Por Eliasaf de Assis
A Influência de Maquiavel
Poucos autores amealharam tanta antipatia como Maquiavel. Chefes inescrupulosos, estadistas velhacos ou pais severos de adolescentes em erupção já receberam em algum momento a alcunha de maquiavélico, pronunciada às vezes por quem nunca o leu ou nem sabe de quem se trata.
Como disse alguém, “ele (Maquiavel) é lido por poucos e citado por muitos”. Quando os fins são absolutamente necessários, toda a sociedade faz o que ele disse: justifica os meios. A conclusão de Maquiavel está lá, quando um marido abandona esposa e filhos para ser feliz, quando soldados executam civis para punir terroristas. Em vez de apenas expressar uma ética, a frase hoje representa uma prática cotidiana. O pragmatismo e a amoralidade que Maquiavel defendeu nas políticas de Estado migraram através dos séculos para o mundo dos negócios, das relações pessoais e, tremo ao dizer, para a vida eclesiástica.
O Padrão do Mundo
Há muito tempo, já não estranhamos quando os valores de performance profissional que regem este mundo influenciam a igreja. Alguns de nossos líderes mais admirados o são por sua grande capacidade prática e administrativa. Sem fazer juízo algum de quem está certo ou errado, é importante apenas afirmar que quando acreditamos que nossos resultados falam por si e que justificam qualquer excesso, estamos agindo e reagindo segundo a ética relativista de nossa época e validando, mesmo que de forma biblicamente elegante, o axioma “os fins justificam os meios”. Só não ousamos citar o autor.
Mas é no dilema a seguir, apresentado por Maquiavel, que podemos notar como nossa liderança pode ater-se aos mesmos valores terrenos em que todo este mundo atenta:
O que é melhor, ou dizendo em termos modernos bem “gerenciais”, o que é mais eficiente: ser amado ou ser temido?
A prática da autoridade neste mundo sempre oscilou entre dois pólos: Um líder exerce sua autoridade pelo temor (ou respeito, se preferir) que as pessoas têm dele, por um lado, ou pelo amor que lhe devotam, por outro. Essa polaridade é ensinada em qualquer curso de liderança: o equilíbrio entre ser assertivo e participativo, entre impor a autoridade e relacionar-se de maneira motivadora. Há, então, duas alas que representam dois estilos de liderança, baseados em motivos diferentes, e que na igreja ficariam assim:
Ala Direita:
• A autoridade é mantida pela oficialidade institucional;
• A obediência é exigida:
• O ministério é dedicar-se à instituição, igreja ou movimento;
• A hierarquia é enfatizada, em uma clara divisão entre leigo e clérigo ou quem é ordenado e quem não é.
Ala Esquerda:
• A autoridade é mantida pelo carisma do líder e o amor que o povo lhe devota;
• Os liderados são motivados a participar e partilhar suas idéias;
• O ministério é dedicar-se ao povo;
• A hierarquia é pouco enfatizada, o lider é um facilitador.
A Ala da Direita
Temos, então, uma ala da direita, que defende a submissão dos cristãos com base na hierarquia, no caráter oficial da posição eclesiástica. A obediência é exigida e a rebeldia é claramente verificada. Quando se extrema, a ala da direita pronuncia axiomas como “preocupe-se em dar o dízimo, o que será feito com o dinheiro cabe a Deus julgar”, “obedeça mesmo quando o líder estiver errado”, “questionar é rebeldia”. Modernamente, frases como “sob a cobertura da liderança”, “sob a unção” ou “dentro da visão” são muito utilizadas.
Embora possa parecer que a ala da direita seja povoada unicamente por igrejas tradicionais, o fato é que em qualquer uma das alas é possível encontrar renovados ou conservadores. Aliás, é cada vez mais comum ver igrejas renovadas onde a autoridade do líder é indiscutível em razão da sua unção e desempenho nos dons. O fato dos dons serem reais não quer dizer que não possa haver abuso de autoridade. Denominações de qualquer linha, tradicionais ou carismáticas, não estão imunes à possibilidade de exercer a autoridade na mesma base em que este mundo a utiliza.
A Ala Esquerda
Em uma rápida abordagem, parece fácil fazer algum juízo quando o assunto é autoridade: devemos deplorar a ala direita quando ela prejudica e fere abusando do poder, e exaltar a atitude dos líderes da ala esquerda, que são mais cuidadosos e amorosos, conseguindo a obediência e participação de seus liderados sem obrigá-los e, sim, motivando-os.
No entanto, há outro problema. A maioria de nós já viu de perto a rebeldia dentro da igreja. Por vezes ela nos atingiu, nos confundiu ou mesmo obteve o nosso aval. Execrar o abuso de autoridade é um dever, mas conviver com a rebeldia é inadmissível.
Entende-se: os membros de igreja tornaram-se consumidores de produtos e serviços. Consomem boa música, boas preleções, bons departamentos infantis e, caso desejem mais, encontram uma ocupação para seus talentos e dons. Quem nunca conviveu com “obreiros” insatisfeitos que julgam ser obrigação do pastor arranjar algo para eles fazerem? A modernidade exigiu de muitas instituições, inclusive das organizações eclesiásticas, uma adaptação ao mercado. “Encantar o cliente” é um lema seguido, inclusive, em muitas igrejas.
Portanto, devemos condenar o abuso da autoridade mas, também, questionar estilos de liderança que buscam a popularidade. E então, com o que ficamos?
Eliasaf de Assis é sociólogo e professor universitário. Mora em São Paulo com a esposa Miriam e os 3 filhos.
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