RAÍZES – LIÇÕES DA HISTÓRIA DA IGREJA PARA OS NOSSOS DIAS
O Ministério da Mulher nos Primeiros Séculos da Igreja
Uma das coisas que mais impressiona o estudioso do passado é constatar que no meio de todas as circunstâncias e aspectos culturais daquelas épocas tão distantes da nossa realidade moderna, os conflitos e dilemas que ocupavam as mentes e literaturas não eram muito diferentes desses que temos hoje.
No caso do tema desta edição da Impacto, até esperaríamos que os dois mil anos de história da igreja representassem um abismo enorme entre o tratamento e participação da mulher na primeira igreja, e o que vemos hoje. Afinal, seu papel na sociedade mudou radicalmente de lá para cá.
Sem desconsiderar estas mudanças que inegavelmente encontram seus reflexos na igreja, o fato é que a igreja dos primeiros séculos tinha as mesmas perguntas e os mesmos partidos (aqueles que são a favor, aqueles que são contra, os radicais e os moderados) que existem hoje em torno do papel da mulher no plano de Deus. E acima de tudo, havia mulheres, como em todas as outras épocas da história, que superaram os obstáculos e cumpriram sua alta vocação apesar dos preconceitos e da resistência que enfrentaram ao seu redor.
É sempre bom observar que quando comparamos a igreja primitiva com a igreja contemporânea, precisamos saber com qual parte da igreja atual estamos comparando, já que hoje existem alas muito conservadoras que resistem a qualquer espécie de mudança, outras tão liberais que acompanham tudo que acontece no mundo sem muita preocupação com o padrão da Palavra de Deus, e ainda outras que representam todos os estágios intermediários entre os dois extremos.
Quem é contra a participação ativa da mulher na igreja encontra textos e fatos históricos que comprovam esta posição; de maneira semelhante, quem quer encontrar exemplos de mulheres que se destacaram em diversas funções e ministérios os achará sem problema algum. Somente quem está disposto a ver o quadro todo de forma imparcial poderá adquirir uma visão equilibrada.
Outra observação importante é que sempre é possível encontrar, tanto na história como na própria Bíblia, evidências que ajudam a confirmar nossas idéias já preestabelecidas. Assim, quem é contra a participação ativa da mulher na igreja encontra textos e fatos históricos que comprovam esta posição; de maneira semelhante, quem quer encontrar exemplos de mulheres que se destacaram em diversas funções e ministérios os achará sem problema algum. Somente quem está disposto a ver o quadro todo de forma imparcial poderá adquirir uma visão equilibrada.
Neste pequeno espaço, tentaremos expor alguns fatos a respeito da igreja dos primeiros séculos para ajudar a obter uma perspectiva histórica do assunto.
No Novo Testamento
Como sabemos, existem pouquíssimos documentos confiáveis sobre a igreja do primeiro século além do Novo Testamento. E o próprio Novo Testamento não foi escrito para detalhar o padrão estrutural da Igreja, mas para mostrar de onde vem sua vida, e qual sua chave de existência espiritual, já que é possível seguir à risca todas as regras e normas de uma igreja ideal sem ter vida ou conteúdo algum.
Assim, não encontramos uma seção específica no Novo Testamento que define exatamente qual a diferença entre as funções do homem e da mulher na igreja ou no plano de Deus, e o que a mulher pode ou não pode fazer. O que existe são conselhos e exortações sobre situações concretas que surgiram nas igrejas e que necessitavam de correção. É exatamente aí que vemos alguns dos mesmos conflitos que existem até hoje, e que surgem da diferença entre o homem e a mulher no seu propósito original.
Observando os relatos e cartas do Novo Testamento, descobrimos que as mulheres:
• Exerciam dons espirituais (At 2.17,18; 21.9; 1 Co 11.5);
• Oravam em público (1 Co 11.5,13);
• Estavam presentes (às vezes com mais destaque do que os homens) em ocasiões importantes e marcantes como a crucificação (Jo 19.25; Mc 15.40,41), e ressurreição de Jesus (Jo 20.1,11-18), na espera para a vinda do Espírito (At 1.13,14), e na perseguição (At 8.3);
• Acompanhavam equipes ministeriais, como no caso de Jesus (Lc8.1-3; Mt 27.55,56; Mc 15.40,41), para servir e até ajudar com seus recursos materiais;
• Faziam parte de casais que ministravam juntos, às vezes com mais destaque para a mulher do casal, como no caso de Priscila e Àquila (Atos 18.26, e Romanos 16.3,4, onde aparece primeiro o nome dela, dando a entender que ela era mais ativa do que ele no ministério), e Andrônico e Júnias, que talvez não eram um casal, mas eram parentes de Paulo, eram “notáveis entre os apóstolos”, e mais antigos na fé do que Paulo (Rm 16.7);
• Destacavam-se no ministério prático de servir e ajudar os necessitados (como no caso de Dorcas, Atos 12.37-39, Febe que servia à igreja de Cencréia, Rm 16.1, e várias outras mencionadas neste capítulo, como por exemplo Maria que “muito trabalhou por vós”, v. 6);
• Hospedavam a igreja em suas casas, como a mãe de Marcos (At 12.12), e Lídia (At 16.40).
Destaques nos Primeiros Séculos
Não temos estatísticas da proporção entre homens e mulheres na igreja, mas duas observações no segundo século (uma delas feita por um crítico do cristianismo) mostram que naquela época também havia mais mulheres do que homens na igreja. O Bispo Cipriano, de Cartago, escreveu sobre o fato de que as moças cristãs, por serem mais numerosas, tinham dificuldade em encontrar maridos cristãos.
Nas classes sociais mais altas, muitas mulheres influentes se convertiam, enquanto seus maridos ou parentes do sexo masculino não as acompanhavam com medo de perder seu status senatorial. Há exemplos da conversão desta classe de mulher no livro de Atos (At 16.13,14; 17.12,34). Algumas destas mulheres se esmeraram no estudo da Bíblia, e das línguas originais, grego e hebraico, sendo elogiadas por pessoas como Jerônimo, historiador e tradutor das Escrituras para o latim, do quarto século, e Agostinho no quinto.
Um grupo de mulheres que tinha uma importância especial na igreja daquela época eram as viúvas. Como era costume os homens mais velhos se casarem com mulheres muito mais novas, elas freqüentemente ficavam viúvas numa idade ainda muito jovem. O Novo Testamento já fala a respeito de como cuidar destas viúvas (1 Tm 5.3-16).
Como eram sustentadas pelas ofertas da congregação, era natural que elas também se envolvessem no trabalho da igreja, e com o passar do tempo o termo viúva passou a representar uma espécie de ordem ministerial dentro da igreja, semelhante a uma diaconisa. Entre aquelas que se tornaram conhecidas na história, houve algumas de posses e posição mais alta que ficaram viúvas muito jovens, e que resolveram dedicar seus recursos e o restante de suas vidas para a causa de Deus. Como exemplos, podemos citar Marcela e Paula, contemporâneas e companheiras de Jerônimo do quarto século, e Antusa, mãe de João Crisóstomo.
Muitas destas viúvas, como também outras que não eram viúvas, se dedicaram a visitar os doentes, idosos, e necessitados, no ministério prático e compassivo que tanto caracterizou a igreja primitiva. A disposição e disponibilidade das mulheres em servir já foi citada também no Novo Testamento, como vimos em Romanos 16. Finalmente, as mulheres cristãs dos primeiros séculos se destacaram poderosamente como mártires.
Evidentemente temos relatos apenas de algumas, mas podemos citar Blandina no segundo século que deu um exemplo tremendo de vitória e resistência, passando por severas torturas e sofrimentos e ao mesmo tempo encorajando os outros cristãos que junto com ela aguardavam a morte. Sua atitude não era de desespero, mas de grande entusiasmo e expectativa, como quem foi convidada para a festa do casamento e não para o martírio. Outro exemplo conhecido é de Perpétua que deixou escritos relatando seus últimos dias, e que deixou um bebê recém-nascido e um pai não convertido que suplicava para que negasse a fé e salvasse sua vida.
Mulheres, Dons do Espírito e a Perda de Espontaneidade
Para ajudar a entender o que aconteceu em relação à participação da mulher na vida e ministério da igreja a partir do segundo século, existem alguns documentos que eram uma espécie de manual de disciplina, com normas e definições de ritual e prática. Foram escritos para tentar proteger a igreja de extremos e doutrinas erradas, mas traçam a trajetória da igreja pelo caminho de progressiva estruturação e perda da vida e comunhão espontâneas. Aquilo que o Espírito Santo deixou de fora do Novo Testamento, para que regras e normas não viessem a sufocar e substituir a verdadeira fonte de vida na igreja, o homem rapidamente foi colocando, e pouco a pouco a igreja foi se afastando da sua base original.
O curioso é que, mesmo perdendo o verdadeiro conteúdo e essência da mensagem apostólica, estes documentos procuravam sempre provar a autoridade do seu sistema, afirmando ter vindo direta ou indiretamente dos apóstolos.
Estes documentos são, em ordem cronológica, o Didaquê, provavelmente escrito durante o segundo século, a Tradição Apostólica, do começo do terceiro, a Didascália Apostolorum, de meados do terceiro século, os Estatutos dos Apóstolos, do início do quarto século, e o Octateuco de Clemente, e o Testamento do nosso Senhor, do quinto.
Embora já mostrando o início da regulamentação da igreja, o Didaquê revela uma igreja que ainda reconhecia a autoridade do Espírito Santo através dos ministérios da palavra, os apóstolos, profetas e mestres. Não havia nenhum rito de ordenação destes ofícios, portanto, sua autoridade vinha do Espírito Santo, e era reconhecida pela igreja, mas não transferida ou conferida por ela. A preocupação era sobre como discernir e distinguir entre verdadeiros e falsos ministros.
A questão da participação de mulheres nesta liderança não foi tratada neste documento, indicando que ainda não era uma controvérsia naquela época.
No terceiro século, de acordo com a Tradição Apostólica, a estrutura de autoridade já tinha mudado. Os cargos superiores na igreja não eram mais os ministérios da palavra, mas os ministérios eucarísticos, ou seja, aqueles que presidiam e oficiavam os principais rituais como a ceia do Senhor e o batismo. Estes cargos eram instituídos através de um rito específico de ordenação, facilitando assim a tarefa de saber quem tinha direito de exercer autoridade na igreja. Como havia requisitos definidos para ocupar estes cargos, muitas pessoas foram excluídas, entre elas viúvas, solteiros e solteiras.
A partir de meados do terceiro século, de acordo com a Didascália, a questão da mulher estava mais e mais evidente, indicando que as funções exercidas comumente por elas, como visitação, evangelização, ensino e pregação, estavam causando controvérsias na igreja. Este manual procura limitar severamente as atividades da mulher, tanto como esposa, como nas suas funções ministeriais, visando principalmente corrigir a má impressão que suas funções públicas poderiam causar na sociedade grega onde a mulher deveria ter um perfil mais reservado e não aparecer ou se destacar em reuniões ou atividades coletivas.
Esta tendência continua no quarto século, com os Estatutos dos Apóstolos, onde a mulher também não podia ser uma ministra eucarística, e ficava praticamente restrita a trabalhar em obras sociais ou de assistência a pobres e doentes.
Já nos documentos do quinto século, a igreja parece ter encontrado uma certa solução para o problema de como definir a função da mulher, permitindo que ela ensinasse ou evangelizasse os pagãos e os recém-convertidos, e que visitasse e instruísse outras pessoas, desde que em todos esses casos, fosse para outras mulheres.
O que podemos concluir de tudo isso? Na liberdade e espontaneidade da igreja de Atos e do primeiro século, a mulher encontrou uma liberdade de ação e expressão muito além daquilo que tinha no lar ou na sociedade daquela época. Como sabemos pelas cartas de Paulo, esta liberdade deu origem a vários problemas, entre os quais a tendência de esquecer a diferença das funções distintas do homem e da mulher, que continuarão existindo até o dia da plenitude do reino de Deus.
Mas este problema da mulher ir além da verdadeira liberdade que tem em Cristo, e entrar na carne, é só um aspecto entre vários outros que surgem quando se dá liberdade para o Espírito Santo.
A igreja de Corinto tinha riqueza de conhecimento, palavra e dons (1 Co 1.5-7), mas estava cheia de problemas. No entanto, Paulo não recomendou que se proibisse o uso dos dons (1 Co 14.39), nem que se elaborasse um manual de regras, ou que se estabelecesse requisitos para ver quem podia exercitar os dons. Pelo contrário, deu princípios, mostrou o que era para edificação e o que não era, o que era do Espírito e o que não era, e mandou continuar buscando com zelo os melhores dons.
Da mesma maneira, quando tratou da participação da mulher, ele mostrou a cadeia de autoridade que vem de Deus para Cristo, e de Cristo para o homem, e do homem para a mulher (1 Co 11.3), e quais as implicações disso para o funcionamento de dons na igreja. Mas não proibiu a participação da mulher nas reuniões como fica claro quando se examina todo o contexto desta passagem e das outras cartas.
Portanto, o que aconteceu com o ministério da mulher nos primeiros séculos da igreja foi exatamente o que aconteceu com os dons. O Espírito Santo foi derramado conforme profecia de Joel sobre toda a carne, filhos e filhas, servos e servas, e todos passaram a profetizar e a ser canais da vida sobrenatural de Jesus. Junto com o derramamento vieram os problemas por causa da mistura com a natureza carnal do homem, mas inicialmente com a cobertura de apóstolos e profetas que tinham a Palavra viva encarnada neles num grau muito maior, estes problemas eram corrigidos e o fluir do Espírito podia continuar.
Com o desaparecimento destes ministérios fundamentais da igreja, os manuais e conjuntos de normas substituíram-nos como solução de problemas na igreja, mas o resultado foi o desaparecimento da espontaneidade da vida do Espírito. Com isto, iniciou-se o ciclo de erros e extremos sobre o ministério de mulheres que representam as únicas duas opções para uma igreja sem sua essência fundamental: por um lado, para se proteger contra os perigos de mulheres exercendo os dons sem a devida cobertura, ou tentando ser iguais aos homens e usurpando suas funções de autoridade, a igreja se fechava para a contribuição delas, e tirava quase toda sua liberdade de agir; ou por outro lado, sentindo a falta da sua contribuição e a pobreza que resulta de não aceitar seus dons, a igreja se liberalizava completamente e perdia qualquer distinção de propósito entre o homem e a mulher e seus papéis no plano de Deus.
O perigo da mulher usar os dons do Espírito, sem estar na cadeia de vida exposta em 1 Coríntios 11.3, pode ser visto em diversas épocas da história. Já no segundo século, o montanismo procurou voltar para a vida do Espírito e o exercício dos dons que a igreja estava perdendo. Apesar do seu objetivo válido, e do desejo de sair do formalismo e enfatizar mais a Segunda Vinda de Cristo, muitas revelações e profecias não foram confirmadas, e o movimento como um todo foi rejeitado pelo restante da igreja. A fonte destas revelações além do próprio fundador, Montano, foi de duas profetisas, Maximila e Priscila, que diziam que depois delas não haveria mais profetisas, mas que logo viria o fim.
No século XX, com o derramamento do Espírito em diversas ondas por todo o mundo, este perigo voltou a se manifestar inúmeras vezes. E não só através de mulheres, embora a sua sensibilidade e abertura para os dons do Espírito as torne alvos mais comuns deste tipo de problema.
Uma maneira fácil de eliminar manifestações espúrias dos dons do Espírito é regulamentar e limitar de tal maneira a ordem do culto que não haja mais dons. Na verdade, mesmo nas igrejas consideradas avivadas ou pentecostais, raramente há alguma manifestação espontânea de dons do Espírito. Da mesma maneira, o método mais fácil de não deixar a mulher sair da sua esfera de ação é não deixar que aja. No mundo moderno, onde não fica bem colocar estes limites, tenta-se resolver a questão fazendo de conta que não existe nenhuma diferença de esfera entre o homem e a mulher.
Mas se quisermos realmente voltar à liberdade do Espírito, onde Jesus estará presente em todo o seu poder, teremos que aceitar os dons e a contribuição das mulheres, ao mesmo tempo em que enfrentamos nossa mistura humana em exercer os dons e nossa carnalidade em confundir a diferença de papéis do homem e da mulher no plano de Deus.
Fonte de Pesquisa: “Christian History”, Nº 17.
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” ENTRE ASPAS “
“Você nunca conseguirá se livrar dos seus próprios problemas, a não ser que tome sobre si os problemas dos outros.”