Por: Christopher Walker
Como todo assunto complexo, o perdão envolve muitas facetas e muitos tipos diferentes de situação. Não podemos simplificar o perdão como se fosse sempre o mesmo desafio e pudesse produzir sempre o mesmo resultado.
Em algumas situações, o perdão pode envolver somente a pessoa ferida. Talvez o ofensor tenha falecido ou não seja mais possível estabelecer contato com ele ou com ela. Talvez o ofensor não queira ser perdoado, não aceite a culpa ou nem saiba como ofendeu. Talvez não tenha temor de Deus e não sinta qualquer arrependimento. Nesses casos, o objetivo de perdoar é libertar o ofendido de amargura e de correntes negativas ao passado.
No entanto, as ordens bíblicas para perdoar não parecem ter esse cenário em mente, pelo menos como o principal. As expressões “perdoar cada um a seu irmão” (Mt 18.35) e “perdoando-vos uns aos outros” (Ef 4.32; Cl 3.13) indicam o tipo de perdão que deve ser praticado entre pessoas próximas e que envolve reciprocidade e reconciliação. Nesses casos, o objetivo é restaurar um relacionamento ameaçado ou quebrado.
Muitos testemunhos de perdão relatam casos que desafiam nossa fé: como alguém poderia perdoar a uma pessoa que assassinou ou torturou um membro da sua família? Ou que estuprou sua filha ou irmã? Ou que traiu sua aliança de casamento ou relação de amizade? Mesmo que Deus conceda graça para perdoar, é muito difícil (mas não impossível) esse perdão resultar num novo relacionamento de intimidade e confiança entre ofensor e ofendido.
O que dizer, porém, de pecados e falhas que cristãos cometem dentro da igreja? Às vezes, parece que temos mais disposição para perdoar a um pecador declarado do que a um irmão que cai no erro, principalmente se for reincidente. Foi por isso que Pedro perguntou para Jesus até quantas vezes devia perdoar ao irmão; a resposta (não sete vezes, mas setenta vezes sete) deixou-o boquiaberto (Mt 18.21,22). Aqui o contexto indica uma situação de rixa ou ofensa de caráter mais pessoal entre membros da família da fé. Há outras ofensas ou pecados que afetam o testemunho da igreja, o corpo como um todo e o compromisso da pessoa diante do Senhor.
Nesse último caso, existe, realmente, uma grande diferença entre perdoar a um pecador arrependido, com toda sua carga de culpa e vida torta, e a um discípulo de Jesus que comete uma ofensa séria ou que insiste em continuar no erro. É diferente porque envolve a questão da disciplina, o que obviamente não podemos tratar aqui, por falta de espaço. Queremos ressaltar somente os extremos e a importância do perdão em todo o processo.
Uma Visão Bíblica
Quais são as alternativas diante de situações sérias, quando um cristão em comunhão com a igreja – ou até um líder da igreja – tropeça seriamente na sua vida e comete pecados que se tornam graves e, para piorar, públicos? Quantos exemplos você conhece, contemporâneos ou não, de pessoas que foram tratadas positivamente e restauradas completamente?
Quando acontecem escândalos na vida de políticos, normalmente pensamos: “Agora acabou para ele – nunca mais conseguirá livrar-se do estigma”. E quando alguns conseguem dar a volta por cima e se reelegem, comenta-se: “Que memória curta o povo tem!” Nesses casos, provavelmente, o julgamento é procedente: os políticos em questão dificilmente estão arrependidos ou mudarão seu procedimento. Contudo, na igreja deveria ser diferente. Ou, quando peca, uma pessoa está condenada a carregar seu estigma para sempre? O que significa perdão do ponto de vista de Deus?
Na prática, a igreja sempre tem oscilado entre os dois extremos: por um lado, tentar manter o padrão de pureza e santidade, resultando geralmente na exclusão e rejeição da pessoa que pecou; ou, por outro lado, cobrir a pessoa com perdão, esquecer o que aconteceu e prosseguir sem realmente resolver a falha na vida da pessoa.
Para tentar obter uma visão mais bíblica da questão, vamos destacar alguns pontos:
1. Perdão não é necessariamente restauração. Há um exemplo muito forte no Velho Testamento, em Números 14. Depois de sucessivas murmurações e rebeldias no deserto, o povo de Israel conseguiu ir além do limite da longanimidade de Deus, no episódio dos espias que voltaram descrevendo os gigantes na terra prometida. Deus ficou muito irado e, pela segunda vez no deserto, falou com Moisés que queria destruir a nação e começar tudo de novo. Depois, porém, ele aceitou a intercessão de Moisés e perdoou ao povo (v. 20), mas não o restaurou aos seus propósitos (v. 21-23). Somente uma nova geração entraria na terra.
2. Perdão não significa isenção de disciplina. Quando pensamos em servos de Deus que cometeram pecados sérios, o exemplo de Davi vem logo à mente. Não poderia existir um exemplo mais impressionante do poder de Deus para transformar os erros do homem em vantagem para o seu plano do que o caso de Davi e Bate-Seba. Chega a ser chocante, absurdo, uma ofensa ao nosso senso de justiça pensar que Deus escolheu o filho dessa união, que começou em pecado, para traçar a linha genealógica do Messias. Mas Deus concedeu perdão a Davi (2 Sm 12.13) e as Escrituras mantêm o testemunho de que era um “homem segundo o seu coração” (At 13.22). Nem todos, porém, vão mais a fundo na história para verificar o que Davi recebeu de Deus, como disciplina pelo seu pecado. As Escrituras dedicam nada menos que oito capítulos em 2 Samuel (13-20) para relatar em detalhes as medidas disciplinares que Deus usou na vida de Davi para purificá-lo e prepará-lo para a obra final de sua vida (fazer todos os preparativos para a casa de Deus que seu filho edificaria – 1 Crônicas 22-29).
3. O objetivo do perdão é restauração, mas isso só pode ser alcançado através da disciplina. No texto clássico sobre disciplina na igreja, em Mateus 18, Jesus deixa muito claro que o objetivo não é purificar a igreja através de eliminar os pecadores, mas através de “ganhar o irmão” (Mt 18.15). O exemplo mais forte de disciplina no Novo Testamento, que foi praticado na igreja de Corinto por orientação do apóstolo Paulo e que incluiu entregar a Satanás a pessoa que pecou “para destruição da carne” (1 Co 5.5), resultou em arrependimento e restauração (2 Co 2.6-8). Sem disciplina, não teria havido possibilidade de restauração. Infelizmente, nem todos serão restaurados; depende da reação a uma disciplina feita com amor de acordo com a Palavra de Deus. Davi não teria cumprido integralmente sua missão se tivesse reagido com arrogância ou falta de quebrantamento à disciplina de Deus (veja sua atitude de quebrantamento em 2 Sm 15.25,26).
4. O objetivo da disciplina é restauração, mas isso só pode ser alcançado através de amor e compaixão. No caso já citado de disciplina em Corinto, Paulo exortou a igreja a não exagerar na dose de zelo e ira contra o pecado. “Basta-lhe a punição”, ele escreveu, “de modo que deveis perdoar-lhe e confortá-lo, para que não seja o mesmo consumido por excessiva tristeza. Pelo que vos rogo que confirmeis para com ele o vosso amor” (2 Co 2.6-8).
Restauração de Líderes
Quando a pessoa que cai em pecado é um líder, a situação fica bem mais complexa, já que a responsabilidade e as exigências que pesam sobre ele são bem maiores. Como já mencionamos, são muito raros os exemplos em que um líder cristão que se envolveu em uma falha moral tenha passado satisfatoriamente por um processo de arrependimento, disciplina e restauração, voltando a ter uma atuação no ministério, com unção e aprovação de Deus como antes.
Pela própria complexidade da situação, exige-se maior cuidado e uma dose extra de sabedoria, amor e compaixão – mas é possível! O próprio exemplo do rei Davi na Bíblia mostra isso, se o compararmos ao de vários outros líderes que não terminaram suas carreiras em vitória (como nos casos de Gideão, Sansão, Salomão e Ezequias, entre outros). Não é uma questão de salvação, porque Deus perdoa quando há arrependimento, mas de cumprir integralmente a missão que recebeu. Estamos agora em outros tempos, os recursos no Corpo de Cristo são muito maiores, e a vontade de Deus é que haja cura e restauração para aqueles que tropeçarem, mesmo que sejam líderes.
Se você quiser conhecer um relato bem detalhado sobre como uma igreja teve sucesso em tratar um caso de pecado na liderança, leia Além do Perdão, de Don Baker (Editora Betânia, 1986). O autor era pastor de uma igreja nos Estados Unidos quando recebeu uma notícia chocante sobre um membro respeitado de sua equipe pastoral. Um homem que estava há dois anos na equipe, com vinte e cinco anos de ministério e vinte e oito anos de casamento, estava envolvido no pecado de adultério – e não pela primeira vez!
A forma como Baker e sua equipe lidaram com a situação, desde a primeira conversa em particular com o Greg (nome fictício usado no livro), depois junto com sua esposa, passando por uma confissão pública na igreja (porque os fatos já se haviam tornado públicos) e um período de acompanhamento e aconselhamento sem ministério, até chegar à plena restauração um pouco mais de dois anos depois – oferece um modelo para todos que estiverem enfrentando algo semelhante.
Há muitos detalhes importantes na história que só poderão ser compreendidos através de uma leitura minuciosa do livro, que fornece ampla fundamentação bíblica para cada passo que foi tomado. Entretanto, alguns aspectos podem ser ressaltados aqui:
— Normalmente, numa situação como essa, é mais fácil para a igreja e para a pessoa envolvida se ela for embora para um outro local onde ninguém conhece seu passado. Não foi o que fizeram. Greg ficou na igreja e submeteu-se ao processo de acompanhamento amoroso mas firme que a liderança conduziu. Participou de um grupo de apoio, com cinco irmãos, e de outras atividades indicadas pela igreja. Não foi fácil; muitas vezes, Greg foi tentado a abandonar tudo e ir embora, ou voltar ao ministério por conta própria. O fato de ter perseverado, aceitando os tratamentos de Deus, foi o que o ajudou a corrigir as áreas quebradas em sua vida e a ser digno de confiança outra vez na obra de Deus. É exatamente neste ponto que muitos líderes não se quebrantam e não voltam a uma posição de favor na obra de Deus.
— Outro ponto fundamental, evidentemente, foi o perdão que recebeu da esposa. Apesar de todos os sentimentos, emoções, tristezas e lutas que experimentou, ela tinha certeza de que era a vontade de Deus que ela perdoasse o marido e se doasse para que ele fosse restaurado. Sem seu apoio, compreensão e firmeza, principalmente em momentos em que Greg achava impossível suportar o processo, ele jamais teria alcançado a restauração.
— O equilíbrio apropriado entre o padrão de santidade (com a firmeza para exigi-lo) e a atitude de perdão e aceitação durante o processo de tratamento e cura. Disciplinar no sentido de repreender e tirar da posição de liderança é relativamente fácil. Difícil é tomar o tempo e envolver-se o suficiente para ajudar a pessoa no caminho de volta.
Numa entrevista à revista Christianity Today, pediram a Don Baker para identificar o erro mais comum que as igrejas cometem quando aplicam disciplina. “Tratamos o problema do pecado com atitude mais condenatória”, ele respondeu. “Antes, eu dizia: ‘Se você não parar com o que está fazendo, teremos que tomar esta ou aquela medida contra você’. Entretanto, nossa primeira resposta deveria ser a compaixão, porque nove de cada dez pecadores na igreja estão sofrendo muito mais do que podemos imaginar.”
Assim como temos uma missão como embaixadores de Deus para trazer reconciliação aos pecadores que ainda não conhecem a graça de Deus (2 Co 5. 18-20), precisamos assumir nossa missão igualmente importante de reconduzir à graça aqueles do nosso meio que se afastaram dela. A chave em ambos os casos é entender que somos “o principal dos pecadores”, que somos tão capazes de pecar ou de cair quanto o pior ofensor e que a graça a nós estendida deve ser oferecida aos outros da mesma forma que a recebemos.
“Sede uns para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos outros, como também Deus em Cristo vos perdoou” (Ef 4.32).