21 de dezembro de 2024

Ler é sagrado!

Trabalho e Espiritualidade

Por Pedro Arruda

Origem do Trabalho

De maneira geral, acreditamos que espiritualidade só combina com traba­lho se este for religioso, o qual classi­ficamos como o mais nobre de todos, seguido pelo filantrópico ou voluntário. Em razão disso, o trabalho que cha­mamos de secular tem uma conotação quase perversa, pois ele obsta nossos compromissos com Deus. Muitas pes­soas espirituais não vêem a hora de encerrar o expediente e estarem libera­das para participar de uma reunião de oração ou de um culto. Não são pou­cos os que se orgulham de faltar com as obrigações profissionais em favor das religiosas, pois entendem que o traba­lho secular não faz parte do contexto de servir a Deus.

No entanto, ao atentarmos para a origem do trabalho, veremos que o valor espiritual do trabalho não está exatamente no que fazemos, mas prin­cipalmente na motivação com a qual o fazemos. Para tanto, devemos consi­derar Deus como o autor do trabalho, pois foi ele quem o deu ao homem. Dentro do plano original estabelecido no jardim do Éden, o homem deveria executar o trabalho exclusivamente para Deus, conservando a imagem e a semelhança divinas e portando a gló­ria do criador (Gn 1.26-28).

Assim sendo, cultivar e guardar o jardim, nomear os animais e domi­nar a terra eram tarefas que estavam dentro desta perspectiva original (Gn 1.28; 2.15,19). Era o sacerdócio de Adão. Interagir com a criação, de uma maneira geral, produzia assuntos para os momentos de comunhão com o Senhor e ainda proporcionava o desen­volvimento ao homem. Em meio a isso, ele não precisaria preocupar-se consigo mesmo, pois todo o necessário ao seu sustento a terra produzia naturalmente. Desde então seguia um ciclo de seis dias de trabalho e apenas um descanso.

O Trabalho Depois do Pecado

Com a tragédia do pecado, o homem passou a ter a necessidade de trabalhar para si próprio para se sus­tentar, além de contar com a adver­sidade da terra (Gn 5.16-19). Com a contínua degradação, uns passaram a trabalhar para outros e, com isso, o trabalho também se transformou num instrumento de opressão nas mãos daqueles que começaram a acumu­lar bens. Sem perceber, ao vender seu trabalho, o homem vendia também a si próprio. Como conseqüência do pecado, o homem deixa de trabalhar para Deus e passa a trabalhar para si mesmo. A ação libertadora do traba­lho, que o trabalho traz em si quando feito para Deus, passa a ser opressora quando realizada a favor do homem.

É trabalhando que o homem passa as melhores horas dos melhores dias de sua vida. Se isto não for feito para Deus, que grande desperdício será nossa vida!

Jesus resgatou o conceito do tra­balho para Deus. Ensinou que os lírios do campo não tecem nem fiam, mas que nem Salomão, em toda a sua gló­ria, se vestiu como um deles; que os pardais não precisam se preocupar com a segurança, pois Deus cuida deles (Mt 6.26-54); que, em contrapo­sição, o louco, pelo fato de abarrotar seus celeiros, pensou que podia des­cansar a sua alma (Lc 12.16-21); e que os vinhateiros que assassinaram não só os enviados pelo dono da vinha, mas também o próprio filho dele, imaginavam que podiam apossar-se da herança (Mt 21.55-41). Em meio a tudo isso, Jesus confrontou os legalis­tas afirmando trabalhar porque o seu Pai também trabalhava continuamen­te; aprovou a colheita de espigas pelos seus discípulos no dia de sábado e ainda fez curas nesse mesmo dia (Mt 12.1-15; Jo 5.17). O importante para Jesus não era quando, mas para quem se trabalha.

Também sabemos que vão é o trabalho da sentinela, se o Senhor nãoguardar a cidade; como vão é o traba­lho dos edificadores, se o Senhor não construir a casa (SI 127.1,2). Em Isaías, lemos que desde a eternidade não se ouviu de um Deus como o nosso que trabalhe para aquele que nele espera (Is 64.4). Quando Davi se propôs a cons­truir uma casa para Deus, o resultado foi que Deus se propôs a construir uma casa para ele (2 Sm 7.11).

Com todos esses exemplos, apren­demos que Deus quer trabalhar por nós e, ao mesmo tempo, espera que trabalhemos por ele. Esse era o prin­cípio do trabalho antes do pecado. Trabalhar de acordo com o verdadeiro objetivo do trabalho, isto é, para Deus, é estimulante e acrescenta tesouros valio­sos sem corrosão da ferrugem, enquan­to que trabalhar para nós mesmos ape­nas causa fadiga e não acrescenta nada à nossa vida, que se resume numa roti­na de enfado e vaidade.

Também Paulo ensina aos tessalonicenses que quem não quisesse trabalhar também não deveria comer (2 Ts 5.10) e aos efésios que deveriam trabalhar com as próprias mãos para ter o que repartir com os que necessi­tassem (Ef 4.28). Igualmente encontra­mos esse apóstolo recomendando aos servos – perfeitamente aplicável aos empregados nos dias de hoje – que considerassem o trabalho como se fosse para Deus e não para o patrão humano (Cl 5.22-25). Por outro lado, os senhores – patrões e chefes atu­ais – não deveriam se sentir absolu­tos, cientes que estavam debaixo do mesmo senhorio do servo, ou seja, de Deus (Cl 4.1). Tanto um como outro prestarão conta ao mesmo Senhor.

Vemos, então, a insistência de que o trabalho deve ser sempre para Deus, quer na condição de empregado, quer na de empregador. No livro de Êxodo (51.1-11; 55.50-56.1,8), vemos que Deus habilita pessoas para atividades como de costureiro, ourives, projetis­ta e outras que seriam consideradas seculares por nós. Portanto, diante de Deus, não há um trabalho mais nobre que o outro; o importante é para quem trabalhamos. Ou seja, podemos servir a Deus com nossas profissões tanto quanto se fossem um ministério. Enten­do que seja mais certo pensar na nossa profissão como ministério do que no nosso ministério como profissão, pois dessa forma estendemos a santidade para o meio secular, enquanto que de outro modo impomos a secularização aquilo que é sacro.

Trabalho e Sacerdócio

0 Novo Testamento convoca todos ao sacerdócio (1 Pe 2.9), inde­pendentemente de sua profissão: pescador, cobrador de impostos, pro­fessor, mecânico, pedreiro, empresá­rio. Muito embora saibamos disso, é difícil aceitar, pois nos parece que o pastor e o bispo são mais sacerdotes que o lixeiro. Ora, Adão, ao cultivar o Jardim do Éden, o fazia ao Senhor, e isso era o seu sacerdócio.

Em contraste com o sistema atual de organização das igrejas, que separa as pessoas em clero e leigas, sempre é bom lembrar que o Novo Testa­mento, apesar de reconhecer lideran­ças, não trata os demais como leigos. Aliás, segundo nos lembra R. Paul Stevens, no livro Os Outros Seis Dias, as duas expressões gregas “laikos” e “idiótés”, usadas como depreciativas e traduzidas como leigo, não são apli­cáveis de fato aos cristãos. A primei­ra, com o sentido de “pertencente ao povo comum”, não é encontrada no Novo Testamento. A segunda, usada em contraposição a perito ou espe­cialista, aparece duas vezes: pelos membros do sinédrio que, surpresos, constatam a pregação poderosa dos apóstolos Pedro e João, que eram pes­soas comuns e sem instrução (idiótai – At 4.13); e por Paulo para se referir à pessoa fora da igreja, que adentra uma reunião e não consegue compre­ender as línguas estranhas ali faladas (1 Co 14.23).

Portanto em nenhuma ocasião cabe ao cristão a conotação de leigo. Quando se refere à multidão ou à nação de Deus, o termo aplicado é laos, incluindo a liderança. À medida que se passou a distinguir o clero, por conseqüência surgia o leigo ou laica- to, o trabalho religioso e o secular e, a exemplo de outras culturas, o poder religioso associado com o poder políti­co e econômico.

Em geral, a idéia que prevalece é de que todas as pessoas são chama­das ao cristianismo e, dentre elas, algu­mas recebem um outro chamado para compor o clero (sacerdócio) desse cris­tianismo. Ora, na vida natural, primei­ramente nascemos e depois, à medida que nos desenvolvemos, vamos assu­mindo papéis inerentes ao desenvol­vimento: estudamos, obtemos uma profissão, casamos, tornamo-nos pais, avós etc. – tarefas próprias à nossa cronologia e decorrentes das nossas escolhas. Penso que assim também é a vida espiritual, pois o novo nascimen­to já traz em si todo o potencial para sermos sacerdotes, não necessitando para isso de um segundo chamado que somente alguns privilegiados rece­bem para fazer parte do clero. Não há, neste contexto, dois chamados (um para a salvação e outro para o servi­ço), pois o próprio chamado à conver­são já implica benefício por um lado e tarefa por outro.

Se pretendemos trabalhar para Deus, precisamos considerar se o que fazemos ou vamos fazer está em conformidade com a vocação para a qual fomos por ele chamados. Este deve ser o principal fator a ser levado em consideração para nossa profissão e não o mercado de trabalho ou o desejo de terceiros. Preci­samos ter em mente que num mundo com tanta diversidade, igualmente diver­sas devem ser as profissões. Por isso, não se pode conceber que no conceito divi­no algumas profissões possam ser mais importantes que outras, ao contrário da valorização que os homens atribuem, quer do ponto de vista econômico, reli­gioso, político etc.

Diante disso, é preciso saber como servir a Deus diretamente através do trabalho, com a atitude correta que nos faça sentir essa realidade. Não é somente quando se consegue um espaço para fazer uma reunião de evangelismo ou orar junto com outros colegas que se contribui para o reino de Deus no ambiente de trabalho. Tampouco o dízimo do meu salário é o único resultado espiritual desse meu esforço.

Nunca podemos esquecer que a maneira como executamos nossas tarefas denuncia a atitude que temos em nosso coração.

Devemos procurar entender a von­tade de Deus e se Cristo está em nós e nós nele, então tudo, absolutamente tudo, deverá ser em obediência ao Pai. Se o Pai nos deu o trabalho é porque dele temos necessidade; logo, se o faze­mos em atitude correta, isso redundará em santidade e glória para o Senhor, não nos cabendo sentimentos de culpa por imaginarmos que tal trabalho possa nos privar de uma atividade religiosa.

Parte deste artigo foi inspirada pelo conteúdo do livro “Os Outros Seis Dias-Vocação, Trabalho e Ministério na Perspectiva Bíblica”, R.Paul Stevens, Ed. Ultimato, 2005.

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