21 de novembro de 2024

Ler é sagrado!

Perdão Total na Vida de José

Por: R. T. Kendall

Mesmo depois de entendermos que o perdão é essencial na vida do cristão, muitas vezes surge a pergunta: “Como posso saber se realmente perdoei completamente?”
Há várias evidências importantes que caracterizam o perdão total. Porém, nada como ver o perdão exemplificado na vida de alguém para se obter um quadro vivo e aplicá-lo à nossa vida. E nenhum dos personagens bíblicos, com exceção de Jesus Cristo, ilustra melhor o que é perdão do que José no livro de Gênesis.

Injustiças Sofridas por José

Vamos recordar as principais injustiças praticadas contra José, para entender melhor o que ele perdoou.

Em primeiro lugar, por pouco não foi morto pelos irmãos. No fim, resolveram lançá-lo numa cova e, depois, vendê-lo como escravo (Gn 37.18-24). É verdade que José tivera atitudes prepotentes, por saber que era o filho preferido do pai e por ter recebido sonhos indicando que estaria acima dos irmãos. Mas nada justificava a atitude destes em querer matá-lo ou vendê-lo como escravo para os ismaelitas.

Em segundo lugar, ele foi injustiçado pela esposa de Potifar, que o comprara dos ismaelitas. Ao invés de ser premiado por sua fidelidade em resistir à sedução daquela mulher, ele foi lançado na prisão.

Em terceiro lugar, ele foi esquecido pelo copeiro de Faraó. José havia interpretado corretamente o sonho desse homem, que se cumpriu quando foi restaurado à sua função no palácio. Antes da sua libertação, José pediu-lhe que intercedesse em seu favor diante de Faraó.

José tinha muitas razões para se amargurar, até contra Deus, que permitiu que tudo isso acontecesse na sua vida. Dá até para discernir uma nota de autopiedade na sua afirmação ao copeiro na prisão: “E, aqui, nada fiz, para que me pusessem nesta masmorra” (Gn 40.15).

Perdão Exemplificado na Vida de José

Não sabemos muito sobre o que se passou no coração de José durante todo esse processo. O que as Escrituras mostram é que José realmente perdoou a seus irmãos e não guardou mágoa contra Deus.

Veja os pontos principais que despontam no final da sua história e as lições que podemos aprender sobre as características que identificam perdão total.

1. José manteve em segredo o mal que seus irmãos lhe fizeram. Quando José revelou sua identidade aos irmãos no Egito, em Gênesis 45, ele pediu que todos os outros se retirassem de sua presença. Ele não queria que ninguém no Egito soubesse o que havia acontecido 22 anos antes, para que ninguém ficasse contra seus irmãos. Uma das maiores provas de que houve perdão é quando não queremos espalhar aos outros o que o ofensor nos fez. É assim que nós também fomos perdoados: Deus afastou nossos pecados de nós assim como o Oriente é distante do Ocidente (Sl 103.12). Todos nós temos esqueletos escondidos em nossos armários, conhecidos geralmente somente por nós mesmos. É confortante saber que Deus perdoa totalmente todos os nossos pecados e jamais revelará aos outros o que sabe a nosso respeito. Foi assim que José perdoou aos seus irmãos.

2. José não queria que os seus irmãos se sentissem intimidados ou temerosos perto dele. Ele se revelou aos seus irmãos com lágrimas e compaixão, não como alguém que quisesse castigá-los ou deixá-los desconfortáveis. Quando ainda não perdoamos totalmente, sentimos prazer em perceber que o ofensor sente medo ou intimidação por nossa causa. Isso prova que ainda há amargura em nosso coração. “O perfeito amor expulsa o medo, porque o medo supõe castigo”, escreveu o apóstolo João (1 Jo 4.18, NVI). José percebeu que seus irmãos estavam “atemorizados perante ele” (Gn 45.3); por isso, chamou-os para perto, conversou com eles e os abraçou. Não há, em todas as suas palavras, nenhum sinal de mágoa, de superioridade, ou de que irá finalmente, após tantos anos, olhar nos olhos deles e recriminá-los pelo que fizeram. Pelo contrário, há uma sincera demonstração de querer deixá-los livres de qualquer sentimento de barreira ou afastamento.

3. José não queria que seus irmãos continuassem se sentindo culpados. “Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos irriteis contra vós mesmos por me haverdes vendido para aqui…” (Gn 45.5). Quem não perdoa totalmente quer exatamente o contrário: que a pessoa fique muito triste, que demonstre arrependimento, que sinta o quanto prejudicou o ofendido. Muitas vezes, podemos até dizer que perdoamos, mas fazemos tudo para deixar o ofensor se sentindo extremamente culpado. José quis liberar seus irmãos dessa sensação de culpa, embora em momento algum negou o ato terrível que haviam praticado contra ele. Pelo contrário, mostrou que Deus estava acima da intenção deles e que o enviara ao Egito com uma missão de salvar vidas (vv. 5-8). Foi exatamente assim que Jesus perdoou a seus discípulos depois da ressurreição. Não disse uma palavra sobre a covardia deles, quando fugiram na hora em que mais precisava do seu apoio, ou sobre o que Pedro fizera para negá-lo. Simplesmente apareceu onde estavam trancados e lhes disse: “Paz seja convosco” (Jo 21.19).

4. José até argumentou que fora Deus quem o enviara para o Egito. Com isso, estava preservando a dignidade de seus irmãos, evitando qualquer referência à sua própria justiça ou ao erro deles (Gn 45.5-8). “Deus me enviou aqui na frente porque sabia da fome que viria e quis preparar um meio para preservar nossa família e muitas outras vidas”, ele lhes disse. Não há como superar um perdão como esse. Quando perdoarmos dessa maneira, é porque chegamos lá – experimentamos o perdão total! É aqui que tocamos numa das questões mais difíceis para nossa mente humana compreender ou aceitar: como Deus pode fazer com que um ato criminoso, um terrível pecado contribua para seu plano? Do jeito que José colocou para seus irmãos, parecia até que não haviam feito nada de errado. Outro grande exemplo disso é o fato de Bate-Seba figurar entre os ascendentes de Jesus na genealogia em Mateus 1. Será que foi pela vontade de Deus que Davi tomou a mulher de Urias ou que os irmãos de José o venderam como escravo? Claro que não! O fato de Deus ser capaz de transformar os piores erros humanos em eventos que cooperam para o bem do seu plano não significa que Deus planejou que fosse assim ou que o ato não tenha sido condenável. Pelo contrário, é uma glória maior para Deus conseguir tirar o bem de tais situações e perdoar aquele que praticou o mal. Os irmãos de José ficaram atônitos – tanto assim que anos depois ainda não haviam-se convencido de que seu perdão fosse para valer.

5. José ajudou seus irmãos a evitar seu maior temor: ter de contar toda a verdade para o pai. Outra vez, se não houvesse perdão, José teria até prazer em imaginar a consternação com que seus irmãos teriam de encarar o pai e contar o que realmente acontecera há tantos anos e como o haviam enganado e feito sofrer por tanto tempo. José, porém, não somente os liberou do sentimento de culpa em relação a si próprio, como também lhes deu instruções precisas sobre como falariam com o pai. Não precisavam tocar em nada do passado, nem revelar o que haviam feito. Só precisariam dizer que o filho José estava vivo, que era governador no Egito e que estava convidando toda a família para ser sustentada por ele lá. Jacó continuaria pensando que seus outros filhos nada tinham a ver com o sumiço de José. E assim ficou até a sua morte. Muitos cristãos zelosos e legalistas com certeza diriam que os filhos de Jacó não poderiam ser perdoados sem confessar tudo ao pai. Embora a confissão de pecados seja bíblica e necessária, muitas vezes aquilo que já foi tratado por Deus no passado não precisa ser remexido. Ainda temos muito a aprender sobre a natureza de Deus e o perdão.

6. José manteve sua atitude de perdão até o final de sua vida. Perdão total é um compromisso para toda a vida. Quantas vezes, ficamos decepcionados quando alguém que nos havia “perdoado” levanta a questão novamente, mostrando que ainda não a esqueceu nem a conseguiu superar. A impressão é que a pessoa não foi sincera quando disse que perdoou, mas isso nem sempre é verdade. Dependendo da profundidade da ferida, pode ser necessário voltar muitas vezes ao mesmo ponto e perdoar novamente. Perdão total é um compromisso que precisa ser renovado continuamente, assim como nossas alianças com Deus e uns com os outros. Dezessete anos depois da reunião de José com seus irmãos, Jacó faleceu. Imediatamente, os irmãos se encheram novamente de temor, achando que agora José finalmente aproveitaria para se vingar deles. Será que agora lhes retribuiria “todo o mal que lhe fizemos” (Gn 50.15). Até inventaram uma história para dizer que o pai deixara instruções para que José lhes perdoasse. José, ouvindo isso, chorou. Seus irmãos ainda não haviam acreditado no seu perdão. “Não temais”, ele lhes respondeu. “Acaso estou eu em lugar de Deus?” Isso nos ensina que reter o perdão de alguém é colocar-se no lugar de Deus. Não temos direito de fazer isso. Quem vai julgar é Deus. Nosso papel é perdoar. José voltou a afirmar a mesma coisa que lhes dissera tantos anos atrás: que Deus pegou o ato pecaminoso (“vós, na verdade, intentastes o mal contra mim”) e o transformou em bem, para conservação de vida. Portanto, nada mudara em seu perdão incondicional; ele continuaria sustentando a seus irmãos e a suas famílias. Quem já enfrentou situações injustas sabe que não é suficiente perdoar uma vez; é preciso perdoar, perdoar e perdoar novamente, tantas vezes quantas a tentação de se amargurar surgir em nossos corações.

Extraído e adaptado do livro “Total Forgiveness” (Perdão Total), R. T. Kendall, Charisma House, 2002. Autor de mais de trinta livros, Kendall foi pastor de Westminster Chapel (igreja pastoreada antes dele por G. Campbell Morgan e Martyn Lloyd Jones), em Londres, durante 25 anos, de 1977 a 2002.

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