Por Mateus Ferraz de Campos
Ao longo da história, os cristãos têm sido conhecidos como “o povo do Livro”. Essa definição fundamenta-se no fato de que a cosmovisão cristã, incluindo seu conjunto de valores e padrões de comportamento, emerge do conteúdo de seu livro sagrado: a Bíblia. Mais do que um “guia de referências”, a Bíblia é a fonte primordial na qual o cristianismo encontra o cerne de sua identidade.
No entanto, essa derivação não é tão simples quanto parece. Embora alguns insistam em considerá-la como um “manual de instruções” para o comportamento e as tomadas de decisão na vida, a Bíblia não foi concebida com a proposta pragmática de um manual. Basta dizer que um manual, por sua natureza, exige pouca ou nenhuma interpretação. Não existem muitas possíveis compreensões da instrução “aperte o botão enter no controle remoto”. Pelo contrário, um manual é redigido com clareza suficiente para que o resultado das ações de quem o segue seja exatamente o pretendido pelo fabricante.
Por mais que muitos desejem que seja assim com a Bíblia, tratá-la dessa forma simplista é uma postura, no mínimo, ingênua. A começar pelo fato de que a Bíblia é um livro milenar, concebido no decorrer de um longo período histórico quando pressuposições modernas, como as de um manual, nem sequer passavam pela cabeça dos autores e receptores da mensagem.
Além disso, basta uma rápida leitura de várias amostras de textos bíblicos para se perceber a variedade da composição. Prosa, poesia, narrativas, provérbios, literatura profética, literatura legislativa, cartas, canções são alguns dos gêneros literários que compõem o Santo Livro. Nenhum deles possui a rigidez técnica de um manual, mas usam uma linguagem muito mais relacional para transmitir a mensagem de um Deus que é, por sua própria essência, relacional. Mesmo determinações claras e sucintas como “não matarás” fazem parte de um contexto maior em que Deus procura construir um relacionamento com seu povo. Nada pode ser mais reducionista do que tomar palavras de um relacionamento e transformá-las em legislação fria ou instrução pragmática. A fluidez da mensagem de amor de Deus, transmitida através de épocas e culturas diferentes, faz da Bíblia mais do que um “manual” a ser seguido: uma mensagem a ser vivida.
Dessa forma, nossa postura em relação às Escrituras determina nossa relação com Deus. Para os que seguem um manual, Deus é um mero fabricante, e a vida cristã tem o objetivo vazio de “funcionar”. Para os que entendem as Escrituras como uma mensagem de amor de um Deus relacional, não existe outra alternativa a não ser a busca incessante de conhecê-lo, sabendo que essa é a essência da vida eterna (Jo 17.3).
Cuidado com as lentes
Nessa perspectiva, então, como devemos ler a Bíblia? Primeiramente, devemos estar atentos às pressuposições que transferimos para a leitura. Inevitavelmente, todos nós trazemos uma preconcepção a respeito da mensagem bíblica. Essas “lentes”, por assim dizer, provêm do fato de sermos seres contextuais. A maneira como vemos o mundo é extremamente dependente do contexto em que fomos criados. Diversas influências, sejam elas educação dos pais, contextos culturais ou tradição cristã, moldam-nos ao longo dos anos de forma que nossa leitura é, em grande parte, determinada por esses fatores. Obviamente, essa perspectiva opera em nós de maneira inconsciente, e só percebemos tais pressuposições quando somos confrontados com outra forma de pensar.
O grande risco, quando se trata de interpretação bíblica, é o excesso de familiaridade com as Escrituras. Nossas pressuposições tornam-se autoritárias e, ao invés de lermos a Bíblia, acabamos lendo o que pressupomos que ela esteja dizendo. É como um diálogo em que alguém faz uma pergunta e, antes de ouvir a resposta, interrompe o interlocutor com a frase: “Eu já sei o que você vai dizer!” Ou mesmo ao ouvir a resposta, ignora a essência do que o outro disse, reinterpretando as palavras de acordo com suas próprias convicções. Esse tipo de postura, normalmente impulsionada pela arrogância, impede o diálogo e a comunicação.
O mesmo acontece com a leitura bíblica. Quando somos enclausurados em nossas pressuposições, nossas lentes se tornam nossos olhos, e nos esquecemos de que, por detrás das palavras do Livro, existe uma voz e, por detrás da voz, uma pessoa. Deus nunca será ouvido por alguém que julga saber tudo a seu respeito. A Bíblia nunca será um instrumento de transformação na vida daquele que julga já conhecê-la. Portanto, a primeira postura em relação às Escrituras deve ser de humildade e reconhecimento de nossa limitação, confiando na direção do Espírito em cada uma de nossas interações com o Livro de Deus.
Um Deus que se revela na história
Em segundo lugar, devemos nos aproximar das Escrituras a partir de uma perspectiva relacional – como a eterna mensagem de amor enviada por um Deus que constrói relacionamentos com seu povo. Para isso, pelo menos dois aspectos precisam ser levados em consideração: história e vida.
A primeira consideração importante a ser feita ao lermos a Bíblia é que sua mensagem está ancorada na história. Muitos dos equívocos na interpretação bíblica são consequência de tratá-la como compêndio de conceitos teológicos. Sem dúvida, as Escrituras trazem muitas revelações a respeito de Deus, mas, interessantemente, essas revelações não foram transmitidas como conceitos e sim como acontecimentos no decorrer da história.
Ao revelar-se, Deus não optou por escrever um compêndio descritivo a respeito de seus atributos divinos, mas inspirou pessoas a registrar as maneiras pelas quais ele se relacionava com seu povo. Se o propósito de lermos as Escrituras é conhecermos a Deus, temos de entender a maneira como ele se manifestou na história, formando para si um povo que pudesse conhecê-lo por meio de um relacionamento real.
A diferença entre o cristianismo e as mais diversas filosofias de vida apregoadas ao longo dos séculos é que o cristianismo não surgiu de ensinos, como um conjunto de conceitos transmitidos por supostos “sábios”. O cristianismo aconteceu, e aconteceu no tempo e no espaço, na história do nosso mundo.
A fé judaico-cristã é caracterizada por marcos históricos. Um homem chamado Abraão sai da terra de Ur como resposta de fé a um Deus que mal conhecia. Um homem chamado Moisés tira um povo chamado Israel de um cativeiro em um lugar chamado Egito e leva-o a uma terra chamada Canaã. Um homem chamado Jesus – o Deus encarnado – nasce em um estábulo numa cidade chamada Belém, prega o Reino de Deus na terra de Israel, na região da Palestina, morre em uma cruz num lugar chamado Gólgota e ressuscita dentre os mortos ao terceiro dia, transformando radicalmente a vida de pessoas que passam a viver em função dessa história. Homens e mulheres recebem o Espírito Santo em Jerusalém no dia de Pentecostes. Um homem chamado Saulo encontra o Jesus ressurreto na estrada de Damasco, e sua conversão transforma a história do mundo ocidental.
Enfim, o cristianismo é história que acontece no tempo e no espaço. Não é uma realidade reservada às regiões celestes onde principados e potestades lutam sem cessar; tampouco é um conjunto de preceitos abstratos pendurados nas paredes de templos religiosos. O cristianismo é realidade visível que se desenrola na vida de gente de carne e osso e transforma radicalmente não só seres humanos, mas toda a criação.
Não é por acaso que o apóstolo João declara: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam – isto proclamamos a respeito da Palavra da vida. A vida se manifestou; nós a vimos e dela testemunhamos, e proclamamos a vocês a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada. Nós lhes proclamamos o que vimos e ouvimos para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Escrevemos estas coisas para que a nossa alegria seja completa” (1 Jo 1.1-4, NVI, ênfase acrescentada).
As Escrituras são o registro da ação de Deus na história. E nossa leitura e interpretação devem levar em conta a continuidade dessa ação. A criação, a formação do povo de Israel em Abraão, o êxodo, a conquista da terra, o reinado de Davi, o exílio babilônico, as palavras proféticas durante esse período não são apenas histórias inspiradoras, mas revelações da ação de Deus na história. Por isso, é sempre na moldura dessa história que devemos entender as Escrituras.
Da mesma forma, precisamos entender a vida e obra de Cristo nesse contexto, como o clímax da narrativa bíblica, a manifestação apoteótica da expectativa construída ao longo de toda a história e, ao mesmo tempo, a inauguração de um novo tempo que se consumará com sua manifestação absoluta como o Senhor da história. Não é à toa que a história começa no jardim (Gn 1-2) e termina em uma cidade com um jardim no centro (Ap 22.1-2). Existe uma maravilhosa continuidade na ação de Deus, e as Escrituras registram precisamente essa continuidade.
Portanto, antes de perguntar o que este texto significa para mim, devo perguntar o que este texto significa na história de Deus. Afinal, minha história se encaixa na história de Deus e não o contrário. É certo que Deus não mudou seu propósito eterno. Por isso, para entender o que a palavra quer dizer hoje, temos de entender o que ela sempre quis dizer, desde quando proclamada aos que primeiro a ouviram. Para tanto, devemos fazer bom uso de todas as ferramentas que viabilizam essa ampla compreensão.
Um livro que nos leva ao autor
A segunda consideração é que a Bíblia precisa ser vista como um livro vivo. As Escrituras não podem ser apenas um objeto de estudo, mas devem ser apropriadas como a Palavra dinâmica de um Deus que continua falando. Para isso, é necessário “tomar a distância apropriada” do texto para poder “ouvi-lo como se fosse a primeira vez”, questionando pressupostos, buscando a compreensão da história como um todo, e finalmente, deixando a Bíblia falar. A tarefa de interpretação bíblica só fará sentido se dermos condições ao texto de falar por si mesmo.
Em outras palavras, começamos a interpretar a Bíblia com o intuito final de deixar que ela nos interprete de volta. A palavra de Deus e a pessoa de Deus são inseparáveis; assim, nossa relação com a Palavra deve ser conduzida por nossa relação com a Pessoa. Devemos ler e interpretar as Escrituras com a expectativa de que ela nos surpreenda e transforme. “Pois a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4.12, NVI).
Qual é, então, a maneira correta de relacionar-se com o Livro de Deus? Creio que a resposta esteja na maneira como nos relacionamos com o próprio Deus. Devemos respeitar a maneira como ele escolheu transmitir sua mensagem e apreciá-la como ela é e não como desejamos que seja. Embora nossa tendência seja buscar na Bíblia um livro de respostas, devemos aceitar o fato de que seu propósito, às vezes, é estimular-nos a fazer as perguntas certas. Embora pareça muito mais confortável saber tudo a respeito de Deus e de sua vontade, devemos apreciar o mistério, tendo consciência de que o autor sabe exatamente o que deve revelar de si.
É maravilhoso saber que o resultado de tal postura é sempre maior intimidade com o autor. Por mais limitado que seja nosso conhecimento de Deus, a busca por conhecê-lo é sempre recompensada pela sensação de estar mais próximo dele. Quando leio o manual do fabricante de um equipamento eletrônico, apesar de saber muito sobre o produto, continuo sem conhecer o fabricante. Quando leio o livro de Deus, apreciando todas as suas cores e nuances, a beleza do enredo e o ritmo da história, sou envolvido pelo amor daquele que sempre escreveu a história em parceria com a humanidade. Assim, sinto-me convidado a continuar escrevendo com ele até que ele ponha o ponto final – ou continue escrevendo numa próxima etapa ainda mais emocionante!
Uso de fontes secundárias
Na tarefa de ler e interpretar as Escrituras, o uso de ferramentas como Bíblias de estudo, comentários e dicionários bíblicos é muito enriquecedor se feito com discernimento. A Bíblia é um livro extremamente rico, e os diversos insights de pessoas que se dedicam exclusivamente a estudá-la podem trazer à tona aspectos não tão óbvios para leitores com determinadas pressuposições que tendem a reduzir o escopo da interpretação.
No entanto, todas as ferramentas devem ser entendidas como fontes secundárias. Nada substitui a leitura independente e autônoma das Escrituras pela qual o leitor tem sua própria experiência com o texto, guiado pelo Espírito. Como regra geral, as ferramentas devem ser usadas depois de um longo período de reflexão direta sobre o texto. Outro cuidado que deve ser tomado em relação aos materiais secundários é que eles devem ser variados. Nunca se deve consultar apenas uma fonte, mas diversas e, de preferência, com inclinações interpretativas diferentes. Assim, o leitor é exposto a várias abordagens e pode comparar suas próprias impressões com essas fontes, estabelecendo criteriosamente quais são as que mais parecem fiéis à intenção original do autor.
Um fator importante a ser considerado ao escolher tais referências é observar se elas levam os aspectos históricos a sério e se procuram comentar o texto da forma mais imparcial possível. Obviamente, cada comentarista trará consigo as pressuposições de sua tradição, mas aqueles que têm a evidente preocupação de impor pressupostos teológicos sobre o texto devem ser evitados.
Deve-se estar atento também a inovações interpretativas. É certo que novos insights podem surgir à medida que pessoas têm suas próprias experiências com as Escrituras estimuladas por seus contextos socioculturais. No entanto, é importante que tais interpretações tenham alguma continuidade com o que homens e mulheres de Deus vêm dizendo ao longo da história. Toda interpretação de um texto bíblico deve operar dentro dos limites da ortodoxia cristã.
No caso das Bíblias de estudo, ter uma alternativa confiável para rápidas checagens ao ouvir um sermão ou estudo bíblico é viável, mas, para o estudo pessoal mais aprofundado, elas devem ser tratadas sempre como material secundário. Nesse caso, é recomendável uma ampla consulta de várias outras fontes, principalmente comentários bíblicos conceituados que trabalham o texto de forma mais detalhada.
Outro cuidado a ser tomado é com a imensa variedade de Bíblias de estudo segmentadas – aquelas que aplicam a Bíblia a segmentos específicos (Bíblia da Mulher, do Homem, de Negócios, etc.). Embora muitas sejam benéficas e sérias, existem aquelas que são tendenciosas, “forçando” o texto a ser aplicado a determinado segmento.
Em resumo, deve-se partir de sua própria experiência com o texto bíblico sob a direção do Espírito, conferindo suas considerações posteriormente com uma extensa variedade de fontes secundárias.