Por Eliza Walker
C. S. Lewis, em seu livro “A Cadeira de Prata”, da coleção Crônicas de Nárnia, faz uma alegoria da nossa realidade. O autor é muito preciso, por que não dizer brilhante, em suas alegorias. Não é minha intenção fazer aqui uma interpretação de todo o livro, mas de uma parte em especial que me chamou muito a atenção.
A história se passa com duas crianças que têm uma missão: salvar o príncipe, filho do rei de Nárnia, que simplesmente desapareceu. As duas crianças são comissionadas pelo leão Aslam, que é uma figura de Jesus.
O príncipe desaparecido se encontra sob o poder de uma feiticeira, que de tão sutil não parece, nem de longe, uma figura perigosa. Ela o mantém em um mundo subterrâneo por muitos anos e, para encurtar bem a história, é lá que as crianças (acompanhadas por um ser imaginário chamado paulama) vão parar.
Quando a feiticeira percebe que as crianças e o paulama encontraram o príncipe e estão prestes a levá-lo dali, ela segura seu ódio e usa uma estratégia inteligente. Mostrando um falso interesse, disfarçadamente joga um pozinho na lareira acesa, da qual passa a exalar um cheiro muito doce. Depois, enche as crianças de perguntas irônicas a respeito do mundo lá de cima, a respeito do sol e de Aslam e, com seu instrumento de cordas e o cheiro vindo da lareira, vai entorpecendo a mente e o pensamento das crianças, que já não conseguem mais responder com tanta certeza sobre esse mundo superior.
O encantamento é tão forte que é mais fácil pensar que o mundo superior não passa de um sonho; é tão mais cômodo admitir que talvez nem mesmo exista… E assim a música vai sendo tocada pela bela feiticeira: “Não existe sol… não existe Aslam…”. Eles ponderam: “É, deve ser, nunca existiu, tudo que temos é isso aqui…”.
Nós nascemos debaixo do pecado, debaixo da opressão de Satanás, e, todos os dias, a mesma música vem sendo tocada. A missão de Satanás, o nosso ardiloso inimigo, é fazer-nos pensar que só temos isto aqui, como se esta vida fosse a única que existisse e, portanto, precisássemos fazer o máximo para nos realizar aqui. Dessa forma, ele consegue nos manter presos, escravos de nossa alma, nossos desejos, nosso egoísmo. O mundo subterrâneo é asqueroso, tem cheiro de esgoto, o cheiro de nossa natureza caída, pois até mesmo a nossa justiça é como trapo de imundícia. Mas essa não é a realidade com que devemos nos conformar. Com o novo nascimento, tornamo-nos participantes de outra realidade, totalmente diferente.
Novidade de vida, liberdade dos filhos de Deus, isso deve significar para nós muito mais do que meras palavras. Veja a diferença: ainda que eu esteja sujeito ao mundo subterrâneo, se tenho convicção de que este não é o meu lugar, que vim para cá com uma missão e estou de saída para o mundo superior, então nada neste lugar vai me atrair ou distrair. Agora, se estou debaixo do encantamento e começo a pensar que aquele mundo superior não passa de uma idéia que, apesar de boa, é irreal, então vou esforçar-me ao máximo para fazer a minha existência neste submundo valer a pena. Contudo, imagine comigo: que pobreza de propósito para quem foi criado para viver em abundância de vida!
Em que você tem colocado sua energia e atenção? Em fazer funcionar esta vida aqui? Quer ser feliz aqui? Que tragédia! Salomão passou por isso, experimentou tudo que este submundo tem para oferecer, todas as coisas que Satanás nos faz ver como alvos primordiais, como riquezas, fama, poder, prazeres, sucesso, sexo, comidas e bebidas – e no fim de sua vida disse: “Tudo é vaidade…”, ou, em outras palavras: “Que busca inútil, não adiantou nada, pois este não é o meu lugar”.
Porém, tragédia maior ainda é perceber que o nosso evangelho tem girado em torno disso, temos dançado conforme a música de Satanás. Tentamos usar o próprio Deus para fazer funcionar a vida aqui em baixo. Não percebemos que este é o objetivo de Satanás: fazer-nos esquecer da nossa herança e do nosso caráter aqui como meros peregrinos.
Quando Jesus andou sobre a terra, ele tinha algo diferente que atraía a muitos. As pessoas olhavam para ele e, talvez, algo em seus corações as fazia lembrar de sua verdadeira pátria, de sua verdadeira identidade. Uma saudade inexplicável nascida de um lugar que nunca conheceram, embora para alcançá-lo tenham sido criados. Jesus vem com uma mensagem, querendo nos levar de volta a uma realidade tão superior, tão superior, que ele diz até mesmo às multidões: “Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me”. E ele não tem medo de chamar este convite de boas novas, pois deixar para trás tudo que nos prende a este submundo não é um sacrifício, é uma verdadeira libertação que deve ser vivida dia a dia.
Algo dentro de nós teima em não se conformar… Mesmo quando tudo vai bem, há uma inconformidade interior com a música tão encantadora. Ao mesmo tempo, podemos passar a vida toda com essa vaga insatisfação sem nunca sermos despertados do encantamento maléfico.
Na história narrada por C. S. Lewis, para que as crianças, o príncipe e o paulama saíssem desse estado de resignação, foi necessária uma atitude drástica. O paulama foi até a lareira e apagou o fogo com seus próprios pés, queimando-os. A partir deste momento, o encanto perdeu sua força. O paulama não estava tão convicto assim da existência de sua verdadeira pátria, mas a idéia de viver para sempre naquele mundo asqueroso sem sol fez com que tomasse essa atitude radical. Seus pés ficaram doendo de verdade. A dor não permitiu que entrasse novamente no encantamento.
O evangelho não promete uma vida sem dores ou sofrimento. Esses, porém, não se comparam em nada à verdadeira alegria de estar de volta ao lar. Não se trata, ademais, apenas de uma esperança vindoura, mas de uma vida que começa hoje, aqui.
O inferno e a vida eterna começam aqui. Estamos aqui, mas não somos daqui. Jesus veio para que pudéssemos conhecer o Pai, e isso é vida eterna. Quando ele voltar, será apenas conseqüência o fato de nossos corpos serem glorificados, pois temos hoje as primícias do Espírito. É este mesmo Espírito que clama através de nós ABA, PAI, pois traz dentro de nós a saudade que ele tem do mundo lá de cima.
Que não desperdicemos nossas vidas adequando-nos às pressões que sutilmente agem sobre nós, como se fossem padrões de uma vida boa aqui na Terra. Pressões da sociedade, da família e de nós mesmos, pressões estas que não têm outra origem, senão na velha cantiga de Satanás: “Não existe sol, não existe nada além disto aqui… Seja feliz aqui, satisfaça os seus desejos, seja bem-sucedido; tudo que existe e que pode ser experimentado está aqui. Viva a realidade e pare de sonhar…”.
Sejamos radicais, ainda que sem muitas garantias, sem muita clareza. Encaremos nossa realidade sem máscaras e, com o choque que sua falta de sentido nos causa, tomemos atitudes drásticas para sair do encantamento e, assim, não nos conformar mais com este século, com esta música malévola. Nas palavras do paulama: “Ainda que o mundo superior não exista, vou morrer procurando-o, pois nesta realidade subterrânea, que parece tão convincente agora, não quero viver!”
Eliza Walker reside em Monte Mor, SP, e é professora no Curso de Preparação Profética. E-mail: [email protected].