Por: Pedro Arruda
A vinda de Deus para a Terra
O fato de a encarnação do Filho de Deus ser um projeto que antecede a própria criação do mundo nos proporciona a dimensão da importância que Deus dá à família.
Quando os homens imaginaram a possível vinda de um deus à Terra, concebiam que isso pudesse acontecer por meio de um cavalo alado ou um foguete, como vemos na mitologia ou na biografia dos super-heróis. Contudo, Deus foi tão surpreendentemente simples em sua maneira de vir para viver entre os homens que o diabo, especialista na mentira, aproveita dessa simplicidade para tentar desacreditar a encarnação. Quão significativas foram as palavras do profeta (Is 7.14), dizendo que a virgem conceberia e daria à luz um filho, referindo-se ao nascimento virginal de Jesus por intermédio de Maria antes de ter-se relacionado intimamente com José!
É maravilhoso pensar que a família já estava presente desde o início da criação. Mais espantoso ainda é saber que ela já estava nos planos de Deus antes da fundação do mundo. Deus criou diretamente todos os anjos, ao que tudo indica, como uma população já definida. Contudo, quanto ao homem, criou diretamente apenas o primeiro casal e concedeu-lhe o poder de procriar. Sendo o homem feito à imagem e semelhança de Deus, ele é o único ser capaz, potencialmente, de gerar outro ser à imagem e semelhança de Deus.
Esta é uma das funções da família: ser um berçário de seres à imagem e semelhança de Deus. Assim sendo, a encarnação não poderia vir de outra forma senão por meio do nascimento numa família. Quando Deus propôs o sistema de procriação à população humana, deixou implícita a possibilidade da encarnação. Ficou claramente contrastado com o modelo dos anjos, cuja população é como um clube fechado no qual ninguém mais pode entrar. Não é por acaso que o diabo se opõe tanto à família.
Respeitando a estrutura familiar
Quando se fala em encarnação, há um enaltecimento tão grande da figura materna de Maria que ofusca a própria família. Devemos notar que o anjo faz só o primeiro anúncio a Maria e, depois, passa a dirigir-se exclusivamente a José, o chefe da família, a fim de orientá-lo quanto a todas as decisões que precisariam ser tomadas para preservar a vida do Menino – expressão preferida por Lucas para referir-se a Jesus como criança. Sob a palavra do anjo, ele recebe Maria grávida, exila-se no Egito com sua família e, com ela, retorna a Nazaré em tempo oportuno. Ao respeitar assim a família, Deus mostra o valor que lhe dá, não tratando Maria apenas como uma “barriga de aluguel”. Há de se considerar, também, que José era um príncipe, comprovadamente um descendente de Davi. Por essa razão, teve de alistar-se em Belém, justamente na época do nascimento de Jesus, fato que, além de cumprir as palavras do profeta, causou grande confusão entre incrédulos e religiosos.
Ao escolher uma adolescente sem nenhuma experiência maternal, Deus estava arriscando, desde o início, a vida de seu Filho num gesto de infinita doação. Humanamente falando, talvez fosse mais sensato ter escolhido uma mulher com mais experiência, que já tivesse dado demonstração de ser uma mãe exemplar. Embora Jesus fosse inteiramente Deus, abriu mão de todas as prerrogativas que a condição divina lhe pudesse oferecer e entregou-se à sua missão, iniciando por tornar-se um embrião e um feto indefeso no ventre de Maria. Além disso, sujeitou-se a todas as agruras, passando pelas dificuldades financeiras e perseguição política que a família escolhida teve de sofrer a fim de cumprir, como um todo, a missão dada pelo Pai.
Identidade e ministério
Foi no meio dessa família que, como humano, Jesus tomou gradativamente consciência de sua identidade e missão. Podemos imaginar as inúmeras perguntas que, quando menino, deve ter feito para entender o exílio e o regresso à terra natal. Cada ocasião dessas era uma oportunidade para Maria falar-lhe as coisas que estavam guardadas em seu coração. Por isso, Jesus, quando chegou aos 12 anos, pôde compartilhar com os doutores os seus conhecimentos e ainda dizer que o templo era a casa de seu Pai. Com essa resposta, Jesus fazia a sua transição para a fase adulta, demonstrando saber quem era e para que viera a este mundo. Provavelmente, dali em diante passou a conviver diariamente com José e aprender seu oficio de carpinteiro, frequentou as sinagogas e o templo e estudou as Escrituras. Durante esse mesmo tempo, ele também recebia, sem dúvida, a revelação do Pai, por meio do Espírito Santo, tendo cada vez mais a consciência de que os princípios e atitudes ensinadas pela religião não eram condizentes com a vontade de Deus (Lc 1-2; Mt 1-2).
Tudo isso foi crescendo-lhe tanto no coração que chegou o momento de agir. Ele já entendia o que as Escrituras diziam a seu respeito e sabia o itinerário que devia seguir. Foi obedientemente a João para ser batizado, introduzindo-se, assim, na história dos hebreus. Em seguida, passou por uma dura prova de natureza espiritual e enfrentou seu verdadeiro adversário no deserto, sem ceder às tentações que lhe eram oferecidas (Lc 3.21,22; 4.1-13).
Depois, para iniciar a parte pública de seu ministério, Jesus escolheu uma festa de casamento (Jo 2.1-11). Assim como o casamento dá início a uma nova família, Jesus estava propondo iniciar uma nova família para o Pai, pronto para transformar-se de unigênito em primogênito. Devemos lembrar que sua “estreia” pública contou com a participação especial de sua mãe, que o expôs diante dos anfitriões na situação da falta de vinho, numa demonstração de que ela cria já ter chegado a hora de ele se manifestar. Penso que esse diálogo entre Maria e Jesus não era uma novidade para ambos, mas uma sequência de uma longa conversa que mantiveram durante a vida, especialmente depois de Jesus, provavelmente, ter-lhe relatado suas experiências no batismo e no deserto.
Conflito entre família natural e espiritual?
Dias depois, em meio ao seu ministério, ao ser informado de que sua mãe e seus irmãos o procuravam, ele afirmou aos ouvintes que sua mãe e seus irmãos eram aqueles que faziam a vontade do Pai. Numa outra referência, Jesus declarou que quem deixasse, entre outras coisas, a própria família, receberia como recompensa cem vezes mais. Também alertou que haveria dissensões na família, chegando até a traições; em outras palavras, haveria inimigos dentro da própria família (Mt 12.48,49; Lc 18.29; 12.35).
Equivocadamente, a meu ver, muitos querem interpretar que, nesses episódios, Jesus desvaloriza a família natural. No entanto, não é isso o que está escrito, pois Jesus não menospreza sua família natural; ao contrário, ele promove os que fazem a vontade do Pai à mesma intimidade e importância daqueles. Não se trata de se excluir da família natural ou de substituí-la por uma ministerial. É acertado dizer que a família natural deve estar a serviço da espiritual, sempre aberta para incluir outros.
Jesus, também, não aprova o abandono da família como pretendem muitos que, não tendo uma vida familiar satisfatória, envolvem-se totalmente com o ministério como uma fuga, exatamente como fazem os viciados em trabalho (workaholics). Com naturalidade, condenam-se os que se ausentam da família em função do trabalho secular, mas quem faz a mesma coisa por causa “do ministério” é louvado.
O que devemos, de fato, abandonar é o nosso conceito humano de família voltada egoisticamente para prover a felicidade de seus próprios membros. Quem leva sua família a buscar o Reino de Deus em primeiro lugar jamais terá de abandoná-la (ficar muito ausente) e não enfrentará inimigos dentro de casa.
Não podemos interpretar negativamente as manifestações de Jesus acerca da família. Deus não concebeu a família como concorrente à vocação, mas como recurso para a plena realização dela, conforme vemos desde o início da História. É nesse contexto que se inserem os ensinamentos de Jesus sobre a família, pois sendo ele a expressão completa e exata do Pai, jamais agiria em contradição ao pensamento divino. É por essa razão que ele afirma que o casamento tem seu princípio em Deus, que foi um dom dele para nós e que não cabe ao homem separar quem Deus uniu.
Em contrapartida, o divórcio tem origem na dureza do coração humano. Penso que essa afirmação não se restringe ao divórcio tecnicamente definido pela lei, pois Deus odeia qualquer tipo de abandono ou quebra de aliança. Assim, poderíamos incluir situações em que cônjuges não estão divorciados legalmente, mas que têm atitudes de desprezo ou repúdio pelo outro no coração equivalentes ao divórcio. Se a intenção impura do coração é suficiente para identificar o adultério, não deve ser diferente com relação ao divórcio (Mt 5.28).
Por último, vemos um gesto derradeiro de Jesus que reafirma seu valor à família, quando na cruz entrega sua mãe aos cuidados de João (Jo 19.26-27). Definitivamente, Jesus não abandona, mas ampara sua família. Isso é plenamente coerente com o conceito que Deus tem, pois ele sempre contou com a família como estratégia fundamental para a condução de seus propósitos desde antes da fundação do mundo. Ao invés de lutar contra a família, precisamos adequar-nos ao pensamento de Deus, dando-lhe o lugar que ele lhe destinou.
Deus não tem como princípio descartar após o uso. Se a família foi extremamente importante para todas as suas intervenções a favor da criação e, em especial do homem, é certo que ele não a abandonará, mas continuará a considerá-la com a mesma importância. É possível constituir uma família segundo o coração de Deus. Ele quer fazer isso conosco. Assim como a família foi um instrumento essencial à encarnação de Jesus e ao desenvolvimento de seu ministério, também o será ao ministério do Espírito Santo à Igreja. É sobre isso que vamos refletir na próxima edição.
Uma resposta
Tão bom ler algo assim, tão esclarecedor e correto!