Por Rui Luis Rodrigues
Sabemos que toda generalização é um convite ao erro. No entanto, desde que considerada criticamente, a generalização se presta como ferramenta não somente útil para nossa reflexão, mas até mesmo como recurso indispensável. É justamente este o uso que pretendo fazer de uma generalização que, considerada isoladamente, poderia parecer odiosa a muitos.
Refiro-me à miséria teológica vivida pela Igreja evangélica. O juízo negativo, obviamente, não desperta simpatias. Como falar em “miséria teológica” numa época em que se multiplicam tanto as instituições teológicas brasileiras quanto as publicações (incluídas, aqui, as mais diferentes “Bíblias de estudo”)? Mais ainda: de que igreja estamos falando? Evidentemente, não há uma Igreja brasileira, mas uma diversidade de corpos eclesiais cujos históricos e experiências são necessariamente diversos. A realidade teológica desses grupos é igualmente multifacetada.
Mesmo levando em conta essa diversidade, existem elementos suficientes para embasar uma análise de conjunto. Descontados os riscos da generalização, encontramos ainda solo firme o suficiente para falarmos em termos de um “estado geral” da reflexão teológica nas comunidades evangélicas brasileiras. Não tratarei, aqui, das honrosas exceções a esse panorama, mas apenas dos elementos que têm cooperado para formar, na minha opinião, esse quadro geral.
Testemunho eloquente de nossa miséria teológica poderia ser encontrado em nossas editoras: ainda é mínimo o número de títulos teológicos publicados por autores nacionais; dentre esses, é menor ainda o de trabalhos conduzidos com seriedade teológica. Em grande medida, o que temos são textos calcados em determinadas linhas doutrinárias denominacionais ou, então, produções que não vão além de repisar temas caros ao “grande público” evangélico.
Colonização teológica
O primeiro fator determinante de nossa miséria no campo da teologia encontra-se em nossa colonização teológica. A Igreja evangélica brasileira data do século 19 e, em sua maior parte, foi estabelecida por movimentos missionários oriundos dos países anglo-saxões. Boa parte desses movimentos enfrentou, na passagem do século 19 para o 20, controvérsias em seus locais de origem entre teologias “liberais” (ou seja, mais ou menos abertas aos problemas críticos da modernidade; o designativo “liberal” é de uma imprecisão absurda) e “conservadoras” (aquelas que se opunham à “abertura” dos “liberais”). Em geral, os movimentos missionários foram patrocinados por entidades que, de uma forma ou de outra, alinharam-se às facções conservadoras em suas denominações de origem.
Isso fez com que, logo de início, os grupos evangélicos brasileiros se definissem a partir de agendas “conservadoras”. Especialmente a partir da década de 1950, o Brasil tornou-se “campo missionário” para entidades fundamentalistas norte-americanas que entendiam como sua missão “salvar” a Igreja evangélica brasileira dos perigos do “liberalismo”. Assim, no início da década de 1950, as principais igrejas evangélicas do país foram visitadas, sucessivamente, pelo pastor francês Marc Boegner, representante do Concílio Mundial de Igrejas (visto como “liberal” pelo protestantismo autóctone), e pelo pastor norte-americano Carl McIntire, presidente do Concílio Internacional de Igrejas Cristãs (International Council of Christian Churches ou ICCC), de tendência fundamentalista. As principais denominações conservadoras deram apoio à visita de McIntire, a ponto de considerá-la uma espécie de “cruzada” em prol da sanidade teológica do protestantismo brasileiro.
Essa polarização não apenas operava distorções brutais ao trabalhar com rótulos imprecisos (“liberal”, “conservador”), mas ela também empobrecia o debate teológico, à medida que a pesquisa séria era rejeitada em função dessas mesmas rotulações vagas. Além disso, salvo poucas exceções, o mercado editorial evangélico esteve por muito tempo nas mãos de editoras ligadas a grupos denominacionais de tendências conservadoras; o que era publicado – e, consequentemente, colocado diante dos olhos do público leitor brasileiro – era fruto de um pesado controle ideológico.
Dicotomia entre teologia e devoção cristã
A esse quadro já deprimente, devemos agregar outros elementos. O movimento carismático, bem como todos os movimentos que lhe vieram na esteira (“neopentecostais”, “comunidades”, movimentos de “restauração da Igreja”; como sempre, designações assim são profundamente insatisfatórias), conservaram uma dicotomia básica entre teologia e devoção cristã. A primeira era vista ora na chave de um tradicionalismo ressequido, ora como manifestação de um “intelectualismo” inimigo da verdadeira devoção. Essa desconfiança em relação ao trabalho teológico – que, na prática, começou com os mesmos grupos “conservadores” norte-americanos que, em fins do século 19, saíram das Faculdades de Teologia e passaram a fundar seus “Institutos Bíblicos” – gerou frutos sinistros nos ambientes carismáticos: um desconhecimento profundo dos critérios teológicos mais simples, uma enorme incapacidade de fazer a “ponte hermenêutica” entre o “então” do texto bíblico e o “agora” da sua aplicação, um orgulho desmedido que enfatizava “novas revelações” e descartava como “ímpias” quaisquer críticas oriundas de uma reflexão teológica mais isenta.
Exemplos são abundantes nos meios pentecostal e carismático; lembro-me de que, cerca de 15 anos atrás, quando as comunidades evangélicas carismáticas eram varridas por fenômenos ligados a “restaurações dentárias”, uma pessoa tentou convencer-me de que a “base bíblica” para esses fenômenos estava em Amós 4.6, trecho em que lemos: “Também vos dei limpeza de dentes em todas as vossas cidades”. Na ocasião, desconversei rapidamente, até porque não estava interessado em debater com a pessoa em questão; mais tarde, em casa, consultei o texto, no qual se percebe claramente que a “limpeza de dentes” é uma referência à fome experimentada pelo povo (isso fica claro não apenas pelo contexto mais amplo, todo o capítulo 4, mas até mesmo pelo restante do versículo 6, que diz: “e falta de pão em todos os vossos lugares, contudo não voltastes para mim, diz o Senhor”). Ou então, consideremos outro exemplo, um pouco mais complexo: boa parte dos textos do Antigo Testamento invocados pelos defensores dos ensinos de “batalha espiritual” deixaria de servir a esses propósitos se fossem analisados de forma acurada, a partir de uma exegese que considerasse o momento de seu surgimento e sua intencionalidade original.
Trata-se de exemplos típicos. Esse tipo de manuseio das Escrituras no qual encontramos lá apenas e tão somente o que queremos achar tem sido tristemente comum nos ambientes pentecostal e carismático. O grande crescimento das igrejas evangélicas nos últimos anos apenas potencializou esse estado de analfabetismo teológico: não apenas pastores de pequenas comunidades, mas líderes de projeção nacional manifestam uma ignorância teológica crassa. Gente sem formação prega e ensina, fazendo com que o analfabetismo teológico gere consequências imprevisíveis no seio das comunidades.
Como causas de nossa miséria teológica, temos, portanto, a desconfiança para com o trabalho teológico, especialmente aquele conduzido com rigor crítico e metodológico, e a força de antigas rotulações, em geral aplicadas a partir de pontos de vista ideologicamente comprometidos. Somadas, essas causas resultam num panorama em que, com poucas exceções, a reflexão teológica ou é francamente desestimulada ou é mantida dentro de limites fixados de antemão pelas lideranças denominacionais.
Nesse cenário, a própria questão da relevância ou não das “Bíblias de estudo” precisa ser repensada. Sem dúvida, os objetivos a que se propõem são louváveis; todavia, justamente por falta de preparo teológico, o uso desse material pode tornar-se contraproducente. A menos que desejemos tomar determinada “Bíblia de estudo” como infalível, devemos reconhecer que todas elas devem ser apropriadas criticamente; em outras palavras, numa Bíblia de estudo devem ser objetos de reflexão crítica não apenas as colocações mais abertamente teológicas ou “confessionais”, mas também as informações de natureza histórica e arqueológica (visto que estas também não representam dados isentos, mas estão, na maioria das vezes, atreladas a posicionamentos ideológicos e dependem das interpretações de seus formuladores). No entanto, esse tipo de reflexão crítica não é algo que fazemos de maneira automática; é preciso aprender a pensar criticamente. Transmitir essa habilidade deveria ser uma das funções de um bom curso teológico.
Em suma, apenas o trabalho teológico sério pode reverter a miséria teológica na qual fomos mantidos por muito tempo. Enquanto não rompermos a (falsa) dicotomia entre reflexão e devoção, e enquanto não superarmos os (falsos) rótulos que tanto assustaram no passado a Igreja evangélica brasileira, continuaremos vítimas do subdesenvolvimento teológico.
Rui Luis Rodrigues é teólogo e historiador. Vive em Osasco/SP com sua esposa e filho e participa da Comunidade Carisma. É autor de Realização do homem, realização de Deus: Ensaios de Teologia e Espiritualidade (Editora Reflexão, 2009) e de Deus ama o que é humano – E outros estudos de espiritualidade (Editora Reflexão, 2010).