiritualidade da Arca” de Jean Vanier.
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