Pedro Arruda
Dinheiro – um perigoso inimigo sempre pronto para atacar
Um dos assuntos mais polêmicos que sempre se faz presente na vida do cristão é sua relação com o dinheiro. É de tal importância que Jesus relacionou o dinheiro a um deus denominado Mamom. Era um fator presente no ministério de Jesus e, sendo a preocupação principal de um de seus discípulos, contaminou-o a ponto de levá-lo a trair seu Mestre. Já na igreja primitiva, bastou um descuido de Ananias e Safira para ressurgir com força total, mostrando que não era um inimigo eliminado, mas apenas adormecido, esperando uma oportunidade para tomar conta da situação.
Embora não gozasse de muita fama durante o período apostólico, havendo até quem reclame de que o Novo Testamento não fale sobre dízimo, no período seguinte, o da Patrística, esteve muito em moda. Os pais da Igreja escreveram bastante para exortar os ricos a fim de minimizar as diferenças socioeconômicas entre os cristãos. Em linhas gerais, discorriam teologicamente sobre o fato de que Deus, como único criador de todas as coisas, também é o único legítimo proprietário de todas elas e, por sua infinita bondade, disponibilizou-as em quantidade suficiente para o uso de todos os homens. Logo, quando há falta para alguém, é porque a porção dele foi subtraída por outro.
Para atualizar esse raciocínio, podemos considerar que, estando o sol e o ar disponíveis para todos, seria um absurdo considerar que alguém pudesse capturar a energia solar ou o ar para comercializá-los. Contudo, estamos vivenciando um processo idêntico em relação à água sem dar conta do que está acontecendo. Um produto natural, que era fornecido gratuitamente por quem o detivesse, está passando a ser considerado de propriedade privada, podendo ser comercializado de forma absolutamente natural.
Assim também ocorreu com a terra, quando alguns ocupantes dela foram os primeiros a iniciar o processo de posse pessoal, sendo logo seguidos de outros. A propriedade privada tornou-se algo tão comum que julgamos que o mundo sempre foi assim, desde o início, como parte do propósito de Deus. Entretanto, isso veio a criar a desigualdade social que se está tornando cada vez mais aguda. Ou seja, poucos possuem cada vez mais, e muitos, cada vez menos. Isso é o resultado do programa de governo do príncipe deste mundo!
Esses primeiros teólogos, os quais mais tarde Tomás de Aquino corroborou, insistiam em afirmar que os cristãos deveriam praticar esmolas constantemente. Não era uma questão, como hoje, de dar algumas moedinhas a uma criança no semáforo, mas implicava em partilha de bens. As esmolas eram classificadas em duas categorias: as de justiça e as de caridade. Quando alguém dava daquilo que lhe era excedente, estava praticando uma esmola de justiça, como se reconhecesse que estar de posse de algo desnecessário equivalia a ter em seu poder aquilo que pertencia ao pobre. Já a esmola de caridade era assim considerada quando o que se partilhava era algo necessário à própria existência.
O dinheiro também estava na motivação da vocação dos pais do deserto. Estes abriam mão de tudo o que possuíam a favor dos pobres e se internavam no deserto, dando origem, assim, aos monastérios.
Da mesma forma, o dinheiro estava no epicentro da origem da Reforma Protestante, devido à forma de angariá-lo para a construção de um edifício eclesiástico. Embora tenha sido o motivador de protestos, hoje o dinheiro está confortavelmente instalado entre a maioria dos sucessores dos protestantes originais, constituindo-se em objeto de desejo entre eles – haja vista o sucesso que faz a chamada Teologia da Prosperidade.
Naquela época, fazia-se a coleta de recursos a favor da instituição. Hoje, porém, entre os descendentes da Reforma, há muitos que buscam obter recursos para o patrimônio pessoal, apoiados pela organização da qual são membros. Coerentes ao ensinamento, os líderes e suas instituições apresentam-se financeiramente prósperos e opulentos, para se posicionarem como exemplos aos fiéis. Assim, esses descendentes da Reforma colocam o dinheiro novamente em evidência.
Na igreja primitiva, havia duas situações aparentemente contraditórias que explicavam seu estilo de vida. No livro dos Atos dos Apóstolos, lemos que os fiéis vendiam suas propriedades e entregavam os recursos obtidos aos apóstolos. Contudo, dois desses apóstolos afirmaram, a um pedinte de esmolas, que não possuíam ouro nem prata. Sabemos que aquela igreja não despendia recursos para sua manutenção institucional, e que tudo era utilizado para suprir as necessidades dos pobres. Logo, adotavam a prática que Jesus ensinara ao jovem rico: vender tudo e dar aos pobres. Não temos no próprio Jesus um exemplo de líder próspero financeiramente. Nunca se discute a medida da riqueza de Jesus, mas sim a de sua pobreza.
A igreja como exemplo de administração financeira
Na maioria dos exemplos contemporâneos, em que há significativa concentração de recursos na instituição influenciando o estilo de vida dos líderes e liderados, constata-se a falta do hábito saudável de prestação de contas. A constante busca de uma vida mais abastada acaba por desvalorizar a devida transparência e responsabilidade fiscal.
Em muitos casos, nada é feito. Em outros, a prestação de contas é meramente uma formalidade documental segundo a qual os membros dos conselhos são constrangidos a assinar em confiança os documentos que lhe são apresentados. Nesses casos, qualquer solicitação de informação adicional é vista com total desconfiança, e o curioso passa a ser marginalizado. Muito distante está a possibilidade de submeter as contas da instituição a uma auditoria independente.
No meio eclesiástico, comete-se o mesmo erro que há entre a maioria dos empresários que fracassa em seus negócios: o de misturar as finanças da empresa com as pessoais. Há um equivocado acúmulo de poder, atribuindo o papel de principal administrador ao líder mais carismático que é o melhor pregador e, muitas vezes, o fundador da instituição. Essa situação constitui-se numa enorme dificuldade para uma administração colegiada e imparcial.
Ainda que amparado por conselhos e diretorias, esse líder acaba, na prática, exercendo uma gestão individual que, a seu ver, parece ser transparente. A eleição de tais conselhos e diretorias serve apenas de referendo dos nomes indicados e articulados pelo gestor principal. Os eleitos, por sua vez, têm o compromisso implícito de retribuir a confiança que lhes foi depositada pelo gestor, ratificando documentalmente as suas ações.
No momento em que muito se fala de ética na administração privada e, principalmente, na pública, seria uma grande oportunidade da igreja, como representante de outro setor, dar exemplo aos demais.
A verdadeira transparência vai além de atender os ditames burocráticos da legislação, diante da qual todos devem sentir-se confortáveis e sem constrangimentos. Às vezes, são produzidos relatórios técnicos tão detalhados e difíceis de decifrar que desestimulam sua análise até por profissionais, quanto mais pelo leigo. Suas apresentações são feitas de maneira superficial e apressada em assembleias compostas, na maioria, por desinteressados ou com a vaga informação de que os documentos já aprovados estão à disposição de quem quiser examiná-los. Entretanto, fica subentendido que tal pretensão será tomada como indicador de desconfiança e discordância prévia, colocando em dúvida a comunhão espiritual.
Essa transparência não se baseia apenas em conceitos legais ou éticos, mas nasce de um coração limpo e desejoso de quem nada tem a esconder, nada de que se envergonhar ou se constranger por alguma decisão tomada; de quem não precisa elaborar estratégias para apresentar o relatório financeiro. Antes, tem prazer em tornar público o bom uso dos recursos que os contribuintes deram como sendo ao Senhor.
A administração financeira da igreja nunca pode deixar de levar em consideração que seu montante é composto por valores que, embora vultosos, podem significar pouco aos bolsos dos ofertantes. Ao mesmo tempo, porém, há aqueles que, a exemplo da viúva pobre do evangelho, depositaram o valor das refeições que jejuaram ou do transporte público que deixaram de tomar para poder entregar o pouco que tinham para o Reino de Deus.
A lição de Malaquias
Um dos textos preferidos dos pregadores para falar sobre finanças encontra-se no livro do profeta Malaquias (especificamente 3.8-12). A argumentação estende-se para o cotidiano, afirmando que, por sonegar o dizimo à igreja, o fiel colherá maldições, gastando esse dinheiro com médicos, remédios, mecânicos e outros.
Contudo, ao verificarmos com mais profundidade esse livro, notamos que ele tem como objetivo corrigir a intenção do coração. Trata-se de uma denúncia contundente da hipocrisia daqueles que reduzem o relacionamento com Deus ao formalismo religioso, ao mesmo tempo em que agem de maneira contrária em outros aspectos da vida. Isso pode ser percebido ao fazermos uma leitura completa do livro.
Até a execução dos rituais religiosos era feita como um mero cumprimento de obrigações. Com essa atitude, ofereciam o animal defeituoso e poupavam o melhor do rebanho. Valorizavam, assim, mais o rito e não se sentiam constrangidos em ludibriar a Deus, como se isso fosse possível. Uma vez cumprido o ritual, sentiam-se desobrigados e adotavam um estilo de vida desvinculado de qualquer compromisso com Deus. Por desprezarem a Deus, tornaram-se infiéis, também, no relacionamento conjugal. O modo de vida deles não se diferenciava do dos ímpios. No mesmo livro que fala de dízimo e oferta, está explícito, também, que Deus odeia o divórcio e denuncia a forma desprezível como os levitas tratavam as ofertas e o altar.
Portanto, se aplicarmos todo o conteúdo do livro de Malaquias aos dias de hoje e não pinçarmos apenas os versículos que contêm as expressões dízimo e oferta, veremos que se trata de uma exortação para que todos os cristãos adotem uma atitude correta de coração. O que Deus queria (e quer) era que seu povo o cultuasse com alegria, e não como obrigação religiosa, imaginando que apenas o cumprimento de determinados rituais os deixaria livres para viver da maneira que bem lhes parecesse. Importante é notar que o clero não estava excluído da exortação, sendo a atitude deles uma das principais causas do desleixo do povo. Em outras palavras, se os sacerdotes fossem zelosos, o povo não teria chegado àquela situação.
Assim, antes de aplicar um sermão ameaçador de que os faltosos com os dízimos estão prestes a contrair enfermidades de alto custo, os líderes devem sempre examinar se não são eles mesmos que estão provocando o desestímulo aos contribuintes em função da maneira como administram os recursos obtidos com as ofertas e os dízimos. No livro de Malaquias, os sacerdotes estavam entre os primeiros a receber a exortação, o que dá uma ideia de que foram eles que provocaram aquela situação, numa sequência de causa e efeito semelhante ao ato de derrubar a primeira peça da fileira de dominós. Muito cuidado, portanto: a acusação ao povo pode se constituir numa acusação a si mesmo.
“Deus não fez alguns ricos e outros pobres. A terra é toda do Senhor, e os frutos têm de ser comum para todos. As palavras “meu” ou “teu” são motivo e causa da discórdia. A comunidade dos bens é a forma de existência mais adequada à natureza do que a propriedade privada. Sendo que a terra é um dom de Deus, então, é comum a todos. Como é possível que você tenha tantos hectares e que o teu próximo não tenha nada?” (São João Cristóstomo em Homilia a 1 Timóteo XII, 4)
“Como são comuns o sol e o ar, e tudo o que vem de Deus é graça e bênção comum, assim, do mesmo modo, oferecia-se voluntariamente a um qualquer a participação do bem e não se conhecia a paixão da avareza. Se alguém tivesse menos, não odiava quem tivesse mais, porque de forma nenhuma existia quem tivesse mais” (São Gregório de Nissa, citado em Por que a Igreja critica os ricos?, de Guilhermo Múgica e Juan Leuridan, Edições Paulinas).
“Não é mal que somente uma pessoa desfrute dos bens do Senhor e só ela goze do que é de todos? Ou, por acaso, não pertencem ao Senhor a terra e tudo o que ela contém? Logo, tudo o que temos pertence ao Senhor comum e, portanto, aos que, como nós, somos seus servos. O que pertence ao Senhor pertence a todos” (São João Crisóstomo em Homilia sobre a primeira epístola aos coríntios).