Por Roy Hattersley
Testemunho de um Ateu
Ao ler o subtítulo acima, deve ter pensado: “Que bom! Um ateu se converteu e está contando seu testemunho!” Infelizmente, não. O testemunho citado nesta reportagem, publicado no dia 12 de setembro de 2005 no jornal britânico The Guardian, é de um ateu ainda convicto. No entanto, por essa mesma razão, torna-se ainda mais valioso. É o testemunho que um ateu dá a respeito dos cristãos.
Em sua frase introdutória, Roy Hattersley afirma o seguinte: Nós ateus somos obrigados a admitir que a maioria dos crentes (religiosos) são seres humanos melhores.
O assunto em questão era o furacão Katrina (que castigou a região do Golfo do México no final de agosto de 2005) e a rapidez com que o público em geral perde interesse e disposição em ajudar. Um apelo da Cruz Vermelha por voluntários havia sido ignorado quase por completo. Sofrimento e miséria ininterruptos não fazem manchetes. Tampouco ganha espaço na mídia a execução monótona de tarefas desagradáveis para aliviar a dor e a angústia dos idosos, dos enfermos e dos sem-teto – tarefas nas quais o Exército de Salvação, por exemplo, é especialista.
De acordo com a observação de Hattersley, quase todos os grupos engajados no trabalho com as vítimas de desastres naturais possuem uma origem e um cunho religiosos. Com ausência notória no meio dessas equipes estão os representantes de “sociedades racionalistas, clubes de pensadores independentes e associações ateístas – o tipo de pessoa que não só zomba do absurdo intelectual da religião mas também a considera uma verdadeira força em favor do mal”.
Os argumentos desses grupos contra a religião são bem conhecidos e possuem um elemento de persuasão, pela sua fundamentação aparente nos fatos. Quantos conflitos sangrentos tiveram origem no dogmatismo religioso, como na Irlanda do Norte, por exemplo. Os cientistas que estão buscando curas para doenças letais são barrados por preconceitos contra pesquisas com células-tronco, impedindo assim a descoberta de soluções para toda a humanidade.
“Na semana passada”, conta Hattersley, “um oficial do Exército de Salvação, que deixou um emprego bem remunerado para devotar sua vida aos pobres, tentou me convencer de que a homossexualidade é um pecado mortal.” Para o ateu, esse era um paradoxo de difícil compreensão.
“Tarde da noite”, Hattersley continua, “nas ruas das nossas grandes cidades, esse homem oferece amizade e apoio aos seres humanos mais degradados e degenerados (de acordo com aqueles que têm uma mente preconceituosa) que vivem além das fronteiras da nossa sociedade. E ele faz o que acredita ser seu dever cristão sem o menor indício de desaprovação. Contudo, durante grande parte do seu tempo, está suprindo necessidades causadas por condutas que ele considera intrinsecamente pecaminosas.”
Gente civilizada, segundo Hattersley, não acredita que dependência em drogas e prostituição homossexual ofendam ordenanças divinas. No entanto, as pessoas que acreditam que essas práticas são condenadas por Deus são as mais dispostas a trocar os curativos malcheirosos, a substituir os colchonetes encharcados e a oferecer, com infinita paciência, uma forma de tratamento para mudança de vida. E, depois, o nosso ateu bem informado cita John Wesley quando disse que boas obras não são nenhuma garantia de uma passagem para o céu. Por outro lado, são mais freqüentemente praticadas por pessoas que acreditam que o céu existe.
“A ligação é tão clara que é impossível duvidar que fé e caridade [obras sociais] vão de mãos dadas. A relação íntima pode ter algo a ver com a convicção de que todos somos filhos de Deus, ou pode ser resultado de uma crença primitiva de que, embora ajudar aos outros não traga garantia alguma de salvação, é prudente ter o nome registrado num livro dourado como ‘alguém que ama seus semelhantes’. Seja qual for a razão, são os crentes que atendem ao chamado, e não apenas os do Exército de Salvação. Quando eu era vereador, membros de uma ordem de irmãs católicas, lá no outro extremo do espectro teológico, lavavam roupas para mulheres enfermas de bairros carentes que não tinham saúde para fazer o próprio serviço.”
“Deveria ser possível”, diz Hattersley, “viver uma vida cristã sem ser cristão ou, melhor ainda, pegar elementos do cristianismo à la carte. A Bíblia é tão cheia de contradições que poderíamos aceitar ou rejeitar seus conselhos morais conforme nosso gosto. No entanto, homens e mulheres que, como eu, não conseguem aceitar os mistérios e os milagres da Bíblia não saem à noite para ajudar os necessitados junto com os integrantes do Exército de Salvação.”
“A única explicação possível é que a fé vem junto com um pacote de imperativos morais que, embora não condicionem a atitude de todos os crentes, influenciam um número suficiente para torná-los moralmente superiores a ateus como eu. A verdade [ateísta] pode nos libertar [de preconceitos e absurdos racionais]. Mas não nos tornou tão admiráveis como até o participante mediano do Exército de Salvação.”
Adaptado de um artigo publicado no jornal britânico “The Guardian”, de 12 de setembro de 2005: www.guardian.co.uk.