Por: Mateus Ferraz de Campos
Recentemente, tenho pensado muito sobre a maneira como a Palavra de Deus tem sido exposta, domingo após domingo, em nossas igrejas evangélicas. A própria Palavra nos garante que não se trata de um livro comum com ensinamentos filosóficos ou instruções de auto-ajuda que pode nos fazer encontrar a melhor maneira de desfrutar da felicidade nesse mundo; pelo contrário, é “poder de Deus para todo aquele que crê” (Rm 1.16).
No entanto isso suscita uma pergunta bastante (im)pertinente. Se a Palavra é poder, por que então todas as semanas as pessoas são expostas à Palavra sem experimentar do poder? Por que nossas experiências com a Palavra de Deus levam as pessoas mais a uma apropriação intelectual de conceitos filosóficos do que à transformação real de vida?
Qualquer ministro sério da Palavra de Deus passa por essa crise de ofício, perguntando-se se a ineficácia de suas pregações se deve à sua falha como comunicador ou se existe algo por trás da letargia em que se encontra o povo de Deus. Alguns se acomodam com os tapinhas nos ombros e os elogios à sua eloqüência, mas, no fundo, se perguntam se aquilo que foi dito durante cerca de cinqüenta minutos no domingo terá algum impacto além das quatro paredes do templo durante a semana.
O “Deus-conceito”
O evangelho de João começa com uma exposição teológica do surgimento do Messias. Diferentemente dos evangelhos sinóticos, João vai a fundo na cultura e interpreta o impacto da vinda de Jesus no contexto dos seus dias. Essa exposição passa pelo uso da palavra “verbo” para identificar Jesus.
O “logos” era um conceito familiar para os gregos, que o viam como uma força criadora de grande poder, porém impessoal. Aceitavam a existência de uma certa força superior que criara o mundo, mas não admitiam a possibilidade de que essa força fosse passível de relacionamento. Logos era, portanto, um conceito, uma idéia, uma força ou energia, mas que, de forma alguma, poderia se colocar ao alcance da humanidade.
Já para os judeus, Deus, embora muito mais presente em sua história, também estava em uma categoria tão transcendente que o isolava dos homens. Era um Deus que interferia em sua história, escrevendo-a conforme sua soberania, mas que não se misturava aos homens. Era o Deus de Israel, mas não pessoal. Esse afastamento era acentuado pelo fato de que, antes do aparecimento de Jesus, Israel experimentara cerca de quatrocentos anos de silêncio profético, sem nenhuma manifestação real da voz de Deus.
Portanto, em ambas as culturas, Deus era respeitado, reconhecido, reverenciado e até cultuado, mas não era um Deus pessoal. Era um conceito ensinado pela tradição oral, discutido pelos filósofos, pregado pelos sacerdotes, mas tão abstrato quanto um conceito, tão subjetivo quanto uma idéia.
Creio que, de muitas maneiras, essa conceitualização de Deus, ainda hoje, determina nosso fracasso em conhecê-lo. Da mesma maneira que gregos e judeus nos tempos de Jesus, acostumamo-nos com a idéia da existência de Deus, passamos a reverenciá-lo, cultuá-lo e pregá-lo, mas não nos relacionamos com ele.
Temos, portanto, um sério problema. Pois tudo o que se pode fazer com um conceito é assimilá-lo por meio da aprendizagem e reinterpretá-lo de acordo com nossas leituras pessoais. E tanto a aprendizagem quanto a interpretação são processos falhos extremamente contaminados por nossa visão decaída enquanto seres humanos.
Tome a aprendizagem como exemplo. Por mais que assimilemos determinado conceito, uma hora ou outra somos pegos de surpresa pela limitação de nossa capacidade de retenção de informações. Quem mesmo depois de ter aprendido um conceito matemático simples, como a tabuada, não tropeça vez por outra em determinados números? Ou o que dizer das fórmulas decoradas em tempos de colégio que anos depois caíram no esquecimento? O problema é que enquanto não lembramos o conceito que aprendemos, somos temporariamente ignorantes.
Um outro exemplo. Para se aprender uma língua estrangeira, deve-se desassociar a língua que se aprende da língua materna. Só posso dizer que falo fluentemente determinado idioma quando não mais traduzo sentenças, mas já consigo raciocinar no referido idioma. Todas as vezes que tento, de alguma forma, traduzir uma língua em outra, corro sérios riscos de cometer erros catastróficos no que diz respeito à formulação de frases, concordâncias etc. Essa é a limitação da informação. Ela está sujeita a processos limitados de apreensão.
De igual modo, quando Deus passa a ser um mero conceito, uma informação, por mais perícia que se tenha ao ensiná-lo nos púlpitos, nas classes de escola dominical ou grupos pequenos, sempre se esbarrará na falibilidade do processo de aprendizado. A informação se perde; e quando se perde, passamos a agir como ignorantes no que diz respeito à vida de Deus; vivemos um cristianismo traduzido que se aloja em nossos pensamentos, mas não nos atinge no coração.
Portanto boa parte do fracasso que encontramos, como cristãos, em reproduzir o caráter de Cristo em nossas vidas está no fato de que estamos tentando diligentemente e, muitas vezes, sinceramente colocar em prática conceitos que assimilamos em nossas exposições conceituais do cristianismo, mas que uma hora ou outra se perdem em nossa restrita capacidade de assimilação. Criamos regras, dogmas, sistematizamos doutrinas, decoramos versículos, aprendemos a manusear um manual, mas tudo o que fazemos carece da vida que só pode ser obtida por um relacionamento real.
Depois vêm as interpretações e as reinterpretações. Uma vez que dominamos o conceito, passamos a alterá-lo conforme nossas leituras individuais e logo o Deus que adoramos e ensinamos não é o Deus vivo que se manifestou na história e continua se revelando, mas um Deus fabricado na mente humana e formatado de acordo com nossas necessidades.
E o Verbo se fez carne…
A encarnação é, portanto, uma resposta de Deus à ignorância em que vivíamos. O Deus-conceito de gregos e judeus foi escandalosamente encontrado na face humana de Jesus de Nazaré, sendo visto, ouvido, tocado e conhecido por aqueles que com ele se encontravam. O Deus isolado no cosmo pela ignorância dos homens invadiu nosso mundo e olhou em nossos olhos. A encarnação transformou conceito em vida. Era Deus se auto-ilustrando, em nossa realidade limitada, para que pudéssemos não só nos informar a seu respeito, mas também, e principalmente, amá-lo.
Jesus não veio a este mundo como um grande mestre de sabedoria. Não veio ensinar sobre Deus, veio revelá-lo de forma única e manifestar a sua glória como nunca antes fora vista. Não veio somente apregoar filosofias e regras de moralidade, mas plantar de forma relacional a vida de Deus em cada ser humano, para que Deus não fosse mais um conceito cristão, mas a própria vida dos cristãos. Ao morrer, ressuscitar e enviar seu Espírito ao seu corpo, a igreja, Jesus manteve-se encarnado na igreja para que a glória do Pai, contemplada no Filho, continuasse perpetuamente exposta pelo Espírito na igreja.
No entanto, mesmo depois dessa mística revelação da vida divina, continuamos tratando o cristianismo em categorias filosóficas, fazendo da própria vida de Deus um instrumento motivacional para se viver um pouquinho mais feliz.
Creio que precisamos nos reencontrar com o cristianismo encarnado de Jesus.
Além do Conceito
O cristianismo encarnado se caracteriza por pelo menos três atributos. É essencial, natural e revelado.
É essencial, no sentido de que está profundamente associado com a essência existencial do cristão. Não é um departamento da sua vida ou uma preocupação dominical. Não é algo que ocupa seu pensamento em determinada hora do dia, ou uma prática religiosa limitada a momentos circunstanciais. É a própria vida. Mistura-se com a própria existência, sendo responsável por suas atitudes, pensamentos e decisões. É visceral, intenso, vem das entranhas, vem de dentro, tem raízes profundas, é essencial. Não é racional, embora altere nossas formas de pensar; não é emocional, embora nos leve às lágrimas e, às vezes, à irritação. Envolve o ser como um todo, comprometendo cada componente do próprio cristão.
Não é de admirar a intensidade das palavras de Jesus ao expor o cristianismo. Beber seu sangue, comer sua carne, morrer com ele, sofrer, ressuscitar, negar-se a si mesmo, tomar a cruz – tudo muito passional, intenso, carregado de significado. Não mais um ensinamento frio que guardamos em algum compartimento empoeirado de nossa consciência, mas uma forma intensa de vida que se apropria de nós ao ponto de levar-nos a experiências inexplicáveis. Emocionamo-nos por ele, sofremos por ele, nós o celebramos, lutamos por ele, discutimos por ele, somos motivados por ele, nós o encarnamos. Penso que é com essa vida dentro de si que Paulo exclama: “Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Fp 1.21).
É natural. Não é forçado, produzido por determinação diligente. É algo que flui como a respiração, natural como o próprio viver. Muitos cristãos vivem o cristianismo como uma eterna luta para não fazer o que não se pode fazer, sendo que, na verdade, trata-se de uma rendição à nova natureza de Cristo em nós.
Muitos fracassam em reproduzir o caráter de Cristo porque se esforçam demais. É como tentar construir artificialmente o que já existe naturalmente. É como tentar fazer uma criança com elementos químicos em um laboratório, sendo que temos em nós o que é necessário para gerar a vida. O “cristianismo conceito” é laborioso, tenso, amargo. E não poderia ser de outra forma, pois trata-se de um esforço humano para produzir o que somente a natureza divina consegue produzir. Não vemos Jesus recapitulando regras da lei para cumprir a vontade de Deus, não o vemos esforçando-se diligentemente para expressar o amor de Deus. Ser cristão é natural, quando é encarnado.
É revelado. O conceito é ensinado, a vida é revelada. “Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou” (Jo 1.18). Eu posso ensinar o que eu sei, mas não posso ensinar o que eu sou. O que eu sou é revelado à medida que sou conhecido. Quem aprende ensina, mas só quem encarna pode revelar. Nosso grande fracasso em convencer o mundo do poder transformador de nossa mensagem está no fato de que insistimos em ensinar mais algumas lições enquanto o mundo clama por revelações. O clamor de Felipe, discípulo de Jesus, pode ainda ser ouvido nos lábios da humanidade: “Mostra-nos o Pai”. Faltam ainda pessoas que, como Jesus, encarnem a vida de Deus ao ponto de poder dizer: “Olhe para mim”.
Obviamente, o cristianismo encarnado vai além do púlpito. As pessoas serão transformadas quando a palavra pregada se tornar mais do que um conceito ensinado de uma plataforma e descer as escadas para revelar-se entre os homens; quando cada cristão deixar de ser um aluno em sala de aula para tornar-se testemunha viva da obra do Espírito em todo seu ser.
Só então poderemos começar a perceber naqueles que se encontram conosco a convicção clara de terem visto Jesus.
“E diziam à mulher: Já agora não é pelo que disseste que nós cremos; mas porque nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4.42).
Mateus Ferraz de Campos é pastor na Igreja do Nazareno em Americana, SP e líder do ministério Canto do Céu (www.cantodoceu.com.br). É casado com Renata e tem um filho.
Respostas de 2
Espetacular essa mensagem! Precisamos sair do conceito para o relacionamento e a intimidade com Deus, pois, só assim, revelaremos Cristo aos homens através da nossa própria existência. “Cristo em nós, a esperança da glória.”
ok ,maravilhoso Deus..