21 de dezembro de 2024

Ler é sagrado!

História da Igreja – Parte 14 – Alguns Exemplos de Rótulos na História

Raízes: Lições da História da Igreja Para os Nossos Dias
Alguns Exemplos de Rótulos na História

Por: Christopher Walker

Sabemos que a igreja começou unida, com um só coração e uma só alma (At 4.32), sem distinção entre judeu ou gentio, escravo ou livre, homem ou mulher, circuncisão ou incircuncisão, bárbaro ou culto (Gl 3.28; Cl 3.11). Porém, como a atitude de discriminar uns contra os outros é inerente à natureza humana, quanto menos controle o Espírito Santo tinha na igreja, mais preconceitos e divisões começaram a surgir.

Em qualquer época da história que você analisar, encontrará com facilidade a manifestação desta tendência. Porém, a título de ilustração, daremos apenas alguns exemplos.

Martinho Lutero

Apesar de toda a admiração que temos por esta grande figura da Reforma Protestante, não podemos esconder as suas falhas. A própria Bíblia não deixa de registrar fielmente as deficiências e pecados dos grandes personagens e heróis da fé, e isto não nos faz rejeitá-los. Pelo contrário, aprendemos que ninguém pode ser idolatrado ou seguido cegamente, e que Deus faz grandes coisas mesmo através de instrumentos imperfeitos. Além disso, podemos ser alertados para não cair nos mesmos laços.

Pelo fato de Lutero ter enfrentado tanta oposição da Igreja Romana, pode ser difícil compreender por que ele repetiu o mesmo erro e foi intolerante em relação a outros grupos protestantes, como os anabatistas, e mais ainda em relação aos judeus.

Neste sentido é interessante notar que no princípio sua atitude era bem mais aberta. Em 1523, ele acusou os católicos de serem injustos com os judeus, e de tratá-los como se fossem cães, dificultando assim a sua conversão.

“Devemos tratá-los com bondade”, ele escreveu. “Se realmente quisermos ajudá-los, devemos nos orientar, não pela lei papal, mas pela lei do amor cristão. Devemos recebê-los cordialmente, e permitir que façam comércio conosco e que trabalhem ao nosso lado, que ouçam nossos ensinamentos e vejam nossa vida cristã. Se alguns deles forem obstinados, e daí? Afinal, nós também não somos todos bons modelos do cristianismo.”

Porém, quinze anos depois, Lutero não conservava a mesma opinião. Parece que se convencera que a conversão de judeus era impossível, e concluíra que Deus havia abandonado o povo natural de Israel. Se Deus não tinha mais misericórdia para com este povo, então os cristãos também não precisavam usar de compaixão para com eles. As palavras duras de Lutero, aconselhando que se queimassem sinagogas e escolas dos judeus, destruíssem seus livros sagrados, e proibissem os rabinos de ensinarem, são uma mancha notória sobre a vida do reformador e sobre a história do protestantismo. Pior que isso, esta atitude abriu precedente para muitos outros erros que se sucederiam nos séculos seguintes.

Como acontece muitas vezes na experiência humana, Lutero errou por não seguir seu próprio método teológico. Quando era professor em Wittenberg, Lutero ensinou aos seus alunos que não se deveria especular sobre os mistérios escondidos de Deus, pois o que este não revelou não podia ser conhecido.

Uma vez um aluno perguntou a Lutero: “O que Deus fez antes de criar o mundo?”

A resposta de Lutero foi: “Ele criou o inferno para as pessoas que fazem este tipo de pergunta!”

Mas quando enfrentou a pergunta: “Por que os judeus se recusam a converter-se ao cristianismo?”, ao invés de seguir seu próprio conselho, Lutero concluiu que “Deus endureceu seus corações e os abandonou por causa da sua teimosia”.

Lutero assim foi vítima daquilo que seu amigo Philipp Melanchthon chamava a “moléstia dos teólogos”: tirar conclusões sobre os mistérios escondidos de Deus. Lutero errou porque presumia conhecer a vontade de Deus, e agindo em cima destas premissas erradas, representou mal a Deus e prejudicou muitas pessoas inocentes. Quantas atitudes intolerantes e cruéis não foram praticadas através dos séculos por razões idênticas, por pessoas que achavam inclusive que tinham o aval de Deus!

O Início do Movimento Pentecostal

Quando nascem novos movimentos, ou quando uma nova onda de avivamento vem sobre a igreja, os preconceitos e rótulos de ambos os lados geralmente surgem com força e indelicadeza inacreditáveis. Uma destas épocas foi o início do século passado, depois do avivamento da Rua Azusa em 1906, quando o novo movimento pentecostal começava a espalhar-se rapidamente.

Agora, quase cem anos depois, temos a perspectiva da história para saber o quanto este movimento afetaria o mundo inteiro em onda após onda de mover do Espírito Santo. Diante disso, as frases, acusações, e juízos feitos até por pessoas maduras e usadas por Deus, ficam mais absurdos ainda, por demonstrarem o tamanho do preconceito que os produziu.

Uma das expressões mais comuns naqueles primeiros anos para rotular o novo movimento era “modismo” ou “onda”. Periódicos cristãos respeitados prediziam que o “novo fanatismo” logo correria seu curso, e ficaria apenas como uma curiosidade de museu entre tantas outras tolices ultrapassadas.

Líderes europeus desprezavam o despertamento como algo proveniente da “terra de cultos místicos e religiões bizarras” (os Estados Unidos). De acordo com outro autor, Los Angeles (a cidade onde se localizava a Rua Azusa), abrigava mais fanáticos do que qualquer outra cidade norte-americana (infelizmente, isto não estava totalmente errado, mas não era por causa dos pentecostais!).

Muitas igrejas mais antigas descartavam a influência do movimento pentecostal por causa de seus números inicialmente insignificantes. Mas dentro de dois ou três anos, o desprezo se transformou em medo, e os ataques se tornaram mais explícitos e ousados. Não era apenas um movimento fanático ou estranho – era diabólico mesmo!

Homens do calibre de A. T. Pierson e R. A. Torrey (autores inspirados e homens sólidos do século passado) alertavam seus leitores a respeito das impropriedades chocantes e das grosseiras imoralidades existentes no meio do povo pentecostal. Outros o descreviam como o povo mais “auto-suficiente e justo aos seus próprios olhos” na face da terra. Segundo um autor, os pentecostais tratavam sua capacidade de falar em línguas como uma coroa, “usada como um pavão quando exibe as penas da sua cauda”.

Por causa do orgulho, muitos críticos suspeitavam que os pentecostais exageravam nas estatísticas, aumentando os números daqueles que freqüentavam os cultos ou das pessoas convertidas, batizadas no Espírito, e curadas.

E assim a lista de acusações poderia continuar, sempre chegando em seu pior extremo a atribuir as manifestações, doutrinas e práticas ao próprio Satanás.

Será que estes rótulos eram infundados, gerados unicamente por ciúme, inveja e resistência a algo desconhecido e estranho? Sem dúvida havia estes elementos também, mas o fato é que existiam (e existem!) escândalos, exageros, manifestações carnais, orgulho e muitas outras coisas no meio deste novo movimento. Portanto, o erro de rotular nem sempre ocorre por uma maldosa invenção de algo que nem existe. O problema é que as pessoas usam os defeitos de uma pessoa, de um grupo, ou de um culto, para caracterizar todo um movimento. E conseqüentemente rejeitam tudo, e combatem o movimento como um todo, perdendo com isso a contribuição e a comunhão com pessoas que não são imorais, arrogantes, ou fanáticas, que estão no movimento, e que buscam ao Senhor com coração sincero.

Mas a prática de rotular e rejeitar também acontecia no sentido contrário. Os pentecostais se gabavam dos resultados positivos de multiplicação, conversão e cura, contra-atacavam os seus adversários, e eram igualmente injustos nas suas acusações.

A situação estava armada, e continuou assim durante muitos anos. Por um lado, as igrejas tradicionais e mesmo aquelas que representavam uma das últimas ondas de restauração e despertamento na terra (as igrejas holiness que enfatizavam santidade e entrega radical à vontade de Deus) rejeitavam e combatiam este novo mover do Espírito Santo. Por outro, as igrejas pentecostais, cheias de novo vinho e convictas pelas experiências vivas e resultados sobrenaturais, colocavam-se como vanguarda do Reino de Deus na terra e superiores a todas as igrejas mortas e tradicionais.

Assim, rotulando e rejeitando-se mutuamente, formaram-se duas grandes categorias na igreja, os pentecostais ou carismáticos de um lado, e os tradicionais ou históricos do outro. Esta divisão continua até hoje. (Outra grande classificação que surgiu mais ou menos nesta época foi entre os fundamentalistas que enfatizam doutrinas e verdades bíblicas, e os liberais ou modernistas que praticam obras sociais e não se importam muito com doutrina, em alguns casos nem com as verdades fundamentais da Encarnação ou Inspiração das Escrituras.)

David du Plessis – Vencendo os Rótulos

Foi neste cenário que Deus levantou um homem para mostrar um caminho melhor. Embora os preconceitos e rótulos entre os pentecostais e tradicionais continuem, Deus quis mostrar que existe uma saída, e que é possível superar estas barreiras.

David du Plessis era secretário geral da Missão Fé Apostólica na África do Sul em 1936. O evangelista Smith Wigglesworth, conhecido como o “apóstolo da fé” e que estava visitando o país naquele ano, entregou a du Plessis uma palavra profética, dizendo que Deus o enviaria até os confins da terra, e que presenciaria o maior mover do Espírito na história da igreja. Terminou dizendo que Deus vivificaria os cadáveres, e que este mover seria através das igrejas tradicionais.

Na época, du Plessis não entendeu muito a palavra, nem como se cumpriria. Onze anos depois, Deus falou com ele novamente, dizendo que estava chegando a hora para aquela palavra se cumprir. Mas du Plessis reagiu como Pedro, que se recusou a comer os animais que considerava imundos. Para ele, o rótulo das igrejas “mortas” era tão forte que não conseguia imaginar Deus agindo no meio delas, e muito menos que tivesse uma missão para cumprir ali.

Enquanto isto, du Plessis continuou trabalhando com todas as suas forças para unir o povo pentecostal. Certamente, houve alguma confusão naquela palavra profética. Deus o enviara ao povo pentecostal. Imaginava que se fosse unido, este povo poderia tornar-se uma força invencível, marchando pelo mundo, e abalando tudo. Levaria o poder do Espírito Santo ao mundo inteiro.

Chegou a ser criada a Conferência Mundial dos Pentecostais. Entretanto, a união esperada não veio. Até hoje, os pentecostais e carismáticos têm mais denominações e divisões que as igrejas históricas!

Foi preciso Deus colocá-lo num hospital, após um acidente de carro, para quebrar sua resistência e a força dos rótulos.

“Chegou a hora para se cumprir a profecia que você recebeu através de Smith Wigglesworth”, Deus lhe disse. “Quero que vá aos líderes do Conselho Mundial de Igrejas.”
“Mas Senhor”, du Plessis argumentou, “o que posso dizer àquelas igrejas mortas?”
“Eu ressuscito os mortos”, Deus retrucou com simplicidade chocante.
“Mas, Senhor, eles são nossos inimigos!”
“Sim, mas eu já lhe disse que deve amar seus inimigos.”
“Como posso amá-los? Não concordo nem com suas doutrinas, nem com suas práticas.”
“Bem”, o Senhor disse firmemente, “neste caso, você terá de perdoar-lhes.”
“Mas como posso perdoar-lhes, se não posso justificá-los?” Du Plessis sabia que estava perdendo a parada, mas não queria entregar os pontos ainda.
“Eu nunca lhe dei autoridade para justificar pessoa alguma. Eu lhe dei autoridade apenas para perdoar. E se perdoar-lhes, você vai amá-los. E se os amar, vai querer perdoar.”

E foi assim que começou o processo de transformação que revolucionaria o ministério daquele homem e permitiria que ele fosse o instrumento de Deus para levar renovação a muitas igrejas históricas que antes estiveram totalmente fechadas para isto.

Ele descreve em suas próprias palavras sua revolução interior: “Enquanto eu meditava ali, durante a noite, vi o tamanho do meu erro. Eu estava esperando que Jesus me usasse como um pentecostal para abalar as igrejas. Pensava que poderia forçar as pessoas a entenderem a verdade, dizendo-lhes onde estavam erradas, e sacudindo-as em justa indignação. Mas o Senhor disse que este não era o caminho. ‘O avivamento virá se você perdoar. Se você lutar – nada acontecerá’.”

Algum tempo depois, o Senhor continuou falando com ele a respeito da sua atitude em relação às igrejas. “Pare de condenar as igrejas! Pare de julgá-las! Você nunca unirá o movimento pentecostal, se seu objetivo for combater os modernistas. Se você formar uma organização com a intenção de combater as demais, nunca irá a lugar algum. Deus não reage – ele simplesmente age! Ele cria. Pare de condenar. Comece a perdoar e a abençoar. Vá à sede do Conselho Mundial de Igrejas em Nova York.”

Finalmente ele foi – lá na cidadela do modernismo, liberalismo e tradicionalismo. Mas ao invés de encontrar hostilidade, ele foi recebido de braços abertos, e passou o dia inteiro respondendo às suas perguntas, e explicando o batismo no Espírito Santo.

E a chave funcionou! Antes ele era contra as igrejas liberais porque não concordava com o que ensinavam. Mas depois que começou a perdoar-lhes por seus erros e doutrinas, pôde entender os seus problemas. Deixou de julgá-los; não tentou mais convencê-los; simplesmente dava testemunho do Senhor Jesus. Quando a pessoa é amada e perdoada, torna-se aberta para a experiência. E a experiência derruba a doutrina que é apenas letra.

Assim a porta para as igrejas tradicionais foi aberta pela chave do amor e perdão, e foi iniciada a “Renovação Carismática” que atingiu quase todas as denominações do cristianismo no mundo inteiro. Neste ministério pelo mundo, ele veio a ser conhecido como “Mr. Pentecost”. Mas foi preciso um processo de vários anos, só para quebrar a resistência de um homem aos rótulos a que estava acostumado, e para se dispor a construir uma ponte entre as partes separadas.

Você pode ler mais sobre David du Plessis no livreto “Perdão”, da Worship Produções. Outras fontes de pesquisa para este artigo: Revista Christian History, números 39 e 58.

Tempo difícil esse em que estamos, onde é mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito.
Albert Einstein

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