Paul Brand
1914 – 2003
O nome Paul Brand talvez não lhe soe muito familiar. Seus livros e sua obra não chegaram a ser muito divulgados aqui no Brasil. Entretanto, foi uma das grandes influências na vida de um outro autor bem mais conhecido no mundo literário cristão: Philip Yancey.
Quando o caminho dos dois se cruzou pela primeira vez, Yancey era um jovem de aparência punk que tinha pouco mais de vinte anos de idade, muitas feridas causadas pelas suas experiências de igreja, e uma porção de dúvidas e inseguranças sobre sua fé. Paul Brand, por outro lado, era um respeitado cirurgião de cabelos grisalhos, com o porte reservado característico dos britânicos.
Para Yancey, que perdera o pai quando tinha apenas um ano de idade, Brand passou a preencher este lugar vazio em sua vida. Os dois tiveram muitas longas conversas durante os aproximados dez anos em que trabalharam juntos e produziram três livros. À medida que Yancey ajudava Brand a encontrar um meio para se expressar na página impressa, Brand ajudava Yancey a encontrar sua fé. Sentindo as injustiças do mundo e tentando compreender as perplexidades insondáveis da teologia, Yancey olhava para Brand e via nele um exemplo brilhante daquilo que Deus tinha em mente no seu projeto com o homem.
“Hoje vejo o mundo em grande parte através da perspectiva dele”, diz Yancey. “Nunca conheci alguém que fosse tão brilhante e, ao mesmo tempo, tão humilde. Ninguém afetou minha fé mais do que ele. Quando se vê apenas um santo, que vive a vida cristã de verdade, é suficiente para dissipar as dúvidas, e eu tive o privilégio inestimável de passar muitas horas em viagens, visitas e conversas por telefone, examinando este homem, partícula por partícula. Ele passou no teste! Ele provou para mim que a vida cristã de que ouvira falar na teoria podia de fato ser vivida na prática. Vi que é possível alcançar sucesso sem perder a humildade, servir os outros com sacrifício e ainda ter alegria e contentamento.”
E que conversas tiveram juntos! Dr. Brand citava longas passagens de Shakespeare, explicava textos bíblicos no seu sentido original no grego e hebraico, discutia as novas e emocionantes descobertas de DNA e de outras áreas científicas, apontava com simplicidade infantil para as maravilhas dos pássaros e plantas da Índia e dos pantanais de Louisiana, nos EUA. Ele havia conhecido e consultado com algumas das grandes figuras do século passado: Albert Schweitzer, Madre Teresa, Mahatma Gandhi.
Philip Yancey fazia algumas perguntas, Dr. Brand respondia, Yancey fazia um pouco mais de pesquisa, redigia o resultado – e saía um livro! Dr. Brand achava que tinha feito muito pouco para escrever o livro; Yancey dizia que era resultado de uma vida servindo a algumas das pessoas mais humildes do planeta.
Suas Origens
Paul Brand nasceu em 1914 numa região montanhosa e primitiva no sudoeste da Índia, filho de pais missionários da Inglaterra. Seus fundamentos familiares, culturais e espirituais foram lançados neste contexto, numa casa sem eletricidade, água encanada, televisão ou rádio. O armazém da vila mais próxima ficava a mais de quinze quilômetros e a estrada de ferro a mais de sessenta.
Paul tinha acesso a poucos livros e se lembrava de ter possuído somente um brinquedo fabricado. Os demais eram feitos por ele mesmo, de madeira ou pedra. Suas descobertas do mundo vieram, não através de documentários da natureza na televisão, mas pela observação em primeira mão de maravilhas como a formiga-leão, o pintassilgo e a aranha-armadeira. No entanto, para ele, sua infância foi muito mais feliz do que a das crianças de classe média no mundo ocidental.
Com nove anos de idade, foi para a Inglaterra para estudar. Mais tarde fez medicina na London University, onde também conheceu Margaret, estudante do mesmo curso, e com quem se casou em 1943. Durante a Segunda Guerra Mundial, adquiriu sua primeira experiência como cirurgião ortopédico com pacientes paralíticos e com a restauração de mãos lesadas nas batalhas.
Trabalho Com Leprosos
Em 1946, Paul e Margaret foram para a Índia trabalhar na Faculdade Cristã de Medicina e no Hospital em Vellore. Foi ali que conheceram os mendigos leprosos, deformados, cegos e incapacitados pela doença, e sentiram a profunda angústia e o isolamento em que viviam. Resolveram dedicar suas vidas para aliviar este sofrimento.
Um outro colega desafiou Paul a usar seus conhecimentos ortopédicos para descobrir por que os leprosos tinham mãos deformadas e para achar um tratamento eficaz. Muito pouco era conhecido na época sobre a verdadeira causa das deformidades dos leprosos. Acreditava-se que as mãos e os pés das pessoas infectadas simplesmente se desintegravam ou apodreciam como resultado direto da doença.
Dr. Brand começou a pesquisar intensamente sobre mãos lesadas para testar força muscular e sensações. Havia muitos obstáculos a vencer, entre os quais um dos maiores era o preconceito e a resistência ao uso de recursos cirúrgicos nas pessoas leprosas (muitas delas provenientes da casta inferior dos “Intocáveis”), e ao seu acesso a cuidados hospitalares.
Na época, Brand era o único médico cirurgião a trabalhar entre os mais de quinze milhões de hansenianos existentes no mundo. Através das suas pesquisas no sul da Índia, Dr. Brand alterou para sempre as percepções e o tratamento de pacientes leprosos.
Primeiro, foi pioneiro da idéia revolucionária de que a perda de dedos de mãos e pés nos leprosos era causada totalmente por infecção e, portanto, passível de prevenção. Como a doença da lepra ataca principalmente o sistema nervoso, a lesão de tecidos ocorre porque o paciente não sente dor e não recebe os avisos normais – e não por causa de degeneração inerente à doença. Foi assim que Paul Brand descobriu a dádiva da dor, afirmando que a perda da sensação de dor nas partes afetadas leva as pessoas a inadvertidamente se machucarem e a se destruírem.
Em segundo lugar, como habilidoso e criativo cirurgião da mão, foi pioneiro de técnicas de transferência de tendões, abrindo todo um novo mundo de prevenção e reabilitação de pessoas vulneráveis e fisicamente inabilitadas.
No final dos anos 40, Paul Brand se tornou o primeiro médico do mundo a usar cirurgia reconstrutiva para corrigir as deformidades nas mãos e nos pés de pacientes leprosos. Ao mesmo tempo, Margaret se dedicava a pesquisar métodos de prevenção de cegueira em leprosos.
Lidando assim com a causa, até então não compreendida, das deformidades dos leprosos, Paul foi levado a sondar a questão teológica do que ele passou a considerar “o aspecto mais problemático da criação: a existência da dor”. A dor, Paul acreditava, não é um obstáculo à vida, mas um pré-requisito para ela. Deus planejou o corpo humano de tal forma que pudesse sobreviver por causa da dor.
Suas Realizações
Depois de dezoito anos na Índia, Paul e Margaret foram convidados a chefiar o setor de reabilitação no Centro Nacional de Hanseníase do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos em Carville, Louisiana. Lá desenvolveu técnicas de reabilitação, projetando sapatos e ferramentas para pacientes com insensibilidade nervosa, e iniciando o conceito de “centros de reabilitação manual”, para prepará-los para o trabalho e uma vida normal.
Dr. Paul Brand aplicou suas descobertas também a pacientes diabéticos, que têm o mesmo problema de perder a sensação de dor. Em reconhecimento a suas descobertas e trabalhos pioneiros, ele recebeu o Prêmio Albert Lasker em 1960 por sua “extraordinária liderança e serviço na reabilitação dos incapacitados”. Também foi condecorado pela Rainha Elizabeth II como “Comandante da Ordem do Império Britânico” em 1961, além de vários outros prêmios e medalhas recebidos do governo dos Estados Unidos e de diversas universidades. Serviu como Presidente da Missão Internacional de Lepra sediada em Londres e foi co-fundador do Centro de Treinamento e Reabilitação para Leprosos na Etiópia.
Eterno Admirador da Criação de Deus
Apesar de todo seu contato com dor e sofrimento, Paul Brand não ficou decepcionado com Deus nem com a maravilha da sua criação. Muito pelo contrário. Quanto mais estudava o funcionamento e os detalhes meticulosos do corpo humano, mais sua fé em Deus se fortalecia. Para ele, tudo na ciência apontava para um Criador. Nas suas palestras, sermões e livros, Dr. Brand falava da sua absoluta admiração e espanto diante do complexo e delicado desenho do corpo humano.
Como disse Isaac Newton: “Na ausência de qualquer outra prova, o polegar humano sozinho me convenceria da existência de Deus”, Paul Brand também ficava cada vez mais encantado com a perfeição do projeto divino. “Depois de 40 anos como cirurgião da mão, descobri que não há nada na natureza que se compare com a combinação de força, agilidade, tolerância e sensibilidade deste membro do corpo. Usamos nossas mãos para as atividades mais maravilhosas: para fazer arte e música, para escrever, curar e tocar.”
Como alguém que trabalhou durante tantos anos com a restauração da mão humana, e que conhecia como ninguém as tentativas de se projetar mãos mecânicas e até sistemas artificiais para substituir o sistema natural de dor, o Dr. Brand ficava cada vez mais convicto da impossibilidade de se imitar, nem de perto, o projeto original de Deus.
“Eu poderia encher uma sala de textos cirúrgicos que descrevem operações desenvolvidas para restaurar uma mão danificada: maneiras diferentes de arranjar os tendões, os músculos e as juntas, maneiras de substituir partes dos ossos e das juntas mecânicas. Mas não sei de uma única operação que conseguisse melhorar as funções de uma mão normal. É algo lindo… Não existe forma de aperfeiçoar a mão que ele nos deu.
“Penso nas complexas mãos mecânicas que existem nos laboratórios nucleares que servem para lidar com materiais radioativos. Milhões de dólares são gastos na engenharia dos circuitos e da mecânica daquelas mãos. No entanto, são extremamente volumosas, lentas e limitadas em comparação com as nossas.”
Vendo os Pacientes na Imagem de Deus
Um dos aspectos mais importantes da vida e obra de Paul Brand era a forma como lidava com seus pacientes. Ele não tratava meramente o membro afetado, nem via os pacientes como casos, mas como criaturas de Deus. Um dos seus amigos e colegas na Missão Internacional de Lepra testemunhou dele:
Não eram apenas técnicas cirúrgicas que Paul aplicava impessoalmente. Muitas vezes, observei-o enquanto tratava os pacientes, avaliando suas deficiências e decidindo sobre o que melhor solucionaria suas necessidades. Notei que ele nunca concentrava sua atenção somente no pé ou na mão que segurava com tanta ternura e intimidade. Ele olhava no rosto do paciente, diretamente nos seus olhos. Era preocupado com o indivíduo, sua personalidade, sua humanidade.
Dentro de cada pessoa que tratava, Dr. Brand via um espírito quebrado cheio de dor e um corpo quebrado que não sentia dor. E em cada uma delas, via a imagem de Deus.
“Jesus Cristo não precisaria ter tocado as pessoas quando as curava”, disse Brand certa vez. “De fato, poderia facilmente com o mesmo poder ter usado uma vara mágica. Uma vara certamente teria alcançado muito mais pessoas do que seu toque pessoal. Ele poderia ter dividido a multidão em grupos: pessoas paralíticas naquele canto, pessoas febris nesse outro, pessoas leprosas do outro lado – e depois ter levantado suas mãos para curar cada grupo por atacado. Mas escolheu não fazer dessa forma. Não, sua missão era para as pessoas, pessoas individuais que por acaso estavam também doentes. Vieram porque tinham doenças, mas ele as tocou porque eram humanas e porque as amava. Não é muito fácil demonstrar amor a uma multidão. O amor precisa ser comunicado, geralmente, de pessoa a pessoa.”
De acordo com Philip Yancey, as conversas com Brand que mais o marcaram foram aquelas em que este lhe contava dos seus pacientes, pessoas “intocáveis”, pessoas sem rosto ou identidade para o mundo. Ele falava das suas histórias familiares, da rejeição que haviam sentido quando a doença primeiro se manifestara, dos tratamentos de tentativa e erro que sofreram no início da sua experiência, enquanto juntos tentavam descobrir a solução. Quase sempre seus olhos se umedeciam enquanto lembrava do sofrimento de cada um. Para ele, não eram um “joão-ninguém”; eram criados na imagem de Deus, e sua vida fora dedicada a restaurar esta imagem, tão desfigurada pela doença.
A relação do Dr. Brand com seus pacientes pode ser avaliada por seu próprio testemunho: Quando volto para a Índia para tratar de assuntos hospitalares, sempre que consigo uma brecha na minha agenda, dou uma passadinha para ver alguns dos meus primeiros pacientes, especialmente Namo, Sadan, Palani e alguns dos outros garotos do Centro Nova Vida, onde fiz os primeiros tratamentos. O desafio naqueles dias era aprender como proteger os pés de lesões acidentais e vigiar para evitar as feridas das quais a dor normalmente nos protege.
Agora são pessoas de meia-idade, com cabelos grisalhos e ralos, e rugas em volta dos olhos. Quando me vêem, arrancam seus sapatos e meias e mostram-me com orgulho os pés que conseguiram proteger de feridas durante todos esses anos. Examino seus pés e mãos e congratulo-os pela sua vigilância; em seguida, tomamos chá juntos.
Começamos a falar dos velhos tempos e nos atualizamos com as notícias uns dos outros. Sadan é arquivista de uma missão para leprosos que supervisiona 53 clínicas móveis. Namo se tornou fisioterapeuta de reputação nacional. Palani é chefe de treinamento na unidade de fisioterapia no hospital de Vellore onde eu trabalhava. Ouço suas histórias de trabalho e família e vejo na minha mente as imagens daqueles garotos assustados e deformados que há tantos anos se candidataram para receber cirurgia experimental.
Nunca ganhei muito dinheiro na minha vida de cirurgião, mas sinto-me extremamente privilegiado por causa de pacientes como estes. Trouxeram-me mais alegria do que a riqueza jamais me poderia proporcionar. E ainda trazem-me esperança em favor de outras pessoas sofredoras. Com Namo, Sadan e Palani tenho provas indiscutíveis que a dor, mesmo a dor cruel e infame de uma doença como lepra, não precisa destruir. “O que não me destrói me fortalece”, dizia Martin Luther King, e tenho visto este provérbio ganhar vida em muitos dos meus ex-pacientes.
Uma vez, Sadan realmente chegou a me dizer: “Estou contente por ter tido a doença da lepra, Dr. Brand”. Olhei incrédulo para ele, mas logo se explicou: “Sem lepra, teria gasto toda minha energia tentando subir na sociedade. Por causa dela, aprendi a me importar com as pessoas humildes”.
Paul Brand faleceu no dia 8 de julho de 2003, com 89 anos, em Seattle nos EUA, depois de complicações resultantes de uma queda que sofreu numa escada algumas semanas antes. Eis o que ele próprio escreveu a respeito da morte em 1993:
Um dia experimentarei uma doença que será para morte. Sentirei que minha estrutura mortal já não tem mais força para lutar e que o caminho diante de mim me levará ao vale da sombra. Que eu não sinta o desespero de quem está perdendo a batalha, nem que o mal está triunfando sobre mim. Brilhe no meu interior, ó Senhor, a luz do teu eterno Espírito. Mostra-me outra vez que o meu corpo, por mais maravilhoso que seja, é apenas o manto de uma maravilha maior, a minha alma. Segura-me, Senhor, em tal consciência da tua presença e do teu amor que minha partida do corpo seja apenas a abertura de intimidade vívida e de união com o Espírito do meu Salvador. Aquele que foi a inspiração do meu corpo trôpego seja agora a própria luz e substância da minha alma.”
(Extraído de “I Thank God for My Immune System”, “Dou Graças a Deus Pelo Meu Sistema Imunológico”, Litanies of Praise, Paul Brand).
Em outra ocasião, ele falou durante um sermão: “Minha oração é que, quando chegar minha hora, eu não reclame que meu corpo se desgastou tão rápido, mas que mantenha firme a gratidão por ter estado há tanto tempo no leme da criação mais maravilhosa que o mundo já conheceu, e que sinta expectativa de encontrar-me face a face com o projetista dela.”
Compilado por Christopher Walker, usando como fonte de pesquisa diversas matérias do site: www. christianitytoday.org.
Respostas de 7
Excelente artigo, eu sou muito grato a Deus por conhecer um pouco da vida de pessoas tão incríveis como o dr. Paul Brand. Isso nos anima e fortalece, e serve como estimulo para nos esforçarmos a ter uma vida com significado real, acima de tudo, procurar ter uma vida na presença de Deus, como esse medico teve.
“…O amor precisa ser comunicado, geralmente, de pessoa a pessoa…”
Muito obrigada!
A vida do Dr. Brand me impactou profundamente. Homens com sua trajetória de vida entenderam na integra o que é sevir a Deus. Tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, estava nu e me vestiste , era forasteiro e me hospedaste.
QUE POSSAMOS PASSAR DE SOMENTES OUVINTES PARA PRATICANTES DA PALAVRA DE DEUS, APRENDER COM ESTE TESTEMUNHO DESTE HOMEM DE DEUS, QUE LITERALMENTE PRATICOU O AMOR. PR.ARTHUR LOPES
Caindo em lágrimas com toda essa história de amor e dedicação, a qual tomei conhecimento em livros do Yancey!
Estou literalmente impactada. Nunca ouvi falar neste homem. Yancey se superou neste livro. Abordagem espetacular sobre um verdadeiro servo de Deus. Um homem que apesar da inteligência e capacidade foi humilde a vida inteira no real sentido da palavra.
Grata surpresa encontrar a Revista Impacto. Sempre amei ler os artigos dessa revista. Tenho esse exemplar impresso.